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Medicina

Estudos em vermelho

Defeitos genéticos começam a explicar a origem de doenças sangüíneas de idosos

Vinte anos atrás alguns casos incomuns de anemia começaram a chamar a atenção no Hemocentro da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Em vez de adultos jovens, como habitualmente, eram os idosos que apresentavam uma expressiva redução na taxa de hemoglobina, molécula encontrada no interior das células vermelhas responsável pelo transporte de oxigênio e pelo vermelho vivo do sangue. Mais intrigante: a anemia dos idosos não cedia ao tratamento convencional, à base de vitaminas e suplementos de ferro. As médicas hematologistas Irene Lorand Metze e Sara Saad, que trataram esses casos, constataram: a causa dessa anemia não era a carência de nutrientes essenciais à produção das células vermelhas ou hemácias como o ferro e as vitaminas do complexo B. A origem do problema era bem mais complexa: estava nas células-tronco da medula óssea, da qual se originam as três famílias de células sangüíneas – as vermelhas, as brancas e as plaquetas. Não se tratava, portanto, de anemias resistentes a tratamento, mas de uma das formas de um grupo de doenças raras chamadas síndromes mielodisplásicas ou mielodisplasias, cujo tratamento até hoje desafia a ciência médica, embora suas causas sejam mais bem conhecidas.

Com características semelhantes às da leucemia mielóide aguda – a forma mais freqüente de leucemia aguda em adultos -, as mielodisplasias alteram a composição sangüínea por dois mecanismos opostos. Ambos ocorrem na medula óssea, o tecido que preenche os grandes ossos do corpo, no qual as células do sangue se formam e se desenvolvem antes de serem lançadas às veias e artérias. O primeiro mecanismo provoca a morte em massa das células precursoras do sangue. O segundo leva essas células a se multiplicarem de modo descontrolado –  e as células da geração seguinte chegam à corrente sangüínea imaturas e incapazes de funcionar como deveriam. O efeito é o mesmo: o sangue contém células vermelhas maduras em número insuficiente para abastecer os tecidos com oxigênio; também não há a quantidade adequada de células brancas, que combatem microorganismos invasores; nem de pedaços de células conhecidos como plaquetas, que bloqueiam hemorragias. É por isso que quem desenvolve mielodisplasia sente-se cansado e apresenta infecções freqüentes ou sangramentos de difícil contenção.

A análise dos mais de 200 casos já atendidos no Hemocentro da Unicamp está ajudando a compreender como esses problemas surgem e evoluem. Em testes de laboratório com medula óssea de portadores de mielodisplasia, Irene e Sara descobriram alterações na expressão de três genes que controlam a morte programada – ou apoptose – das células do sangue. Por esse motivo, no início da doença a taxa de apoptose geralmente é elevada e impede a produção de células vermelhas, brancas e plaquetas em níveis adequados ao funcionamento normal do organismo. Nos estágios mais avançados, porém, ocorre o oposto: a apoptose diminui e são as células precursoras do sangue chamadas blastos que alcançam a circulação –  ainda há casos em que os blastos são produzidos em quantidade adequada, mas não geram células maduras do sangue. “Não se sabe se esse desequilíbrio na mortalidade celular é conseqüência apenas de distúrbios genéticos nas células doentes ou se, ao menos em parte, é decorrente da atuação do sistema de defesa do organismo, voltada à eliminação dessas células,”  comenta Sara, que detectou outro comportamento anormal das células na mielodisplasia: cultivadas em laboratório, as células brancas eram capazes de se multiplicar mesmo na ausência de sinais químicos que induzem à divisão celular, diferentemente das células sadias.

Resistência à morte
Enquanto essa dúvida permanece, o certo é que há uma redução dos sinais químicos que disparam a morte programada dos blastos e um aumento dos comandos que a impedem, como constataram Irene, Elisangela Ribeiro, Carmen Lima e Konradin Metze, em um estudo publicado em 2004 na Leukemia & Lymphoma. “À medida que a doença progride essas células contendo alterações se tornam menos suscetíveis à apoptose,”  explica Irene, uma das principais pesquisadoras brasileiras que estudam as síndromes mielodisplásicas. Num trabalho que deve sair em breve na Leukemia Research – desenvolvido com pesquisadores espanhóis da Universidade de Salamanca e do Hospital Miguel Servet, em Saragoça -, Irene e sua equipe detectaram indícios de que as alterações no desenvolvimento celular características da mielodisplasia podem ocorrer até mesmo em um estágio anterior aos blastos, nas próprias células-tronco pluripotentes. É um achado que ajuda a explicar por que tanto a taxa das células vermelhas e das plaquetas como a das células brancas podem se encontrar abaixo dos níveis normais nessas síndromes.

