Pegue um fio de cabelo. Olhe para ele e tente imaginar uma espessura 10 mil vezes menor do que essa insignificância em suas mãos. Pronto, é disso que vamos tratar. Ou, melhor, de como a ciência lida com objetos desse tamanho, essas minúsculas superfícies obtidas no universo dos nanômetros, a escala que mede átomos e moléculas equivalente à divisão do metro em bilhões de vezes. Impossível, dessa forma, ver a olho nu ou manipular um objeto nanométrico sem um arsenal de equipamentos, tendo à frente os microscópios eletrônicos mais avançados, que permitem acesso a um mundo antes intocado e capaz, agora, de gerar conforto, negócios e riquezas.
Assim, as descobertas em torno dos nanomateriais inauguram uma nova etapa na escala industrial. O Brasil, desta vez, está em condições de corrigir uma rota desprezada no passado, quando a microeletrônica introduziu o chip, ditando o roteiro da atual modernidade. Há consenso de que o país dispõe de boa infra-estrutura e de pessoal qualificado para fazer nanociência. Precisa agora superar um sério desafio para tornar-se competitivo: tem de somar competências. Um dos caminhos para atingir esse objetivo e atrair a atenção de investidores que transformem esse conhecimento em produtos é uma ação conjunta preparada por um grupo de pesquisadores apoiados pela FAPESP e por executivos da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp).
A idéia é promover palestras e exposição de programas e projetos já existentes e apoiados pela Fundação. O encontro, ainda sem data definida, deverá permitir, de um lado, a identificação das necessidades do setor privado para a aplicação de pesquisa dirigida. De outro, pretende estimular e ampliar a participação e o potencial empreendedor de cientistas e pesquisadores. Para tanto, uma seleção de trabalhos em nanotecnologia estará em uma mostra aberta ao público nas próprias dependências da Fiesp, de maneira a tornar o tema mais concreto para uma platéia que desconhece o assunto ou tem poucas referências sobre ele, além de mostrar a capacidade brasileira em se habilitar para entrar na corrida em paralelo às potências mundiais.
A coordenação desse trabalho é do físico e professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Cylon Gonçalves da Silva, que liderou a implantação do Laboratório Nacional de Luz Síncrotron, do Ministério da Ciência e Tecnologia, em Campinas. Ele foi responsável também pela proposta de um Programa Nacional de Nanotecnologia no governo passado e coordenador do projeto de um Centro Nacional de Referência em Nanotecnologia. “Essas propostas visavam colocar o debate sobre a nanotecnologia para fora dos muros acadêmicos no Brasil”, comenta Cylon.
Vidro autolimpante
A revolução patrocinada pela chegada das nanoestruturas cria inovações na área da engenharia de materiais que, ainda limitadas pelos elevados custos operacionais, começam a ganhar escala industrial. Caso evidente é o do vidro autolimpante, lançado em 2002 na Europa. Sobre ele é aplicado uma película com espessura de 40 nanômetros, com incrustações de partículas de óxido de titânio (TiO2). Quando a luz ultravioleta existente nos raios de sol bate no vidro, ocorre uma mudança no estado de oxidação que rouba os elétrons de bactérias, fungos e outros microrganismos, matando esses seres. A película também proporciona alta tensão superficial fazendo a água não grudar no vidro.
Ela se transforma em esferas e cai ao chão levando as sujeiras. As poeiras e outras substâncias que aderem ao vidro junto com a água são também eliminadas. Sem microrganismos e sem água fica mais fácil o vidro ficar limpo.O preço desse novo produto está entre 30% e 40% acima das linhas convencionais em uso. A opção autolimpante economiza, a longo prazo, gastos de limpeza. Situação que deverá se repetir em breve na indústria têxtil com a chegada de tecidos à prova de manchas, já desenvolvido e, atualmente, em fase experimental nos Estados Unidos.
A empresa Nanotex tem a proposta de trabalhar em engenharia molecular em nível nanométrico e submicrométrico da fibra para produzir esses tecidos. Devido a um processo similar ao aplicado no vidro, um tratamento com nanopartículas atribui ao pano a propriedade de repelir líquidos. Pode-se derramar café quente ou Coca-Cola gelada que nada pega. Será o paraíso das donas de casa e dos desastrados em geral. Os avanços das utilizações práticas reforçam as projeções crescentes de investimentos na área de nanotecnologia.
