Imprimir PDF Republicar

Capa

A emenda do soneto

Será que o país precisa mesmo de uma reforma de seu sistema eleitoral?

“A reforma política é a mãe de todas as reformas,” afirmou o presidente do Senado, Renan Calheiros. A partir da recente CPMI dos Correios, o apreço filial por mudanças no sistema político nacional está presente no discurso de acusados e acusadores, incluindo-se o polêmico deputado Roberto Jefferson, que, em seu depoimento, a invocou como panacéia para a corrupção. “Instituições não criam corruptos. Precisamos de algumas mudanças, mas nada radical, sob pena de, na contramão do esperado, cortarmos canais de acesso importantes da população ao sistema político,” avisa Argelina Figueiredo, coordenadora do projeto Instituições políticas, padrões de interação Executivo-Legislativo e capacidade governativa (que tem apoio da FAPESP), em parceria com Fernando Limongi. “A performance do sistema político brasileiro não é tão negativa e não justifica propostas de reforma política, ao menos não com esta urgência e/ou profundidade com que o tema é tratado ante a opinião pública. Reformas não são antídotos para as crises e seu efeito sobre a composição da classe política é duvidoso e incerto,” diz.

A discussão sobre uma reforma política é multifacetada, mas tem quatro pontos recorrentes e sobre os quais não existe consenso: a fidelidade partidária, a fim de diminuir a migração entre partidos; a adoção de uma lista fechada, ou seja, os partidos ordenariam a lista de seus candidatos antes das eleições, restando ao eleitor apenas votar na legenda, o que supostamente terminaria com o “individualismo” eleitoral; a cláusula de barreira, que prevê o cancelamento do registro do partido que não conseguisse eleger ao menos um representante para o Congresso Nacional, ou que não obtivesse ao menos 50 mil votos; um sistema de financiamento público de campanhas, que poria fim ao chamado caixa dois.

“Precisamos tomar cuidado com o hiperinstitucionalismo ingênuo que acredita que tudo pode ser modificado por instituições públicas, apenas pela existência de regras,” analisa Limongi. Para os autores, a emenda poderia sair pior do que o soneto: “Em nome da “governabilidade” e da eficiência governamental não é necessário mudar o sistema de governo e restringir ainda mais os direitos parlamentares e, muito menos, estabelecer barreiras de entrada no sistema político, impedindo que demandas sociais sejam canalizadas pelo Legislativo,” dizem os pesquisadores. “Não há razão para diminuir o número de partidos e dar maiores vantagens aos líderes partidários. As reformas restringiriam o papel do Congresso na definição da agenda governamental e sua influência autônoma na formulação de políticas públicas,” observam.

As críticas ao sistema atual são conhecidas: a democracia brasileira ainda estaria em processo de consolidação e se veria sempre ameaçada por uma “crise de governabilidade” por causa do multipartidarismo e da representação proporcional. Para os reformistas, a incorporação crescente das massas ao processo político resultaria num excesso de demandas que, não atendidas, levariam a um radicalismo que minaria as bases da democracia. Seria preciso sacrificar as muitas escolhas possíveis em nome da criação da maioria, da convergência da vontade do eleitor para o centro. “O metro usado para distinguir a vitalidade das instituições é dado pelo grau de restrição imposto às preferências dos eleitores. Segundo esse raciocínio, são fracas as instituições que espelham ou refletem essas preferências. São fortes as que atuam sobre os eleitores, impedindo que estes levem à polarização e à radicalização,” analisa Limongi.

Poucos partidos e partidos fortes: diminuindo as opções dos eleitores e restringindo suas vontades, a democracia sairia fortalecida. Os pesquisadores discordam. “Não é verdade que o governo brasileiro se encontra imobilizado por excessivas demandas da sociedade que se expressam sem filtros no sistema político,” asseguram. Os autores também discordam das críticas a uma suposta fraqueza do presidencialismo, que, num regime de muitos partidos, acabaria sempre gerando governos minoritários que se veriam obrigados a barganhas individuais com membros do Legislativo, fazendo concessões em detrimento do bem-estar geral e da agenda governamental.

“Essas críticas equivocadas partem do princípio de que o presidencialismo de coalizão, ao contrário do parlamentarismo, é impossível,” diz Limongi. “Mas as evidências não sustentam a afirmação de que o apoio obtido pelo Executivo tenha resultado fundamentalmente da barganha individual com parlamentares. Os partidos se comportam disciplinadamente, na contramão do que se afirma, e como atores coletivos. Verificamos que os presidentes do período pós 1988 comandaram coalizões partidárias que foram responsáveis pela aprovação da agenda legislativa do governo,” avisam os autores. Segundo eles, o sistema político brasileiro não opera de forma muito diferente do parlamentarismo, pois os presidentes formam o governo da mesma maneira que os primeiros-ministros: distribuindo ministérios aos partidos e formando uma coalizão que asseguraria os votos necessários no Legislativo. “Temos um presidente forte e um sistema decisório fechado que impede o individualismo congressual,” observa Argelina. As exceções confirmariam a regra.