Ainda não se conhecem todos os defeitos genéticos associados às mielodisplasias, mas estima-se que essas alterações –  como a perda de parte dos cromossomos 5, 7 e 20 ou a presença de uma cópia extra do cromossomo 8 – contribuam para quase metade dos casos dessas doenças. Em geral, as lesões no material genético das células não surgem de uma hora para outra. “Esses defeitos genéticos, detectados em 40% a 50% das mielodisplasias, são fruto de uma série de lesões que se acumulam ao longo da vida e se manifestam por volta dos 60 anos,”  explica a hematologista Maria de Lourdes Chauffaille, da Universidade Federal de São Paulo e do Instituto Fleury, que investiga as características genéticas dessas doenças.

Hoje se sabe que alguns medicamentos utilizados no tratamento de câncer podem danificar o material genético (DNA) das células e levar ao desenvolvimento de mielodisplasia. Também se suspeita que a exposição prolongada à fumaça do cigarro, a agrotóxicos, a solventes como o benzeno e à radiação danifiquem o DNA das células precursoras do sangue e, em 10% dos casos, originem essas síndromes.

Depois dos 60
Esses efeitos cumulativos explicam por que as mielodisplasias são mais comuns após os 60 anos. Estima-se que, antes dessa idade, cinco adultos em cada grupo de 100 mil desenvolvam uma das formas de mielodisplasia. Apartir dos 60 anos, essas síndromes se tornam de quatro a dez vezes mais freqüentes: atingem de 20 a 50 indivíduos em cada grupo de 100 mil. Segundo especialistas, nos Estados Unidos surgem 15 mil novos casos de mielodisplasia por ano, uma indicação de que essas síndromes são tão freqüentes quanto a forma mais comum de leucemia nos países ocidentais, a leucemia linfocítica crônica. Ainda que de modo indireto, a etnia e as condições socioeconômicas e ambientais parecem influenciar a idade de início da doença. Na Europa e nos Estados Unidos as mielodisplasias se manifestam por volta dos 70 anos, enquanto no Brasil elas surgem mais cedo, antes dos 60. “A tendência é que o número de casos aumente à medida que nossa população envelhece,”  afirma Sara, da Unicamp. Estimativas do IBGE apontam que nos próximos 15 anos a população brasileira maior de 60 anos deve crescer 74% e passar dos atuais 16,3 milhões para 28,3 milhões de pessoas.

Mas nem sempre o problema está com as células precursoras do sangue. O grupo coordenado por Maria Mitzi Brentani, da Universidade de São Paulo, Radovan Borojevic, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, e Luiz Fernando Lopes, do Hospital do Câncer AC Camargo, em São Paulo, investigou outro conjunto de células encontradas no interior dos ossos: a células do estroma, o tecido nutritivo no qual estão mergulhadas as células precursoras do sangue. Como a terra que sustenta e nutre uma árvore, o estroma fixa essas células e regula o desenvolvimento delas. A conclusão é que a saúde do estroma pode fazer toda a diferença, de acordo com o estudo publicado em agosto de 2004 na Leukemia Research. Em uma placa de vidro com estroma de portadores de mielodisplasia células precursoras do sangue saudáveis passaram a se comportar como as células mielodisplásicas: proliferavam-se sem controle e não amadureciam – possivelmente pela produção de sinalizadores químicos que induzem à apoptose, como o fator de necrose tumoral alfa e o interferon gama. Também se verificou o oposto: células da medula de pessoas com mielodisplasia apresentaram desenvolvimento saudável quando cultivadas em estroma de pessoas sem a doença.

Analisados em conjunto, os estudos dos últimos dez anos ajudam a entender por que em alguns casos de mielodisplasia os exames, feitos com sangue colhido de uma veia do braço, apresentam contagem baixa das células maduras, enquanto em outros aparece um número elevado de blastos. Esse desajuste reprodutivo que pode surgir em umas poucas células se amplifica durante a fabricação do sangue. Formado por cerca de 20 tipos de células distintas, diluídas em uma sopa de água e proteínas, o sangue está em constante renovação. Quando tudo vai bem no organismo, 1% das células sangüíneas são substituídas diariamente. A cada 24 horas a medula dos ossos fabrica cerca de 200 bilhões de células vermelhas, 10 bilhões de células brancas e 400 bilhões de plaquetas, em substituição àquelas que se tornaram velhas e foram destruídas pelo baço.

