Houve uma época em que, durante quatro meses seguidos – nem pensar em descansar nos finais de semana ou feriados -, um grupo de biólogos do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo (USP) acompanhou dia a dia o crescimento e a reprodução de colêmbolos, insetos primitivos sem olhos nem pigmentação, que têm menos de um milímetro de comprimento e habitam regiões profundas das cavernas. Revezando-se em turnos de trabalho, os pesquisadores perderam a conta das noites que passaram em claro ou apenas com um cochilo num colchonete estirado num canto da sala, já que a cada oito horas era preciso anotar o que ocorria em cada um dos 486 frascos, cada um com um único inseto. Houve momentos de desconforto também quando seguiram o dia-a-dia de abelhas solitárias da espécie Tetraglossula anthracina, nos brejos do interior paulista, ou o desenvolvimento do mosquito anófele, o transmissor da malária, desta vez na Mata Atlântica paranaense.
As centenas de páginas de anotações atestam que se deve considerar a existência de uma complexa organização temporal para compreender o funcionamento das atividades cotidianas dos seres vivos, como alimentação, sono, descanso e o trabalho de modo geral. Com o reforço de dados extras, obtidos com as formigas saúvas (Ata sexdens) e abelhas sociais sem ferrão (Frieseomelitta doederleini), as espécies hoje em estudo, o grupo coordenado por Mirian David Marques descobriu que essa organização temporal envolve não só um relógio biológico, como se pensava, mas pelo menos dois outros tipos. De todos, o mais conhecido é o circadiano – com uma duração aproximada de 24 horas, é regido pela alternância entre claro e escuro e coordena, por exemplo, o sono dos seres humanos. Mas há ainda os ultradianos, que duram menos de 20 horas, como os batimentos cardíacos e os ritmos respiratórios, e os infradianos, que superam as 28 horas, como acontece com a troca de pele de alguns insetos, que ocorrem em períodos variáveis de dois dias a um ano.
“A tendência era considerar o circadiano como uma espécie de relógico único”, comenta Mirian. Seu trabalho com ritmos biológicos, iniciado há 18 anos, ganhou em 2000 a adesão de um grupo de físicos e de geólogos, que ajudaram a interpretar o comportamento dos animais – um dos resultados do trabalho conjunto é um novo modelo matemático que explica os ritmos infradianos, publicado em novembro de 2000 no Journal of Theoretical Biology. “A consistência e a beleza dos projetos residem exatamente no diálogo constante com outros grupos”, diz a pesquisadora.
A equipe, se por um lado quebrou o monopólio do ritmo circadiano, por outro reafirmou a importância dessa forma de organização temporal dos organismos. O circadiano surpreendeu ao mostrar que faz parte da vida de grilos de cavernas Strinatia brevipennis – sempre às escuras, pareciam não precisar de um relógio desse tipo – e o quanto é precoce na vida humana. Um estudo publicado em fevereiro na Biological Rhythm Research, que contou com a colaboração da equipe da USP, comprova a manifestação do circadiano em bebês prematuros: ao contrário do que se imaginava, já que bebês ainda não se relacionam com o claro e o escuro, a pesquisa exibiu uma variação da temperatura dos recém-nascidos que se repete a cada ciclo de aproximadamente 24 horas – indício evidente de registro do circadiano.
Como explicar? Segundo Mirian, há uma espécie de memória ou registro primitivo do circadiano em quase todos os seres vivos, como uma herança dos ancestrais mais remotos de cada espécie. Já se sabia que o controle do ritmo biológico está associado aos genes per (de period), identificados nos anos 70, e a outros, como otim (timeless) e ocry (cryptochrome), descobertos há apenas alguns anos – juntos, formando o que se chama de genoma temporal.
Mirian amplia o debate: além dos relógios biológicos dos seres vivos, é a natureza que apresenta um ritmo de funcionamento. “Todos os ciclos, atuando de maneira harmoniosa, garantem a interação dos organismos com o meio onde vivem”, diz ela. O ciclo claro e escuro é uma referência importante para promover essa harmonia, por indicar o momento de comer, acordar e dormir. Os trabalhos da USP estão ajudando a ampliar os horizontes da cronobiologia, a área que estuda os ciclos biológicos, por mostrarem que outros elementos cíclicos, como a disponibilidade de alimento, as alternâncias entre quente e frio e úmido e seco, a reprodução e as relações sociais podem ajudar a ajustar os ponteiros da vida.
