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Genômica

Fascínio e terror

Cientistas detalham as estratégias de sobrevivência de três parasitas que infectam milhões de moradores de países pobres

A bioquímica Santuza Teixeira teve de interromper por duas vezes suas férias no mês passado e correr ao seu laboratório no Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Por sorte, não para resolver problemas, mas para comemorar com sua equipe dois acontecimentos que fogem da rotina. No dia 5 Santuza soube que sua proposta de estudar a variabilidade genética do protozoário Trypanosoma cruzi, causador da doença de Chagas, foi selecionada pelo Instituto Howard Hughes, dos Estados Unidos, e receberá um financiamento de US$ 70 mil por ano, nos próximos cinco anos -privilégio concedido a poucos grupos de pesquisa no Brasil. Dez dias depois saía na revista Science um artigo científico de amplo interesse médico e científico, do qual seu grupo havia participado, esmiuçando o conjunto de genes – o genoma – do parasita retratado ao lado.

O genoma do Trypanosoma cruzi é o mais complexo entre os três descritos na edição de 15 de julho da Science –  lá estavam também o Trypanosoma brucei, causador da doença do sono, e a Leishmania major, responsável por um dos tipos de leishmaniose. Resultado de um esforço internacional de pesquisa liderado por especialistas norte-americanos, ingleses e suecos, com a participação de grupos de Minas, de São Paulo e do Rio de Janeiro, esses trabalhos devem nortear, daqui para a frente, os estudos dedicados a esses protozoários, já que uma série de semelhanças, de peculiaridades e de prováveis vulnerabilidades de cada um deles se tornaram mais claras.

Essas descobertas podem acelerar a busca de métodos e reagentes diagnósticos ou de medicamentos que reduzam o alcance das doenças causadas por esses parasita o T. cruzi, transmitido pelo inseto conhecido como barbeiro, infecta 18 milhões de pessoas na América Latina, podendo provocar problemas cardíacos; o T. brucei, que se espalha por meio da mosca tsé-tsé, instalou-se no organismo de 500 mil pessoas de 36 países africanos, causando febre, dor de cabeça, distúrbios do sono e problemas neurológicos; já a Leishmania major, igualmente transmitida por mosquitos, serviu como modelo de estudo para as cerca de 30 espécies que afetam 12 milhões de moradores de 88 países, entre os quais o Brasil, e podem provocar lesões desfigurantes ou atacar as vísceras. Juntas, as três doenças matam cerca de 150 mil pessoas por ano no mundo.

“O fato de os genes desses parasitas terem sido identificados é um incentivo para que as companhias farmacêuticas e mesmo as empresas estatais de medicamentos invistam no desenvolvimento de novas drogas antiparasitárias, porque poderiam começar em um estágio mais avançado,”  diz José Franco da Silveira Filho, pesquisador da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), que trabalhou na identificação dos telômeros – as pontas dos cromossomos – do Trypanosoma cruzi. Justamente nos telômeros é que se concentram os genes responsáveis pela produção de proteínas de superfície, que facilitam a invasão das células de mamíferos e ajudam a burlar as defesas dos organismos em que se instalam.

Os três parasitas, embora tenham se separado de um ancestral comum há cerca de 200 milhões de anos, apresentam 6.158 genes em comum, associados a funções metabólicas e estruturais básicas –  os genes exclusivos de cada espécie são relativamente poucos, variando de 910 na Leishamia major a 3.736 no Trypanosoma cruzi. “A partir desse núcleo comum, é possível começar a pensar em compostos que sirvam para os três,”  diz Angela Cruz, da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo (USP), que participou do seqüenciamento e da análise do cromossomo 2 da Leishamia major.

“Mas o maior problema,”  acrescenta, “é que estamos falando de doenças negligenciadas, de países pobres.”  Até agora as indústrias farmacêuticas têm mostrado pouco interesse em desenvolver medicamentos mais eficazes e menos tóxicos que os raros hoje em uso porque os ganhos poderiam não cobrir os gastos, já que os compradores seriam os governos ou os habitantes de países pobres. De acordo com uma reportagem publicada em 3 de julho no jornal New York Times, os custos de desenvolvimento de um novo medicamento passaram de US$ 800 milhões em 2000 para quase US$ 1 bilhão. O salto nas despesas está fazendo com que as indústrias se concentrem na busca de variações de produtos nos quais já tenham experiência ou que contem com um mercado assegurado, como diabetes, câncer, distúrbios mentais e alguns problemas cardíacos.

Entre os pesquisadores é diferente. “Para nós, e para muitos outros cientistas que trabalham com tripanossomas, há um interesse genuíno em engajar-se na luta contra as doenças negligenciadas,”  comenta a esta revista Najib El-Sayed, biólogo molecular do Instituto de Pesquisa Genômica (Tigr), dos Estados Unidos, que nessa edição da Science assinou dois artigos como primeiro autor e outro como pesquisador sênior – além dos três estudos descrevendo os genomas, havia outro comparando-os e mais dois comentando as descobertas. Essa pesquisa é importante do ponto de vista médico, porque não existem bons medicamentos disponíveis,”  diz Bjorn Andersson, do Instituto Karolinska, da Suécia, que estuda a doença de Chagas desde 1996. “Tenho esperanças de que realmente surjam novos fármacos.”

