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Física

Partículas Gêmeas

Pesquisadores da UFRJ renovam experimento de física quântica com fótons

RODRIGO QUEIROZNo experimento de óptica quântica, a luz parece voltar no tempoRODRIGO QUEIROZ

Físicos do Rio de Janeiro criaram um novo método de conduzir um experimento em que um feixe de luz parece fazer uma viagem ao passado. Para desorganizar a trajetória da luz, em vez de papéis e gases especiais – adotados desde que o experimento foi criado, no fim dos anos 60 -, usaram duas fontes de laser e um cristal. Divulgado em setembro do ano passado num artigo da Physical Review Letters, o novo experimento marca a entrada em cena de um grupo criado há três anos e que no ano passado publicou mais dois artigos em revistas de primeiro nível.

Mais que a recriação do experimento, o grupo do laboratório de óptica quântica do Instituto de Física da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) mostrou como lidar com fótons emaranhados, duas partículas de luz que mantêm uma ligação estranha, como se fossem gêmeos com capacidade telepática: o que acontece com uma acontece com a outra, mesmo que estejam a milhões de quilômetros de distância.

O trabalho tem aplicações práticas potenciais. Conhecer a fundo o entrelaçamento de fótons é fundamental para o avanço dos futuros computadores quânticos, capazes de fazer em segundos tarefas que levariam anos no mais rápido dos computadores atuais. É decisivo também para a criptografia quântica, que cria um código inviolável, e até mesmo para a idéia fantástica do teletransporte – imaginada na série de TV Jornada nas Estrelas e que permite levar e trazer a tripulação da espaçonave Enterprise a lugares distantes por meio de decomposição e recomposição atômica.

Trajetória invertida
A impressão de uma viagem ao passado, dada pelo experimento dos anos 60 e pelo que o grupo da UFRJ conduziu, ocorre quando um feixe de luz laser incide sobre um material difuso – uma folha de papel manteiga, por exemplo -, que o desorganiza e espalha em diversas direções. Ao atravessar esse anteparo, a luz laser perde sua principal característica – partículas (fótons) organizadas em fila indiana – e fica semelhante à luz comum, como a de uma lâmpada caseira.

O inesperado é que, ao encontrarem um meio não-linear – um recipiente com um gás especial, por exemplo -, os raios de luz são refletidos de modo a refazer as trajetórias de volta, atravessam de novo o papel manteiga e retomam a organização inicial. Parece que voltaram no tempo. “Na verdade, para esse feixe refletido, o tempo continua passando normalmente”, explica Paulo Henrique Souto Ribeiro, coordenador do laboratório. “Há apenas uma inversão de sua trajetória.”

Ribeiro repetiu o experimento com outro meio não-linear. A base do experimento foram duas fontes de luz laser. A primeira, bombeadora, passa por um cristal, que dá aos fótons propriedades especiais e os divide em dois feixes. A segunda fonte, auxiliar, cruza a trajetória do primeiro laser dentro do cristal e reforça a intensidade dos dois feixes bifurcados.

A interação que ocorre dentro do cristal faz com que um dos feixes bifurcados passe a ter exatamente as mesmas características do auxiliar, mas com trajetória invertida, o que o põe num estado de reversão temporal, como se o feixe auxiliar fosse refletido num espelho. Para demonstrar isso, o grupo pôs um anteparo que bloqueou metade do feixe auxiliar. O feixe conjugado teve então a outra metade bloqueada. “Exatamente como se fossem imagens num espelho”, diz o coordenador.

Poder do cristal
Ribeiro é um engenheiro eletricista que mandou para os ares um emprego de manutenção de aviões e alçou vôo numa pós-graduação na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Doutorou-se em 1995, passou uma temporada na École Normale Supérieure de Paris e instalou-se em 1998 no Rio com o objetivo de levar sua visão experimental a um grupo de físicos teóricos. Depois, montou o laboratório – com recursos do Ministério da Ciência e Tecnologia, da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj) e da Fundação Universitária José Bonifácio (FUJB) – e estreitou colaborações, uma delas com o professor Paulo Nussenweig, do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (IF-USP).