Nesse processo natural de reposição, as células-tronco da medula óssea se dividem sucessivas vezes, produzindo inicialmente cópias idênticas de si mesmas. Mas em determinado ponto desse processo reprodutivo essas células deixam de se autocopiar e passam a gerar células especializadas em uma determinada função, mas com menor capacidade de se reproduzirem e de originarem outros tipos de células. É que a capacidade de gerar qualquer tipo de célula sangüínea, a pluripotência, é privilégio das células-tronco mais primordiais.

À procura de saídas
Diante das descobertas recentes sobre a origem e a evolução das mielodisplasias, as alternativas de tratamento continuam restritas, motivo de desconforto entre os médicos. A única maneira de curar a mielodisplasia é o transplante de medula óssea, procedimento em que as células-tronco extraídas do osso do quadril de um doador sadio são injetadas no esterno do portador da doença. Após a eliminação das células anormais por quimioterapia, as células saudáveis repovoam o sangue. Mas o uso de medicamentos altamente tóxicos e de radiação para eliminar as células anormais da medula limitam a aplicação do transplante, em geral realizado em pessoas com menos de 60 anos –  os resultados são melhores antes dos 40 anos. É que depois dos 60 anos as pessoas não resistem aos efeitos indesejáveis do tratamento feito antes de receber a medula. Mesmo quando o transplante é possível, a taxa de sucesso é baixa: em apenas 40% dos casos a pessoa permanece livre da doença por cinco anos.

Nem entre as crianças os resultados são animadores. “Nesses casos, a maior dificuldade é encontrar doadores com medula compatível em uma população miscigenada quanto a nossa,”  diz o oncologista pediátrico Luiz Fernando Lopes, do Hospital do Câncer, que no final da década de 1980 identificou os primeiros casos de mielodisplasia infantil no país e coordena o grupo que já atendeu quase 250 crianças com o problema. Muito raras até os 18 anos – afetam quatro crianças e jovens em cada milhão -, as síndromes mielodisplásicas são mais agressivas nessa faixa etária: oito em cada dez casos evoluem em meses para a leucemia mielóide aguda, em que uma torrente de células brancas imaturas chega ao sangue e deixa o organismo vulnerável a infecções. “Hoje conhecemos razoavelmente bem as causas e a evolução das mielodisplasias,”  diz Lopes. “Mas ainda não sabemos como tratá-las de modo eficiente.”

Nos casos em que o transplante não é viável, a saída é combater as manifestações graves da enfermidade, que variam segundo o tipo de mielodisplasia – há sete tipos de mielodisplasia, segundo a classificação mais recente. Quando o principal efeito dessa reprodução celular anormal é o aumento da quantidade de células imaturas no sangue, os médicos administram medicamentos capazes de eliminá-las, como a citarabina e a daunoblastina, usadas no tratamento das leucemias. Com a diminuição das células vermelhas do sangue, uma das opções é tratar o portador da mielodisplasia com um hormônio de crescimento celular chamado eritropoietina, produzido por bactérias Escherichia coli que receberam uma cópia do gene dessa proteína. Outro hormônio é o fator estimulante de colônias de granulócitos, utilizado para estimular a produção de células brancas. Dependendo do grau de anemia, transfusões de sangue mensais – ou mesmo semanais – podem se tornar necessárias.

Atualmente, dezenas de medicamentos que combatem as células doentes ou estimulam a proliferação das células sangüíneas saudáveis encontram-se em avaliação em ensaios clínicos feitos principalmente nos Estados Unidos e na Europa. Mas ainda não se chegou a um remédio que reúna três qualidades fundamentais: ser eficaz, pouco tóxico e barato. “Nos últimos 20 anos, vários meteoros terapêuticos atravessaram os negros céus dos tratamentos das síndromes mielodisplásicas, mas apenas para desaparecer em seguida,”  escreveram os hematologistas italianos Mario Cazzola e Luca Malcovati, em um comentário publicado em fevereiro deste ano no New England Journal of Medicine sobre a mais recente promessa de medicamento capaz de aumentar as células vermelhas, a lenalidomida, um derivado da talidomida menos tóxico e mais eficaz. Os resultados animam, mas ainda é cedo para comemorar. “Esperamos que outros estudos clínicos confirmem os efeitos promissores da lenalidomida,”  concluíram.

O Projeto
Estudo da fisiologia do sistema imune nas neoplasias, na auto-imunidade e nas imunodeficiências por citometria de fluxo (nº 04/08882-3); Modalidade Linha Regular de Auxílio a Projeto de Pesquisa; Coordenador Irene Lorand Metze – Unicamp; Investimento R$ 1.345.226,42 (FAPESP)

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