Dessa empreitada participaram 235 pesquisadores de 21 países – não só do Brasil, Argentina e Venezuela, onde esses problemas são antigos, mas também da França, Escócia, Estados Unidos ou Cingapura, nos quais um caso de leishmaniose causaria mais espanto que a chegada de um marciano. Esse consórcio de instituições começou a se formar em 1994 quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) aprovou um financiamento modesto, de US$ 20 mil, o chamado seed money, para a proposta de seqüenciamento do genoma de parasitas causadores de doenças tropicais, apresentada por Carlos Morel, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), do Rio de Janeiro, que liberou outros US$ 20 mil. A partir daí o desafio foi agregando mais cientistas e em 1998 seduziu a Tigr, que se tornaria uma das instituições líderes do consórcio. Ao receber um financiamento estimado em US$ 32 milhões, essencialmente dos Institutos Nacionais de Saúde (NIH), dos Estados Unidos, e do Wellcome Trust, do Reino Unido, o trabalho deslanchou.

Seres de transição
Tamanha mobilização deve-se também, é verdade, ao interesse pela biologia desses microorganismos unicelulares. “Alguns fenômenos, como a edição de RNA e a variação antigênica, foram identificados ou  bem caracterizados em tripanossomas,”  exemplifica El-Sayed, com quem trabalha a brasileira Daniela Bartholomeu. Embora sejam eucariotos (células dotadas de núcleos, como os animais e as plantas superiores), eles apresentam algumas características dos procariotos, como são chamados os organismos unicelulares sem núcleo, mais primitivos, como as bactérias.

“Esses parasitas são extremamente fascinantes,”  diz Franco da Silveira, que trabalha em colaboração com outros grupos da Unifesp, como o de Nobuko Yoshida e Renato Mortara. “São uma espécie de fósseis vivos, como se fossem experiências da natureza que tenham sobrevivido e originado seres muito mais refinados.” Nos três, mostrou-se bastante conservada a ordem dos genes – ou sintenia -, em escala mais acentuada na L. major, como se ela fosse o organismo mais antigo e de seus cromossomos, devidamente embaralhados ou segmentados, tivessem se originado as outras duas espécies de protozoários.

Um dos achados surpeendentes no Trypanosoma cruzi é uma família de genes chamada Masp, sigla de proteínas de superfície associadas à mucina, já com 1.300 integrantes, mas cujas funções ainda são desconhecidas. Esse foi, por sinal, o mais indomável dos três parasitas, a ponto de ter exigido modificações nos programas de montagem e análise de genes. “O genoma do T. cruzi é altamente complexo e repetitivo, mais que o usual,”  reconhece Andersson. Pelo menos metade das seqüências genéticas tem uma cópia e a outra metade pode ter mais de duas cópias. “Por causa dessas seqüências repetitivas,”  conta Santuza, “não foi possível fazer a montagem completa do genoma.”  Outra razão pela qual não se pôde dar ao genoma a forma de uma longa fita é que não se sabe ao certo quantos são os cromossomos – as estruturas que contêm os genes – do T. cruzi: deve ser algo próximo a 28; o problema é que alguns cromossomos têm só uma cópia e outros, duas ou mais.

Driblando anticorpos
Essas repetições de genes e de cromossomos, cogita Santuza, devem facilitar a recombinação genética e o aperfeiçoamento de artifícios que permitem a esses parasitas escapar das defesas dos organismos que invadem – mesmo com um vasto trecho do genoma em comum, os tritryps, como foram chamados, guardam diferenças sutis, mas essenciais. O Trypanosoma brucei vive no sangue de mamíferos e escapa dos anticorpos produzindo diferentes proteínas de superfície –  é a variação antigênica: os anticorpos reconhecem os invasores que tenham uma proteína A, digamos, mas deixam escapar os que já trocaram a proteína A por uma B qualquer. Curiosamente, os genes ligados às proteínas de superfície são geralmente truncados – só 7% funcionam direito.

Já o T. cruzi invade as células – primeiro as da pele e depois as do coração – e se vale da chamada variabilidade antigênica: o causador da doença de Chagas produz, ao mesmo tempo, dezenas de variantes de proteínas de superfície, que lhe permitem não só driblar os anticorpos como também se ligar com as células de mamíferos nas quais vive ao longo de seu ciclo de vida.

“Talvez estejamos mais perto de entender como esses parasitas têm tanto sucesso e sobrevivem em organismos tão diferentes,” comenta Angela Cruz, da USP de Ribeirão Preto, “mas temos de usar esse conhecimento para algo útil. Quem trabalha com a genética desses organismos deveria se unir com aqueles que trabalham com estrutura de proteínas ou fazem desenhos de medicamentos, para otimizar a busca de melhores alvos nos parasitas e gerar compostos para serem testados. Temos de fazer um esforço concentrado e concertado para chegar a medicamentos ou a métodos preventivos factíveis no combate a essas doenças.”

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