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Os olhos do deserto

Começa a etapa final da construção do Observatório Pierre Auger no oeste da Argentina com o propósito de captar os raios cósmicos de alta energia

de Malargüe

MIGUEL BOYAYANCiência ao pé dos Andes: é possível olhar além da planícieMIGUEL BOYAYAN

A um passo dos comandos da caixa de controle instalada na parede um dia antes, Sérgio Luiz Carmelo Barroso, um físico de 34 anos, observa a descida da cortina de chamois azul que protege os espelhos de um dos telescópios do Observatório Pierre Auger, em construção no oeste da Argentina. Não parece muito satisfeito. No centro do pano grosso, forma-se um círculo vermelho intenso, como efeito da luz ultravioleta que atravessa uma lente de 5 metros de diâmetro. “Não está ruim”, consola-se, porque seu plano era que nenhuma luz dessa manhã ensolarada de domingo atravessasse a cortina.

“O que queremos é a perfeição.” Barroso e Marcelo Augusto Leigui de Oliveira, de 33 anos, ambos da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), só chegaram à perfeição três dias depois, quando trocaram a cortina azul por uma preta, capaz de barrar por completo qualquer luz. Os dois paulistas trabalharam semanas na penumbra instalando outras caixas de controle e proteções dos espelhos, em meio a largas cortinas de espesso plástico preto que separam cada conjunto de espelhos e lembram os bastidores de um teatro.

Lá fora, sob um céu azul cobalto sem nuvens, os Andes se exibem a oeste com nitidez, os picos cobertos de neve, o corpo alongado como um bloco de madeira dura talhado a golpes secos de facão. Distante pelo menos 100 quilômetros, a cadeia de montanhas mais altas da América do Sul parece próxima por causa da excelente visibilidade, que resulta da baixa umidade e da ausência quase absoluta de poluição. As condições climáticas e a amplidão desta planície, cuja linha do horizonte, a leste, parece fundir-se com um mar imaginário, fizeram dessa região semidesértica argentina o espaço perfeito para abrigar o Observatório Pierre Auger de Raios Cósmicos, um dos maiores e mais ambiciosos empreendimentos da história da física, que neste mês de agosto inaugura uma nova fase.

Começa a etapa de produção, a terceira e última, com a montagem intensiva de equipamentos segundo os padrões testados e definidos nas duas fases anteriores, de protótipo e de pré-produção, que tomaram os últimos três anos. Maior laboratório a céu aberto já projetado, o Pierre Auger começou em fevereiro de 2000 a ocupar os arredores de Malargüe, cidade de estimados 20 mil habitantes (e dois cruzamentos com semáforo) a 420 quilômetros de Mendoza, o centro urbano mais próximo dotado de linhas aéreas regulares.

Para cobrir seus custos, estimados em US$ 54 milhões, formou-se um consórcio com instituições de 18 países. O Brasil participa com R$ 2,5 milhões, por meio de um projeto temático da FAPESP (R$ 1,8 milhão) e do Programa de Núcleos de Excelência em Pesquisa (Pronex) do Ministério da Ciência e Tecnologia (R$ 700 mil). O chairman do finance board, que reúne representantes dos países, é o diretor científico da FAPESP, José Fernando Perez. “O fato de o chairman ser um brasileiro dá a dimensão da importância da pesquisa brasileira para o projeto”, diz ele. O propósito dessa empreitada que reúne 250 cientistas é detectar e interpretar os raios cósmicos, partículas subatômicas com uma energia colossal, pelo menos 100 milhões de vezes superior à daquelas produzidas no mais potente acelerador de partículas, o Tevatron, nos Estados Unidos.

Em termos mais concretos, esses raios cósmicos têm uma energia equivalente à de uma bola de futebol movendo-se a 54 quilômetros por hora ou à de uma bola de tênis após o saque por um profissional como o Guga. Quando estiver operando a plena capacidade, daqui a provavelmente três anos, o Pierre Auger deverá ocupar 3 mil quilômetros quadrados, o dobro da área da cidade de São Paulo, e os resultados que fornecer talvez sejam valiosos para entender uma série de fenômenos físicos, da constituição da matéria à formação do universo. Desde já, porém, impõe-se à paisagem ao pé dos Andes.