“Eu queria abrir novos horizontes”, confessa Mirian. Foi em 1987, após ter concluído o pós-doutorado nos Estados Unidos, que ela inaugurou o Laboratório de Cronobiologia do Museu de Zoologia da USP. Já de início decidiu estudar sistemas biológicos que fugissem dos modelos clássicos consagrados – ratos, camundongos, algas, drosófilas e mariposas -, sempre estudados apenas em laboratório. O tempo mostrou que o desafio era maior do que pensava.
Em 1993, a tese de doutorado de Miriam Gimenes, uma das alunas de Mirian Marques, inaugurou uma nova etapa da cronobiologia: muito provavelmente, foi o primeiro estudo dessa área desenvolvido em ambiente natural, longe dos laboratórios. Miriam Gimenes trabalhou com as abelhas solitárias do gênero Tetraglossula anthracina, acompanhadas em seu próprio hábitat, os brejos próximos às cidades de Campos do Jordão, na Serra da Mantiqueira, e de Mairinque, também no interior paulista. Os locais foram escolhidos por se encontrarem na mesma latitude – era uma forma de garantir a semelhança entre as variações anuais do parâmetro claro e escuro.
Essas abelhas buscam exclusivamente a Ludwigia elegans, uma flor amarela encontrada em brejos. Logo cedo, ao raiar do sol, antes ainda de as flores da Ludwigia se abrirem, o inseto aparece, ajuda a flor a se abrir e coleta o pólen e, na seqüência, o néctar. Feito o trabalho, ela desaparece. Só ressurge no dia seguinte, exatamente no mesmo horário. Forma-se um ciclo biológico acionado pela variação entre escuro e claro – o raiar do dia -, mas com a importante participação da disponibilidade de alimento, que até então não havia sido valorizada. A Tetraglossula percebe que em todo começo de manhã encontra alimento em abundância – um néctar denso, rico em açúcares e aminoácidos. À tarde, ainda há luminosidade, mas o inseto desaparece porque coletou tudo de que precisava e, além disso, dificilmente encontraria mais alimento adequado às suas necessidades naquele dia.
A avaliação do comportamento do mosquito do gênero anófele, inseto de hábitos noturnos e responsável pela transmissão da malária, reservava um desafio maior. Estavam em jogo, afinal, distintos ritmos biológicos: o do parasita, do hospedeiro e do próprio transmissor da doença. Não foi fácil separar essas variáveis. O trabalho de campo envolveu quatro meses de observações, de outubro de 1995 a janeiro de 1996, na encosta da Serra do Marumbi, 6 quilômetros ao norte de Morretes, no Paraná.
Com imenso cuidado para eles próprios não pegarem malária, os pesquisadores concluíram que, na fase adulta, o relógio biológico do mosquito está diretamente ligado aos ciclos lunares: durante o quarto minguante, a população do inseto se torna cerca de cinco vezes maior. Em contrapartida, no estágio de larva, o anófele pode seguir diferentes ritmos de desenvolvimento, já que é uma espécie oportunista, que vive em águas acumuladas em bromélias. Quando o inseto encontra um ambiente propício e atraente, seu crescimento acelera, sem representar problemas metabólicos ou fisiológicos à espécie. Em momentos adversos, quando o anófele se encontra em locais secos ou sob temperaturas baixas, por exemplo, o desenvolvimento é que é atrasado, também sem prejuízos para o mosquito.
Segredos das cavernas
Os colêmbolos Folsomia candida, insetos que habitam as profundezas de cavernas – e os maiores responsáveis pelas noites maldormidas dos biólogos -, trouxeram outras dúvidas. Acreditava-se que esse animal considerado primitivo – sem olhos nem pigmentação – viveria completamente desregulado, numa espécie de caos temporal, já que não teria como contar com as referências de claro ou de escuro. Mas não é assim. Os biólogos da USP não identificaram nenhum indício de um ritmo circadiano ativo, mas detectaram dois outros ciclos muito rígidos: o de oviposição, a cada sete dias, e o de troca de cutícula (pele), a cada três dias e meio.
Mas era preciso confirmar os resultados, fundamentados na observação dos animais em salas escuras no laboratório que simulam seu ambiente natural. A cronobiologia dispõe desde os anos 60 de um método de trabalho que resulta em um gráfico chamado curva de resposta de fase que mapeia o funcionamento do circadiano. O método funciona com base em estímulos que adiantam ou atrasam o relógio biológico. Se uma galinha, por exemplo, dorme às 17 horas e em seguida é acordada com a luz de um holofote, ela se levanta e começa a ciscar, como sempre faz. Uma hora depois, está dormindo novamente. Seu cérebro registra a alteração e faz com que a galinha, no dia seguinte, só caia no sono às 18 horas. Quando repetidas, essas interferências indicam, por meio de um gráfico, o que aconteceu durante as cerca de 24 horas.