Somente no último ano, os recursos globais mais que dobraram. Países como Estados Unidos, Japão, China, Canadá, Coréia do Sul, Taiwan, Austrália e a União Européia aplicam algo em torno de US$ 5 bilhões por ano entre capital privado e estatal em pesquisas no segmento. A National Science Foundation (NSF), fundação norte-americana de fomento à ciência, por seu lado, estima um mercado global para produtos e processos baseados em nanotecnologia capaz de atingir US$ 1 trilhão em dez ou, no máximo, 15 anos. No Brasil, cálculos preliminares do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), que elabora um Programa Nacional de Nanotecnologia, projetam R$ 1,2 bilhão em investimentos para os próximos quatro anos, sendo 30% desse total provenientes do setor privado por meio de estímulos patrocinados pelo governo.
A intenção é dirigir os investimentos para áreas prioritárias previamente definidas como agropecuária, petroquímica, comunicação, saúde e indústria aeronáutica. Dada a importância que a nanotecnologia começa a assumir no cenário mundial, o professor Cylon acredita que a métrica de sucesso para a implantação de qualquer programa voltado para a área no Brasil deveria considerar a conquista de uma fração do mercado global em nanotecnologia, desenvolvida no país por empresas e centros de pesquisas nacionais. Entusiasta do tema e de suas perspectivas, particularmente no Estado de São Paulo, onde se concentra boa parte da pesquisa em nanociência, ele tem se dedicado nos últimos dois anos, por meio de palestras e apresentações, a provocar um despertar do empresariado para a questão.
No início de julho, Cylon esteve em Santa Catarina, na sede da Embraco, uma empresa nacional que é líder mundial na fabricação de compressores usados em geladeiras e afins, para falar desse futuro nanométrico. “Lá, eles já estão preocupados com o que poderá acontecer com a indústria de refrigeração em decorrência dos avanços nessa área”, conta o professor. “As novas tecnologias podem tornar obsoleto o principal produto deles, os compressores, assim como o transistor acabou com a válvula eletrônica”, exemplifica. “Esse horizonte se reproduzirá em muitos outros segmentos da economia.”
Para garantir que empresas de porte e da importância de uma Embraco continuem existindo e empregando dentro do Brasil, em vez de correr o risco de outros países assumirem a liderança se habilitando em novas tecnologias, é fundamental o apoio da pesquisa científica direcionada para atender às necessidades do setor privado. Evidentemente que a contrapartida esperada do empresariado requer maior envolvimento no financiamento desses estudos, como o incentivo na formação de pequenas empresas de caráter altamente tecnológico.
Peneiras moleculares
No universo da nanotecnologia, o país não está tão atrasado em relação aos outros. O conhecimento acumulado nesse campo ainda é bastante inicial nos quatro cantos do globo. Um exemplo da situação promissora no Brasil está no empenho do pesquisador Aparecido dos Reis Coutinho, professor do Grupo de Área de Física da Universidade Metodista de Piracicaba (Unimep), em erguer um negócio voltado para aplicações práticas de suas descobertas que resultou na empresa Multivácuo. Com uma proposta de pesquisa dirigida para a síntese de peneiras moleculares a partir de materiais à base de carbono, Coutinho recebeu financiamento do Projeto de Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (PIPE) da FAPESP. Atualmente, ele está concluindo a montagem de uma planta piloto para produzir um quilo diário de peneira molecular de carbono (PMC).
As PMCs são materiais com estrutura porosa com predomínio de nanoporos, classificadas em função de tamanho e forma. Integram a família dos materiais carbonosos avançados, produtos de baixo peso e alta resistência, e são aplicadas em processos especiais de absorção, como controle e purificação do ar atmosférico, processos de separação de gases, sistemas industriais que empregam vácuo ou ar comprimido, separação de impurezas orgânicas e recuperação de solventes, em cromatografia gasosa, entre outras possibilidades.
O pesquisador revela que deverá assinar um contrato comercial com a Petrobras para fornecimento dessas peneiras moleculares de carbono, que serão usadas em sistemas de armazenamento de gás natural, a ser empregado em tanques de veículos automotores. A intenção é diminuir a pressão no armazenamento de gás natural e possibilitar a diminuição das paredes de aço, além da adoção de outros formatos de tanque. O emprego das PMCs dentro desse recipiente promoverá a adsorção do gás natural pelos nanoporos da estrutura carbonosa (nesse caso, denominado de gás natural adsorvido-GNA), o que possibilitará a redução do volume do tanque e a diminuição da pressão de armazenamento do combustível.
“A concretização do contrato de fornecimento com a Petrobras possibilitará ampliar em um curto espaço de tempo a produção para 10 quilos por dia e, no futuro, a implementação de uma unidade industrial de PMC.” A importância inicial está no fornecimento dessas peneiras para pesquisas realizadas por vários grupos que importam esses produtos. Fora as aplicações dos materiais carbonosos em segmentos industriais, outro de potencial mercado é o da saúde, para a incorporação da tecnologia em filtros usados em tratamento de hemodiálise nos pacientes que sofrem de insuficiência renal.