Contrastes
Entre touceiras de plantas espinhosas que crescem sobre um solo pedregoso, espalham-se os chamados tanques Cerenkov, cada um com 3,7 metros de diâmetro. Dentro deles há 11 mil litros de água puríssima e, por fora, um painel solar, que lhes fornece a energia armazenada em uma bateria feita pela empresa Moura, de Recife, e usada por um miniprocessador acoplado a uma antena de rádio. A esse conjunto dá-se o nome de detector de superfície, um dos recursos usados para registrar os raios cósmicos de forma indireta, já que ao entrar na atmosfera os raios cósmicos formam trilhões de outras partículas.

Ao atravessarem as paredes do tanque e passarem pela água, as partículas formadas pela fragmentação dos raios cósmicos geram uma radiação azulada, a luz Cerenkov. Captada por sensores, é enviada por ondas de rádio para a sede do observatório, uma construção moderna na entrada de Malargüe, com paredes laterais de vidro, das quais se pode ver, ao longe, fileiras de álamos que nesta época do ano, por causa da seca e do frio, estão cinzas, completamente desfolhados.

Até agora, estão montados 131 tanques, dos quais 50 em funcionamento. Separados por uma distância regular de 1,5 quilômetro entre si, estão alinhados com os detectores de fluorescência, como são chamados os telescópios munidos de espelhos e fotodetectores, os tais olhos-de-mosca que registram a luz tênue emitida pelo nitrogênio do ar após a colisão com as partículas na alta atmosfera – equivalente à energia de uma lâmpada de 5 watts a 20 quilômetros de distância. Por serem tão sensíveis é que os detectores de fluorescência só funcionam às escuras, em noites sem lua, enquanto os tanques captam os raios cósmicos o tempo todo.

O Pierre Auger será o primeiro observatório a integrar esses dois métodos de observação, até hoje adotados isoladamente em observatórios menores, como o Fly’s Eye, que funcionou de 1981 a 1992 nos Estados Unidos com 67 telescópios, e o Agasa, no Japão, com 111 detectores de superfície. Há hoje dois telescópios em operação – só um deles, o número 4, está completo, agora com a cortina de chamois. Ambos fazem parte de um prédio – ou olho – em formato de semicírculo, o Los Leones, que ocupa um morro a 6 quilômetros de Malargüe.

Sob a supervisão de Carlos Escobar, da Unicamp, a equipe brasileira – 22 pesquisadores paulistas, incluindo dois da Universidade de São Paulo (USP), e outros dez do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), do Rio de Janeiro, e das universidades federais fluminense (UFF) e da Bahia (UFBA) – trabalha nos telescópios e na instalação dos tanques, fabricados pela Alpina, uma empresa de São Paulo. No Los Leones, os brasileiros põem para funcionar os motores e as caixas de controles dos shutters, portas que protegem os telescópios.

Têm ainda pela frente a montagem das lentes corretoras – produzidas pela Schwantz, de Indaiatuba, interior paulista – nos outros quatro telescópios a serem instalados em Los Leones. Feitas com vidro alemão, as lentes convergentes em formato de trapézio, com 25 centímetros de altura, formam um anel corretor ao longo das bordas do diafragma, que regula a entrada de luz, como o diafragma de uma câmera fotográfica, e aumenta o raio da lente de 85 para 110 centímetros, sem perder a qualidade da imagem. Quando os shutters e as cortinas estão abertos, a tênue luz gerada pelos raios cósmicos atravessa os filtros ultravioleta e a lente, incide em um espelho parabólico, formado na verdade por 60 espelhos, e se reflete nos fototubos, conjuntos de 440 células de 4 centímetros cada, os olhos-de-mosca.

Luzes raras
De acordo com o planejado, haverá quatro prédios – dos outros três, apenas o segundo, Coihueco, a 60 quilômetros de Los Leones, já está construído, em fase inicial de montagem dos equipamentos. Juntas, as quatro construções terão 24 telescópios, com um ângulo de visão que cobre quase a superfície até 32o do céu do Hemisfério Sul. A planície andina será também pontuada por um total de 1.600 tanques Cerenkov, de modo que se possa captar o maior número possível dessas raras partículas cósmicas. Calcula-se que chegue à Terra uma partícula de alta energia por quilômetro quadrado por século.