As pesquisadoras aplicaram esse método ao colêmbolo, estimulado por meio da variação de temperatura. Confirmaram, primeiro, a ausência do circadiano. Descobriram também que essa metodologia não era eficiente para esse tipo de situação, pois a reposta aos estímulos, avaliados por meio da troca de cutícula e na oviposição, não eram simultâneos. Conclusão: era preciso construir outra abordagem matemática que desse conta também dos ritmos infradianos, já nessa época evidentes, mas ainda pouco explicados.
Foi aí que Mirian pediu socorro aos físicos. Por meio de uma aluna de doutorado, Gisele Akemi Oda, chegou a Iberê Caldas, do Instituto de Física (IF) da USP. Coordenador de um projeto temático sobre sistemas caóticos (veja Pesquisa FAPESP nº 65) e co-orientador de Gisele, Caldas observou atentamente as séries numéricas da equipe do museu – anotações e gráficos sobre o ritmo das atividades cotidianas dos animais, colecionadas durante dez anos – e os interesses científicos se somaram de imediato, com base no princípio físico da oscilação. “Entre uma onda causada por uma pedra atirada na água e outra onda, de uma segunda pedra, há uma interação que não é aleatória”, ensina Mirian. “O mesmo raciocínio vale para os relógios biológicos.”
Juntos, os pesquisadores do Museu de Zoologia e do Instituto de Física criaram um modelo gráfico que detecta as respostas oferecidas a um mesmo estímulo, as organiza matematicamente e produz um retrato de um conjunto de fenômenos, de forma abrangente e articulada. Gisele concluiu o doutorado e em seguida assinou um artigo sobre o novo método de avaliação dos ritmos infradianos com Caldas e Mirian publicado em 2000 no Journal of Theoretical Biology.
Terremotos
Mas o modelo não se mostrou capaz de explicar o ritmo biológico do grilo Strinatia brevipennis, objeto da tese de outra aluna de Mirian, Sonia Hoenen. Considerado uma espécie que faz a transição da zona escura para a clara, já que habita espaços abertos de cavernas da região do Vale do Ribeira, entre os Estados de São Paulo e do Paraná, o Strinatia é intensamente pigmentado e não emite sons. No laboratório, era mantido em gaiolas com paredes feitas de filmes transparentes de acetato, que vibravam de acordo com o movimento dos grilos. Uma agulha, colocada em contato com cada uma das quatro paredes da gaiola, indicava quando o animal estava parado ou em atividade.
O problema é que a quantidade de dados era tão grande – dezenas de páginas apenas para os grilos – que não se sabia mais ao certo quais informações eram importantes e como poderiam ser interpretadas. A resposta, desta vez, veio da sismologia. O geólogo alemão Martin Schimmel, atualmente no Instituto de Ciências da Terra Jaume Almera, na Espanha, fazia o pós-doutorado no Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) da USP quando ouviu falar pela primeira vez dos Strinatia. O pesquisador havia desenvolvido uma maneira de diferenciar dois tipos de ondas sísmicas: as geradas no interior da Terra, que podem provocar terremotos, das que não representam nenhum perigo. Convidado pela bióloga, Schimmel decidiu empregar o mesmo método para interpretar de maneira adequada os registros dos biólogos. Um dia, telefonou para ela e perguntou o que é que os grilos de cavernas faziam a cada 24 horas. Ela exultou ao ver que o geólogo havia conseguido separar os movimentos importantes dos irrelevantes e detectado o ciclo circadiano nesses animais, que a cada 24 horas exibem sono, fome, enfim, uma atividade biológica mais intensa.
“É uma informação antiqüíssima, que os biólogos chamam de característica relictual, provavelmente remanescente dos ancestrais do animal”, explica a pesquisadora, que conta com colaboradores também em universidades da Inglaterra, Alemanha, Canadá e Argentina. O próximo desafio que se impôs é descobrir a plasticidade dos relógios biológicos – até que ponto podem ser comprimidos ou esticados, sem perder suas propriedades. Mirian já sabe que a própria natureza opera com os organismos como o regente de uma orquestra. “Desafiar o regente”, diz ela, “sempre acaba em desafinação, às vezes fatal.”
O projeto
Ritmos de Atividades de Insetos. Implantação de Unidade com Condições Ambientais Constantes (nº 92/04445-9); Modalidade Linha regular de auxílio à pesquisa; Coordenadora Mirian David Marques – USP; Investimento R$ 20.034,65