Lula
“Collor estava em minoria e acreditava que poderia enfrentar o Congresso com o apoio popular. Lula, no seu primeiro ano de governo, também optou por um governo minoritário, chegando a desautorizar José Dirceu a negociar uma coalizão efetiva com o PMDB. Ele pensava que conseguiria apoio apenas em função de sua agenda, sem ceder espaço no governo,” avalia a autora. E nisso, completa ela, aproximou-se da política parlamentarista, até porque, de início, contou com o apoio dos partidos de oposição. Foi, porém, obrigado a voltar atrás. “A coalizão de Lula é diferente da feita por FHC.”

“Em seus mandatos, a união entre PSDB e PFL funcionou bem, até porque o governo soube controlar os partidos, que se reuniram em torno da agenda de estabilização monetária e da inserção no mercado internacional.” Já a relação do PT de Lula com o PL, de organização mais fraca do que o PFL (inserido há um longo tempo na engrenagem governamental), é delicada. “Ao contrário do PSDB, o PT tem em seu interior vertentes ideológicas muito diferentes, o que dificulta o controle do partido pelo presidente. A resultante desses fatores foi a necessidade de agregar muitos parceiros numa coalizão heterogênea que complica a vida política do governo,” fala Argelina. Para ela, independentemente do sistema de governo, uma coalizão funciona melhor quanto menor for o número de parceiros e a diversidade entre eles.

Segundo os resultados da pesquisa, isso poderia ser diferente, pois, afirmam os autores, “os nossos partidos são atores coletivos e as bancadas, ao contrário do mito tão propalado, são disciplinadas.” De 1989 a 1999, nas 675 votações acontecidas na Câmara dos Deputados, observou-se a indicação do líder partidário e nove em cada dez parlamentares votou com o seu partido. Assim, cada vez mais, o governo se vê obrigado a conversar com o partido em vez do deputado individual. “O sistema político brasileiro não gera as condições motivacionais e nem mesmo institucionais para que políticos baseiem suas carreiras políticas exclusivamente em vínculos pessoais e apartidários com os eleitores e com o Executivo,” revelam os autores.

Mais um fator que, asseveram os professores, vai de encontro à necessidade de uma “lista fechada”, como a preconizada pelos reformistas. “Se os partidos agem disciplinadamente no Congresso, a lista aberta é um falso problema. Além disso, a lista fechada eliminaria a participação do eleitor na competição intrapartidária, diminuindo sua chance de intervenção. O sistema atual é melhor, pois se dá em dois estágios: uma eleição no interior do partido e depois a escolha do candidato pelo eleitor,” observa Limongi.

Um outro bom exemplo de que é exagerada a visão pessimista sobre o sistema político nacional é o novo processo orçamentário, que conseguiu minorar as chances de corrupção. “As emendas individuais não são privilegiadas pelo Legislativo. Os regulamentos internos ao Congresso garantem às emendas coletivas a apropriação da maior parcela dos recursos alocados. Tudo ocorre sem a intervenção do Executivo. Isso coloca sob suspeição a noção de que o processo orçamentário é orientado basicamente para atender interesses locais ou particularistas de clientelas dos parlamentares,” avaliam os pesquisadores.

Para eles, a soma desses e outros fatores é uma prova de que o “voto pessoal” está sendo gradativamente neutralizado, seja pela concentração dos poderes nas mãos do Executivo, seja pelo aumento do poder das lideranças partidárias. Mas o excesso de certos remédios pode provocar outras doenças. “Algumas propostas de reforma política sugerem elevar ainda mais o poder das lideranças. Hoje a força desses líderes no Congresso é tão grande que os deputados são obrigados a obedecê-los totalmente para poder atuar. São esses dirigentes que definem a participação dos parlamentares em mesas, secretarias etc. e, dessa forma, controlam a atuação dos colegas de bancada,” nota Argelina.

Se, por um lado, observa, isso garante uma atuação partidária coesa, por outro, estimula a mal-afamada troca de siglas, o “troca-troca” partidário. “As trocas, por paradoxal que possa parecer, não são provas do individualismo da nossa classe política. Antes o contrário. O estímulo para as migrações no período recente vem das lideranças partidárias. São os líderes partidários que têm incentivos para atrair deputados para suas siglas,” afirma Limongi. Seria preciso, então, “amarrar as mãos deles, retirar-lhes a tentação de atrair quadros para o partido. É preciso outros incentivos para que o deputado fique no partido em que foi eleito, mais do que a fidelidade artificial por força de lei,” reforça Argelina.

Efetivamente, não há lógica em forçar um deputado a permanecer no seu partido como forma de coibir a migração entre partidos por parlamentares que buscam interesses particulares. Afinal, alguém que supostamente se venderia no PL continuaria aberto a negociações caso debandasse para o PFL, por exemplo. O problema, como notam os autores, parece mesmo estar nos líderes. Hoje, lembram, eles e o presidente da Mesa estabelecem a pauta dos trabalhos e têm direitos procedimentais que lhes permitem controle estreito sobre o processo legislativo e sobre o comportamento do plenário.