Portanto, quanto maior a área ocupada com os equipamentos, maior a probabilidade de registrar mais eventos. Com todos os detectores de superfície e de fluorescência em operação, espera-se registrar 20 ou 30 eventos por ano. Rumo a essa meta, trabalha-se intensamente. No início de julho, físicos eslovenos, italianos, franceses, brasileiros, norte-americanos e argentinos – na maioria pós-doutores na casa dos 30 anos – montavam equipamentos durante o dia nos tanques ou em Los Leones e, à noite, muitas vezes até 3 da madrugada, nas oficinas do prédio da cidade.

E é provável que esse ritmo se intensifique a partir deste mês, quando começa a montagem em série de equipamentos. Pretende-se chegar a dezembro com ao menos 250 tanques e seis telescópios em operação (quatro em Los Leones e dois em Coihueco). Por respeito aos prazos é que, no mesmo domingo em que os dois paulistas testavam a cortina no Los Leones, o francês Xavier Bertou e o norte-americano Patrick Allison subiam os tanques instalados no campo, expostos ao vento frio, montando caixas de controle mais compactas e com menos fios que a versão usada nos tanques Cerenkov mais antigos – o plano deles era terminar a instalação de 50 novos tanques em algumas semanas.

“Às vezes chove por aqui”, diz Bertou, “e o equipamento protótipo não estava bem protegido contra a água.” Quem os visse na oficina da cidade nos dias anteriores, apertando parafusos ou montando com destreza as novas caixas de controle dos tanques, com peças que vieram dos Estados Unidos, da França e da Inglaterra, poderia pensar que seriam eletricistas ou, vá lá, engenheiros, mas dificilmente pós-doutorandos em física de altas energias. “Temos de fazer o que for preciso”, diz o diplomático francês de 30 anos, ligado à Universidade de Chicago, Estados Unidos, que parece desfrutar muito pouco a solenidade de seu cargo de coordenador de operações científicas.

Bertou deixou Paris no começo do ano passado para se instalar em Malargüe e hoje não passa mais sem o chimarrão no final de tarde. Allison, um dos mais jovens integrantes da equipe, tem 26 anos, mas parece ter menos de 20. “Esse garoto é um crânio”, comenta o argentino Ricardo Perez ao observá-lo testando os controles eletrônicos dos tanques. “Graças a ele existe o Auger”, reforça Perez. Foi o jovem norte-americano, doutorando da Universidade da Pensilvânia, quem criou os programas de comunicação entre os detectores de superfície e o escritório central, com o horário exato, a intensidade e a localização precisa dos registros de raios cósmicos.

Mesmo tendo vindo a Malargüe 14 vezes desde que entrou no projeto, há sete anos, Allison ainda fala pouquíssimo espanhol. A razão, ele explica, é que se sente irritado por não conseguir se expressar em outro idioma tão rapidamente como em inglês. Discreto, preferindo falar dos outros, Perez é essencial no dia-a-dia. E não apenas por resolver problemas práticos de instalação dos tanques Cerenkov. Como responsável pela manutenção, esse argentino de 31 anos nascido em Malargüe acompanhou a montagem dos primeiros tanques, que no início não funcionavam por uma razão simples: as vacas do pasto em que ficam os tanques comiam os fios de transmissão de dados.

Foi Perez, técnico em mineração, quem bolou uma caixa de proteção dos fios – e as vacas nunca mais atrapalharam a ciência. Seu valor vai além. Perez parece ter conseguido entender, respeitar e conciliar o estilo de trabalho dos alemães, franceses, norte-americanos e argentinos. “Temos de valorizar as coisas boas e amenizar as deficiências de cada grupo”, comenta Perez, com uma clara visão da grandiosidade desse trabalho. Para ele, o fato de ao menos oito tanques Cerenkov terem sido batizados com o nome de Paz, em português, inglês, espanhol, francês e mesmo em árabe – embora a maioria dos tanques tenha nomes de mulheres, a partir de um primeiro nomeado por pesquisadores cariocas -, significa que é possível deixar de lado a política e estabelecer uma colaboração internacional com objetivos comuns, com base na ciência.