Atualmente, o Brasil importa dos Estados Unidos e Europa praticamente todo o material desse tipo de filtragem. O mais recente motivo de orgulho para Coutinho foi encaminhar para o Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) o registro de patente do processo de produção das peneiras moleculares de carbono em reatores de plasmas a frio por meio de gases ionizados obtidos por corrente elétrica e em temperatura ambiente. O uso desse reator foi a grande inovação nesse processo que contou com a participação fundamental e decisiva de pesquisadores do Laboratório de Plasmas e Processos do Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA), na forma de assessoria técnica.
O uso da tecnologia de plasmas frios apresenta como vantagens, em relação ao processo convencional, a obtenção de PMC com estrutura nanoporosa mais ordenada, a redução do tempo de ativação dos materiais, além de se constituir em um processo limpo, do ponto de vista ambiental. Em área similar à de Coutinho, no que também já resultou em parceria com a Petrobras, o químico e professor Jairton Dupont, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), buscou retirar compostos do petróleo que poluem o ambiente utilizando os recursos da nanotecnologia. Desenvolveu nanocatalisadores – catalisadores são substâncias que aceleram ou modificam as reações químicas – que permitem diminuir a concentração dos compostos aromáticos durante as fases de refino de petróleo quando aparecem a gasolina e o benzeno.
Assim, a combustão dos motores a gasolina, por exemplo, fica mais completa, sem deixar no ar resíduos que podem ser cancerígenos e contribuir para a formação de chuva ácida. O catalisador, patenteado em conjunto com a Petrobras, agrega ainda a vantagem de ser reaproveitado, sendo que as reações podem ser realizadas em condições brandas de pressão e temperatura (60° C e apenas 2 atmosferas). Os normalmente empregados nesse tipo de reação funcionam em temperatura e pressão elevadas (300° C e 150 a 200 atmosferas). Dupont contou até fevereiro com o apoio financeiro do Fundo Nacional do Petróleo (CTPetro). Agora, ele recebe financiamento direto do Centro de Pesquisas da Petrobras (Cenpes).
Sempre tendo em mente o custo e a facilidade de produção no desenvolvimento de métodos de síntese que possibilitem o processamento de materiais nanométricos, o professor Edson Roberto Leite, do Centro Multidisciplinar para o Desenvolvimento de Materiais Cerâmicos (CMDMC), um dos dez Centros de Pesquisa Inovação e Difusão (Cepids) da FAPESP, está elaborando uma série de tecnologias que devem ganhar o mercado em breve. Em seu laboratório na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), ele trabalha com materiais nanoestruturados desde 1999. As principais linhas de atuação são em torno de nanocristais de óxidos cerâmicos e filmes finos nanoestruturados.
“Os trabalhos mais avançados que permitem pensar em comercialização são os relacionados ao desenvolvimento de catalisadores nanocompósitos. Esses produtos têm aplicações em reações catalíticas em alta temperatura, tais como reforma do metano e oxidação do metanol, processos usados para a geração de hidrogênio”, explica o professor Leite. “Estamos trabalhando também no desenvolvimento de precursores moleculares para geração de nanopartículas de óxidos metálicos com financiamento de uma empresa nacional que ainda não permite a divulgação”, completa.
Papel eletrônico
Muitas das pesquisas em andamento envolvem compromissos com estratégias que desaconselham sua divulgação, dado o ambiente de concorrência. Nesses casos, a reserva e a cautela costumam ser a regra. Edson Leite pondera que entre os projetos coordenados por ele existem aqueles com propensão à aplicação prática ainda neste ano, dependendo de investimentos do capital privado, e outros em estágio de desenvolvimento para uma média de três a seis anos para implantação. “Sem dúvida a área de catalisadores é a de mais curto prazo para implementação.” Os nanocompósitos devem revolucionar os materiais para catálise, possibilitando uma série de avanços, principalmente na geração de energia limpa e controle de poluição e do meio ambiente.
“Na área eletrônica, por exemplo, estamos trabalhando em um projeto para desenvolver filmes finos transparentes e condutores para deposição em substratos flexíveis que vão permitir a criação de displays de cristal líquido (LCD) maleáveis e originar um tipo de papel eletrônico considerado para substituir, no futuro, as páginas de livros, revistas e jornais. Isso só pode ser viável com a obtenção de nanopartículas. Outro projeto nessa área é o desenvolvimento de filmes finos superparamagnéticos com potencial aplicação em memórias magnéticas.”