O trabalho da equipe baseia-se nas propriedades especiais que a luz adquire no interior de um cristal especial em forma de cubo, com aresta de um centímetro. É ali que se formam as partículas gêmeas – ou fótons emaranhados, um dos fenômenos mais bizarros do mundo das partículas. Uma vez criados os pares de fótons, qualquer medida feita num deles afeta instantaneamente a partícula companheira, mesmo que esteja a milhões de quilômetros de distância. Por isso, já foram comparados, por brincadeira, ao vodu, feitiço que faz a vítima sentir instantaneamente ações executadas a distância – agulhas espetadas num boneco de pano causariam dor numa pessoa nos pontos em que o boneco é espetado.

Como as agulhadas, o fenômeno dos pares entrelaçados é fugidio: o laser de hélio e cádmio usado na UFRJ emite luz violeta e, a cada segundo, dispara cerca de 10 mil trilhões de fótons que, depois de penetrar o cristal, chocam-se contra espelhos que absorvem pouquíssima luz e são captados por detectores capazes de indicar a chegada coincidente de cada um dos pares. A cada segundo, os aparelhos – instalados sobre uma mesa com um sistema de amortecedores que impede qualquer vibração – produzem cerca de mil pares de fótons gêmeos.

Mundo estranho
Os fenômenos do mundo atômico e molecular, habitado pelas partículas gêmeas, são regidos pelas leis da mecânica quântica, que parecem um contra-senso para quem se atém às dimensões do mundo visível. Partículas como elétrons e fótons comportam-se como corpúsculos e ondas ao mesmo tempo e só optam por um desses comportamentos quando observados. Há outras coisas estranhas. As partículas podem ocupar duas posições no espaço ao mesmo tempo ou se despedaçar em numerosos fragmentos – ou ondas – e mesmo assim manter suas propriedades. Diferentemente dos corpos macroscópicos, nunca revelam simultaneamente sua posição e sua velocidade. Essas peculiaridades levaram a um intenso debate os maiores cientistas do século 20.

O comportamento dos pares entrelaçados perturbava o físico alemão Albert Einstein (1879-1955), que classificou a ligação instantânea entre eles como “fantasmagórica ação à distância”. Num artigo de 1935, tentou mostrar o que considerava a incoerência da teoria quântica e previu que isso estaria resolvido quando a teoria chegasse a uma fase adulta. Em resposta, o dinamarquês Niels Bohr (1885-1962), com quem Einstein manteve um debate por três décadas, mostrou que o microuniverso atômico fere mesmo o senso comum e que cada um que se aventurasse a estudá-lo deveria conformar-se com isso. A história parece dar certa vantagem à Escola de Copenhague, liderada por Bohr: contrariando a vontade de Einstein, as menores entidades do universo continuam a se comportar estranhamente.

Perspectivas
As máquinas que podem ser construídas a partir de fótons entrelaçados ainda estão em gestação. Os computadores quânticos, por enquanto, não têm semelhança alguma com os computadores que conhecemos. Já houve testes com criptografia quântica, mas nada que se possa usar em transmissão segura de dados.Em setembro último, a equipe de Eugene Polzik, da Universidade de Arhus, Dinamarca, relatou à revista Nature ter conseguido entrelaçar duas nuvens de césio. Cada nuvem continha cerca de um trilhão de átomos e seu entrelaçamento é considerado um primeiro passo para o teletransporte de partículas massivas.

“O emaranhamento quântico”, diz Ribeiro, “é a propriedade física por trás da realização do teletransporte. O teletransporte do estado de polarização de um fóton foi realizado experimentalmente com a utilização de pares de fótons entrelaçados ou emaranhados”. Já o teletransporte de objetos maiores seria bem mais complexo: o corpo humano, por exemplo, tem cerca de 1025 (o número 1 seguido de 25 zeros) átomos, ou dez trilhões de vezes o tamanho das nuvens gêmeas.

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