Incertezas
Por meio dos programas de Allison e dos fios agora protegidos das mordidas bovinas (nos controles eletrônicos novos os fios são embutidos), chegaram informações sobre cerca de 300 episódios – alguns registrados ao mesmo tempo por 20 tanques – com energia superior a 1018 (o número 1 seguido de 18 zeros) elétrons-volts (eV), 1 milhão de trilhão de vezes superior à de um elétron. São resultados preliminares, sujeitos a confirmações, mas já num patamar de energia 3 mil vezes mais alto que odos raios cósmicos detectados pelo físico francês Pierre Victor Auger (1899-1993), inspirador desse projeto por ter registrado o primeiro chuveiro de partículas, em 1938.

A esperada matéria-prima da pesquisa começa a chegar. Mas existe um acordo entre os pesquisadores: a despeito da tentação, decidiram não parar para analisar os dados – até porque ainda são considerados poucos – enquanto as obras de construção dos detectores não estiverem próximas do fim. Há, porém, uma questão intrigante que ocupa os momentos de descanso dos físicos. É a diferença – ou discrepância – entre os dados registrados pelos dois tipos de detectores: os de superfície captaram partículas com o dobro da energia da que foi verificada nos detectores de fluorescência, de acordo com os métodos de análise de cada tipo de equipamento (e são as mesmas, sim, porque chegaram exatamente no mesmo horário).

“Os modelos teóricos de análise de dados estão provavelmente errados”, assegura Allison, diante do impasse, que na verdade se exibe como uns dos primeiros trunfos desse gigantesco trabalho: “Se não tivéssemos dois tipos de detectores, não saberíamos que algo pode estar errado”. Não há dúvidas de que é um desafio rever as bases conceituais de algo cuja natureza se desconhece. O que são, afinal, os raios cósmicos? “Podem ser prótons (partículas que formam o núcleo atômico), fótons (partículas de luz) ou mesmo núcleos inteiros de átomos como os de ferro”, diz Miguel Mostafa, engenheiro nuclear de 33 anos que integra a equipe da Universidade do Novo México, Estados Unidos.

Antes de se mudar, há um ano, para Albuquerque, no Novo México, esse argentino de Bariloche fez o pós-doutoramento na Universidade de Turim, na Itália, com Rosanna Cester – com mais de 70 anos, ela acompanha pessoalmente a construção das lentes dos telescópios. Foi ela quem orientou o pós-doutoramento de Marcelo Oliveira de fevereiro de 2000 a maio de 2001 e agora faz o mesmo com Michela Chiosso, doutoranda que em julho trabalhava num contêiner anexo a Los Leones no aparato de emissão de laser que controla a precisão dos detectores de raios cósmicos.

“Por enquanto”, prossegue Mostafa, deliciando-se com as dúvidas que os motivam a trabalhar, “os raios cósmicos podem ser qualquer coisa, porque não sabemos de onde eles vêm, nem como se formam e se aceleram.” Acredita-se que sejam partículas formadas num raio de até 3,2 milhões de anos-luz (1 ano-luz corresponde a 9,5 trilhões de quilômetros), nas bordas ou logo além de nossa galáxia, a Via Láctea, e interajam com fótons remanescentes do Big Bang, a explosão que teria originado o universo.

Numa demonstração de como até mesmo os conceitos básicos estão sujeitos a ajustes, Mostafa diz que as partículas cósmicas devem entrar na atmosfera em linha reta a partir do ponto em que se formaram, enquanto o norte-americano Brian Fick, físico da Universidade de Utah, Estados Unidos, e um dos líderes do grupo, com 50 anos, cogita outra possibilidade: “Pode ser que os campos magnéticos, que são fracos, mas estão em toda parte, desviem as partículas”. O problema é que ninguém mediu ainda os campos magnéticos extragalácticos, cuja intensidade varia 500 vezes, de acordo com o modelo teórico que se adotar.

Outro ponto da teoria a ser revisto é o chamado limite GZK, abreviação dos sobrenomes de três físicos, Kenneth Greisen, George Zatsepin e Vadem Kuzmin, que em 1966 postularam que os raios cósmicos com energia superior a 5 x 1019 eV seriam absorvidos à medida que viajassem pelo espaço e nunca seriam observados na Terra. Mas foram. O Fly’s Eye registrou em 1993 partículas com 3 x 1020 eV – são justamente as partículas com esse patamar de energia as mais aguardadas no Pierre Auger, porque poderão dizer se esse recorde mundial é realmente válido ou se houve algum erro nas medições. O que já se conhece relativamente bem é o processo de fragmentação dos raios cósmicos, o chamado chuveiro de partículas.

