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Genética

Herança fora da família

Troca de genes entre espécies diferentes é fonte de debate de evolucionistas

Cada vez mais estudos mostram que características genéticas não são transmitidas só de pais para filhos, como supõem os princípios da hereditariedade, mas circulam até entre espécies distintas. Não é novidade que bactérias podem adquirir genes que as tornam mais infecciosas ou que lhes permitem sobreviver em condições adversas. Agora o grupo do biólogo molecular Carlos Menck, do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (ICB-USP), mostrou que parte do metabolismo de bactérias Xanthomonas, causadoras do cancro cítrico que ataca laranjeiras e limoeiros, é diferente da maioria das outras bactérias. A diferença vem da possibilidade de troca de genes entre espécies, conhecida como transferência lateral, que chega a levar alguns pesquisadores a defender que Charles Darwin estava errado ao usar, 150 anos atrás, as ramificações de uma árvore para descrever a evolução da diversidade biológica.

As descobertas de Menck partiram de observações fortuitas em meio aos primeiros projetos brasileiros de sequenciamento de genomas. Enquanto contribuía para desvendar o material genético das bactérias Xylella e Xanthomonas, de grande importância econômica devido às doenças que causam em plantações, ele percebeu que muitos dos genes pareciam não ser transmitidos ao longo de linhagens de bactérias. Surgiu daí o doutorado de Wanessa Lima. Ela detectou diversos casos de transferência lateral de genes nessas bactérias, como relatou em 2008 nas revistas Journal of Molecular Evolution e FEMS Microbiology Letters.

Eram ainda genes acessórios, que não abalavam a premissa de que funções essenciais à vida não podem ser copiadas de outros organismos. Agora isso mudou: Wanessa descobriu que bactérias das ordens Xanthomonadales e Flavobacteriales fabricam um composto essencial para gerar energia (o dinucleotídeo de nicotinamida e adenina – NAD) usando uma sequência de reações bioquímicas até agora conhecida só em eucariotos, organismos em que o material genético está empacotado dentro do núcleo. Eucariotos  podem ser simples como fungos compostos por células independentes ou mais complexos e multicelulares, como uma pessoa. Já as bactérias são procariotos: na grande maioria das vezes unicelulares e desprovidas de núcleo, em geral com uma molécula circular de DNA.

O resultado, publicado em fevereiro na Molecular Biology and Evolution, contribui para entender a evolução das bactérias por ser o primeiro caso descrito de uma função vital cujos genes foram substituídos. “O mais provável é que esses genes tenham sido trocados entre um eucarioto e uma bactéria ancestrais e mais tarde se espalhado por especiação em Xanthomonas ou Flavobacteriales”, imagina a pesquisadora. Com base em buscas por genes semelhantes em um banco internacional de sequências genéticas, Menck aposta nesse doador eucarioto ancestral como um fungo que convivia com a bactéria, num hospedeiro, em simbiose ou no solo, provavelmente pouco depois da separação entre Xanthomonas e Xylella, há cerca de 15 milhões de anos. De alguma maneira ainda não elucidada, essa proximidade teria permitido que trechos de DNA passassem de uma espécie para outra, com ou sem a intermediação de vírus.

Controvérsia
O grupo da USP ainda não sabe explicar por que nessas bactérias a nova forma de fabricar NAD teria substituído a que existia. “A via de eucariotos é mais cara em termos de nutrientes e energia, além de exigir mais oxigênio”, conta Wanessa. Ela desconfia que essa nova rota tenha sido mantida em Xanthomonas e flavobactérias por trazer vantagens diante dos aminoácidos disponíveis ou do teor de oxigênio no ambiente. Para Menck, a seleção natural está provavelmente por trás dessa permanência. O trabalho ainda não publicado de um de seus alunos, o bioinformata Apuã Paquola, mostra que cerca de 20% dos genomas de bactérias vêm de transferência lateral entre bactérias de grupos distintos. São os trechos que foram favorecidos pela evolução e se estabeleceram. Os indícios são de que a troca de genes entre seres vivos diferentes é constante, mas em geral as novas combinações se perdem durante a evolução.

Mesmo assim, alguns pesquisadores defendem que a transferência lateral de genes torna incorreta a metáfora de árvore para descrever a evolução da biodiversidade – polêmica que em janeiro chegou à capa da revista britânica New Scientist. Na árvore, as espécies atuais estariam na ponta de cada ramo, e os pontos de bifurcação representariam ancestrais comuns. Mas em artigo publicado na revista Nucleic Acids Research, o biólogo molecular Eugene Koonin, dos Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos (NIH), defende que o patrimônio genético das bactérias está inteiramente interligado, como um mar de genes sem nada que os separe. Isso, a seu ver, invalida o conceito de árvore da vida: “Esses achados dão corpo a uma nova e dinâmica visão do mundo procarioto que é mais bem representado como uma rede complexa de elementos genéticos, que trocam genes em taxas muito variáveis”, escreve.

A polêmica promete ir longe. Para John Wilkins, filósofo da ciência da Universidade de Queensland, na Austrália, a visão da evolução como rede está errada. “Se uma espécie fosse formada por transferência genética generalizada”, diz ele, “de maneira que não fosse possível dizer o que é herdado e o que não é, acho que seria difícil chamá-la de espécie”. Mas ele acredita que a probabilidade de isso acontecer é ínfima. Menck completa: pode haver uma mistura genética entre espécies, mas os genes em si seguem linhagens conforme prevê a teoria evolutiva de Darwin. As trocas dificultam o trabalho de quem busca reconstruir as genealogias bacterianas, mas o pesquisador da USP ressalta que, além de 80% dos genes procariotos serem transferidos por descendência, alguns nunca se habilitam a ser transferidos. É essa porção fixa do material genético que permite reconstruir as relações de parentesco entre as bactérias. “A rede seria mais como uma fina teia de aranha envolvendo a árvore, e não o contrário”, conclui.

De acordo com Menck, a polêmica é positiva e leva os pesquisadores a aprenderem cada vez mais sobre os processos evolutivos. Desse ponto de vista, a conclusão do artigo de Koonin pode ser estimulante: “A complexidade emergente do mundo procarioto está atualmente além do nosso alcance. Não temos linguagem adequada, em termos de teorias e ferramentas, para descrever o funcionamento e as histórias da rede genômica. Desenvolver tal linguagem é o maior desafio para a próxima etapa na evolução da genômica de procariotos”.

Projeto
Genes de reparo de DNA: análise funcional e evolução (nº 03/13255-5); Modalidade Projeto Temático; Coordenador Carlos Frederico Martins Menck – ICB-USP; Investimento R$ 1.453.233,23.

Artigos científicos
LIMA, W. C. et al. NAD biosynthesis evolution in bacteria: lateral gene transfer of kyurenine pathway in Xanthomonadales and Flavobacteriales. Molecular Biology and Evolution. v. 26, n. 2, p. 399-405. fev. 2009.
KOONIN, E. V. e WOLF, Y. I. Genomics of bacteria and archaea: the emerging dynamic view of the prokaryotic world. Nucleic Acids Research. v. 36, n. 21, p. 6.688-6.719. dez. 2008.
WILKINS, J. S. The concept and causes of microbial species. History and Philosophy of the Life Sciences. v. 28, n. 3, p. 389-407. 2006.

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