Língua eletrônica
Uma história que endossa o futuro animador do país na área de nano vem do árduo, mas bastante saboroso, trabalho efetuado por pesquisadores da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), em São Carlos, ao longo de oito anos. Coordenados pelo engenheiro de materiais Luiz Henrique Capparelli Mattoso, em parceria com a Universidade de São Paulo (USP), eles criaram a primeira “língua eletrônica” à base de polímeros condutores nanoestruturados, baseada em filmes ultrafinos compostos por moléculas “desenhadas” para reagir às substâncias. Construíram assim um dispositivo mais sensível que a língua humana para degustação e análise de bebidas. O equipamento, dotado de um conjunto de sensores que desempenham função semelhante à das papilas gustativas, consegue atingir a eficiência de um enólogo.
Tem capacidade, por exemplo, para identificar com precisão um vinho tinto produzido de uvas Cabernet Sauvignon ou Chardonnay, assim como dá conta de detectar diferenças quase imperceptíveis ao paladar humano, existentes entre várias marcas de água mineral ou tipos de café, chegando a ter uma sensibilidade até 10 mil vezes maior que o ser humano para detectar os paladares-padrão, como a presença de açúcar ou sal em água. O invento, formulado com financiamento da FAPESP, foi patenteado em vários países e tem perspectiva de amplo uso industrial.
Já é adotado pela Associação Brasileira da Indústria do Café (Abic) e poderá ajudar no controle ambiental, monitorando os níveis de contaminação por metais pesados e pesticidas em rios e mananciais, assim como controlar a qualidade da água nas estações de tratamento. Na indústria alimentícia, a língua terá o papel de aumentar o rigor do controle de qualidade na fabricação de bebidas.
Por enquanto, o equipamento está apto para operar com vinhos, café e água mineral, mas os pesquisadores já estão desenvolvendo sensores para analisar leite, suco de uva e de laranja. Na indústria farmacêutica, a língua eletrônica pode ser usada para testar medicamentos e melhorar o sabor dos remédios amargos. Há mais tempo na estrada do nanomundo está o pesquisador José Maciel Rodrigues Júnior, com dez anos de trabalhos desenvolvidos com sistemas nanoestruturados, inicialmente na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e atualmente na Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto. “Estamos incubando agora em agosto a Nanocore Biotecnologia, no campus da universidade”, conta ele.
“Acredito que seja a primeira empresa brasileira com uma plataforma em micro e nanotecnologia.” Eles começaram produzindo nanopartículas biodegradáveis, no formato de nanocápsulas que envolvem o princípio ativo de medicamentos e até de vacinas, capazes de interagir somente quando atingem o alvo, muito usadas em tratamentos quimioterápicos e também na indústria de cosméticos. “O atual investimento é em uma planta industrial para produção de microesferas para viabilizar estudos clínicos de medicamentos”, explica.
Instrumentos de luz
As conquistas que podem ser mobilizadas para projetos maiores, em escala de importância econômica, e que dêem expressão ao país no âmbito da nanotecnologia já somam experiências consideráveis. Há também instrumentos potentes disponíveis, como a fonte de luz síncrotron e o mais poderoso microscópio eletrônico para fazer nanociência na América do Sul, instalados no Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS), em Campinas, mantido com recursos do MCT. Ele é aberto a profissionais tanto de instituições de pesquisa públicas e privadas como para empresas. A expansão das fronteiras do conhecimento e da evolução da humanidade tem sido pontuada pelo domínio dos materiais e das fontes de energia, como gosta de explicar Cylon: “A nanotecnologia prenuncia uma nova onda de inovações, como acontece desde a Revolução Industrial, quando se aprendeu a manipular algumas fibras naturais (algodão, lã) em grande escala e criou-se a indústria têxtil. Ela é a última onda tecnológica possível, porque manipula o elemento básico dos materiais que é o átomo”.
Os Projetos
1. Sistema de peneiras moleculares a partir de precursores de carbono (nº 00/13406-5); Modalidade Programa de Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (PIPE); Coordenador Aparecido dos Reis Coutinho – Multivácuo; Investimento R$ 307.112,00 e US$ 4.538,00
2. Catalisador nanocompósito e seu processamento (nº 02/04725-5); Modalidade Programa de Apoio à Propriedade Intelectual (PAPI); Coordenador Edson Roberto Leite – UFSCar; Investimento R$ 6.000,00
3. Caracterização de sensores poliméricos de interesse na agroindústria (nº 00/11177-9); Modalidade Linha regular de auxílio à pesquisa; Coordenador Luiz Henrique Capparelli Mattoso – Embrapa; Investimento R$ 32.470,12 e US$ 31.794,55