Ao entrar na atmosfera terrestre, vindos sabe-se lá de onde, em apenas 100 microssegundos – eis outra razão para a sofisticação dos equipamentos -, os raios cósmicos colidem com as partículas do ar, em especial o nitrogênio, e se desfazem, em sucessivas colisões, formando cerca de 10 trilhões de partículas, captadas pelos detectores por meio da luz que produzem. O eixo do chuveiro, a uma distância de até mil metros do ponto da primeira colisão, é constituído por prótons, elétrons e fótons. Nas laterais e nas regiões mais baixas, formam-se, além dos elétrons, outros tipos de partículas, como múons (semelhantes aos elétrons, mas 200 vezes mais pesadas) e neutrinos, aparentemente com massa muito reduzida.

Mas reconstituir o chuveiro em detalhes e conhecer a direção e a natureza da partícula que o originou “é como descobrir a cor do cabelo de seu tatatataravô a partir de sua própria cor de cabelo”, compara Barroso. O privilégio de lançar hipóteses mais concretas sobre que raios são os raios cósmicos talvez seja do indonésio Richard Randria, assíduo piloto dos computadores da Central de Aquisição de Dados, no primeiro andar do edifício da cidade, para a qual convergem os registros dos detectores de superfície e de fluorescência.

Desde que entrou no projeto, há um ano e meio, como integrante da equipe da Universidade de Jussieu, em Paris, esse engenheiro eletrônico de 29 anos que já morou na Guiana e em Lisboa fez cerca de dez programas para tratar as informações dos diferentes estágios da cascata de partículas. “Tenho de prever o futuro e preparar os programas para lidar com uma quantidade muito elevada de informações”, diz Randria. Ele sabe: as informações que circulam por esses computadores, depois de analisadas, podem derrubar ou confirmar modelos de interação de partículas atômicas, de evolução de estrelas e de constituição do universo.

A perspectiva de contribuir para rever as leis básicas da física parece ser um estímulo para encarar as viagens de avião até Mendoza e depois as seis horas de carro ou ônibus (com sorte, Randria gasta 41 horas de Paris a Malargüe). Quando descobrirem o que são os raios cósmicos, é provável que se apaguem do rosto dos cientistas os sinais de cansaço, a ansiedade ou a inquietação pelo atraso dos equipamentos, pelo frio irritante e pelas coisas que custam a dar certo.

“Será um dia de satisfação, mas talvez seja um pouco triste”, imagina Fick, que trabalha no Auger desde 1992, quando esse projeto era apenas uma idéia. Neste momento, vendo os cientistas trabalhando neste fim de mundo, vem à mente um conto do escritor baiano João Ubaldo Ribeiro a respeito de um homem que tentou durante anos pescar um robalo. O peixe sempre fugia, parecia gostar da perseguição, até que um dia se entregou. O homem lhe acertou o arpão e levou-o à mesa, em silêncio, com a impressão de que naquele dia o peixe queria morrer. Algo havia se perdido. Sim, de fato, a ciência é uma pescaria que exige resultados.

Destas mesmas terras argentinas, que há 150 milhões de anos eram um golfo, já se desenterraram ictiossauros, crocodilos marinhos e esqueletos que levaram à conclusão de que neste trecho da Argentina a ocupação humana começou há cerca de 7 mil anos. Mas os físicos não têm nenhuma garantia de que o céu lhes será tão generoso. Como em qualquer empreendimento científico, não é inteiramente descabida a possibilidade de que essas partículas se mantenham enigmáticas mesmo com o Pierre Auger funcionando a plena capacidade. “Pode ser que cheguemos à conclusão de que é preciso construir algo ainda maior”, cogita Oliveira da Unicamp. “Só daqui a 20 anos saberemos.”

Os Projetos
1. Observatório Pierre Auger (99/05404-3); Coordenador: Carlos Ourívio Escobar – Unicamp; Investimento: R$ 1.884.287,12 (FAPESP) e R$ 600 mil (Pronex, MCT).
2. Projeto Pierre Auger; Coordenador: Ronald Cintra Shellard – CBPF; Investimento: R$ 100 mil (MCT)

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