Do outro lado da Esplanada, o Executivo tem a seu favor o poder da edição de medidas provisórias. A MP é capaz de modificar a estrutura da escolha parlamentar e faz do presidente o principal legislador da nação. Ainda que as MPs precisem ser aprovadas pela maioria dos parlamentares, o Executivo consegue uma alta taxa de sucessos na aprovação de seus projetos, não só determinando a pauta dos trabalhos legislativos como influindo em seus resultados. “O padrão de produção legislativa observado no Brasil não se encontra muito distante da performance dos regimes parlamentaristas, seja pelo prisma da iniciativa, seja em relação ao grau de sucesso das proposições do chefe do Executivo,” afirmam os pesquisadores. Assim, o que reformar?

Um dos pontos em discussão a favor das mudanças é o financiamento das campanhas. “Há um novo mito no mercado: diz-se que as campanhas brasileiras são as mais caras do mundo. Não creio que saibamos qual o custo real das campanhas em todos os países do mundo. Os dados sobre o Brasil vêm de estimativas, quando não de puros chutes,” pondera Limongi. Dessa forma, nada garante que a proposta do financiamento público de campanhas seja uma medida eficaz contra o mal maior e atual do caixa dois. “Público ou privado”, não será com esse tipo de alteração que acabaremos com essa prática. Adotar o caixa um não garantiria o fim do dois. “O que é necessário é incentivar os financiadores a fazer doações legais por meio de incentivos fiscais. Pode-se também fazer uma previsão de gastos dos partidos e exercer maior fiscalização sobre eles. Mas levando em conta um teto de financiamento realista, não ideal,” diz Argelina. O que, talvez, evitasse os embates atuais no Congresso, em que deputados e senadores acusam uns aos outros de subestimar no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) os gastos reais feitos em suas campanhas. “Os 20 anos de autoritarismo, em que a sociedade foi proibida de se expressar, contribuíram para a ampliação da corrupção,” acredita a pesquisadora.

Ainda assim, ela não acredita no chamado “mensalão”. “Seria um procedimento irracional e sem garantias para o governo. O sistema não é movido a corrupção e patronagem. Se há algo, não ocorre entre governo e deputados em particular, mas via partidos. O que pode ter ocorrido foi a distribuição de dinheiro para alguns partidos que, por sua vez, o repartiram entre os seus membros.” O mais razoável, segundo a professora, é que houve um imenso caixa dois feito com base em doações ilegais de empresas, no superfaturamento dos contratos do governo ou ainda por meio dos bônus de veiculação, o dinheiro de campanhas publicitárias devolvido para as agências de publicidade como forma de atrair anúncios. “É bom que essas práticas estejam sendo julgadas nesse momento, o que pode levar a uma mudança no controle do financiamento dos partidos e das licitações do Executivo.”

No caso específico das acusações feitas ao PT, Argelina afirma ainda não ser possível avaliar o impacto da revelação de um suposto caixa dois do partido. “Mas muitos petistas estão satisfeitos com esse processo, pois ele pode ajudar a consolidar o partido. Ele cresceu muito e rapidamente e seria idealismo imaginar que não fosse afetado por algum tipo de corrupção.” A exposição positiva das mazelas do PT não deve, no entanto, ser comparada, diz a pesquisadora, com o “sucesso” midiático de Roberto Jefferson. “O único objetivo das suas denúncias é tentar emplacar a idéia de que todos os políticos são corruptos como ele.”

Isso desanima a população, que é tomada por um cinismo, um ceticismo sobre os políticos e o sistema político. Jefferson não cumpre nenhum papel importante para nossa democracia. “Apenas é um corrupto que não recebeu o que queria e sentiu-se inseguro com o seu esquema nos Correios,” alerta. Outro aviso importante da pesquisadora para a opinião pública é exercer o direito de controle sobre a CPMI em curso. “Não é verdade que todas as CPIs ‘acabem em pizza?’ Muitas foram fundamentais e efetivas, apenas não viraram manchete dos jornais. No caso da atual, está havendo um grande jogo de cena e, se não existir uma pressão da sociedade, os parlamentares não irão aos fatos, mas se perderão em exibições para seus eleitores.” Mas, lembra a autora, o sistema sobreviveu ao affair Collor e vai sobreviver à crise atual com a mesma força. “Deveríamos estar comemorando o sucesso de nossa democracia, e não nos lamentando, diz Limongi. “Não há sistemas políticos a salvo de crises. Não é reformando o sistema que se resolvem conflitos e desavenças. Eles ocorrem e são normais.”

O Projeto
Instituições políticas, padrões de interação Executivo-Legislativo e capacidade governativa (00/14799-0); Modalidade: Projeto Temático; Coordenador: Fernando Limongi – Cebrap e Argelina Figueiredo – Unicamp; Investimento: R$ 228.739,26 (FAPESP)

Republicar