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Envelhecimento

O preço da longevidade

Aumento da expectativa de vida faz surgir novos problemas nas pessoas com deficiência mental

Reprodução Eduardo Cesar

Desenhos e ilustrações feitos por crianças e adultos atendidos na Apae de São PauloReprodução Eduardo Cesar

As pessoas com deficiência intelectual, que há 40 anos morriam na adolescência, hoje podem viver mais de 60 anos. Como estão vivendo mais, outros problemas orgânicos estão surgindo. Reunidos durante dois dias em agosto na Associação de Paes e Amigos dos Excepcionais (Apae) de São Paulo, médicos e pesquisadores da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e da Universidade de São Paulo (USP), psicólogos, terapeutas, advogados, assistentes sociais e outros profissionais da saúde reconheceram um dos graves problemas emergentes, a possibilidade de envelhecimento precoce.

Em um levantamento preliminar feito em 2009 em seis instituições da cidade de São Paulo, de um grupo de 373 pessoas com deficiência intelectual (ou DI; a expressão deficiência mental não é mais recomendada) e mais de 30 anos de idade, 192 apresentavam pelo menos três sinais de provável envelhecimento precoce, de acordo com um questionário que avaliava eventuais perdas de memória, de autonomia nas tarefas do dia a dia, de interesse por atividades ou de visão e audição. Para dimensionar esse problema, está sendo preparado um levantamento mais abrangente e detalhado, com cerca de 500 pessoas com DI e idade entre 30 e 59 anos da Grande São Paulo.

Os estudos em andamento são essenciais para “vermos o que pode ser feito, em termos de atendimento médico e de políticas públicas”, diz Regina Leondarides, coordenadora do grupo de estudo de envelhecimento precoce das pessoas com deficiência intelectual, que reúne 10 instituições de atendimento. “Temos muitas políticas de saúde voltadas para a criança, mas as políticas para o envelhecimento estão começando a ser construídas”, comenta Esper Cavalheiro, professor da Unifesp e presidente do conselho científico do Instituto Apae de São Paulo. “Estamos atrasados, em vista do envelhecimento acelerado da população brasileira.”

Um estudo da Espanha publicado em 2008 indicou que as pessoas com DI envelhecem prematuramente – as com síndrome de Down, de modo mais intenso. Para chegar a essas conclusões, os pesquisadores acompanharam a saúde de 238 pessoas com DI e mais de 40 anos de idade durante cinco anos. Não se trata, aparentemente, de um fenômeno inevitável. O envelhecimento precoce das pessoas com DI leve e moderada resulta da falta de programas de promoção de saúde e do acesso reduzido a serviços médicos e sociais. As pessoas com DI se mostraram com maior tendência à obesidade (apenas 25% tinham peso considerado normal), à hipertensão arterial (25% do total) e a distúrbios metabólicos, como diabetes e hipotireoidismo (10% do total).

“O envelhecimento precoce, se confirmado, pode ter causas genéticas ou ambientais, independentemente da deficiência intelectual”, comenta Dalci Santos, gerente do Instituto Apae de São Paulo. Matemática de formação, com doutorado em andamento na Unifesp, ela acrescenta: “Não conseguiremos avançar muito até esclarecermos melhor a origem das deficiências intelectuais”. As causas podem ser genéticas, como na síndrome de Down, ou ambientais (causas não genéticas), incluindo infecções, baixa oxigenação do cérebro do feto, alcoolismo, radiação, intoxicação por chumbo durante a gravidez ou prematuridade – muitas vezes, vários fatores em conjunto.

Causas ambientais ou genéticas
Em um artigo no primeiro número da Revista de Deficiência Intelectual DI, publicação do Instituto Apae lançada em outubro, João Monteiro de Pina-Neto, médico geneticista da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP, apresenta os resultados de um estudo sobre as causas da deficiência intelectual em 200 pessoas atendidas nas Apaes de Altinópolis e Serrana, dois municípios da região de Ribeirão Preto. Esse estudo faz parte de um levantamento maior, com cerca de  mil pessoas com DI atendidas em quatro Apaes, que Pina-Neto e sua equipe pretendem concluir em meados de 2012. Os resultados obtidos até agora indicam o predomínio de causas ambientais (42,5% do total), seguidas pelas genéticas (29%) e indeterminadas (20%).

Um estudo similar feito com 10 mil pessoas na Carolina do Sul, Estados Unidos, apresentou o mesmo percentual de causas genéticas, mas apenas 18% de causas ambientais e 56% de causas desconhecidas. Alguns contrastes chamam a atenção. Enquanto a deficiência intelectual causada por falta de oxigenação cerebral responde por 5% do total das causas de DI nos Estados Unidos, em São Paulo é 16,5%; a prematuridade, de 5% nos Estados Unidos, foi de 14,5% no estudo paulista; o efeito das infecções, de 5%, é quase o dobro aqui, 9%.

Reprodução Eduardo CesarA conclusão que emerge dessa comparação é que o número de nascimentos de bebês com DI poderia ser reduzido por meio de algumas medidas preventivas. “Melhorar o atendimento pré-natal e a qualidade do parto são uma prioridade”, ressalta Pina-Neto. “Ainda temos casos de deficiência causada por sífilis, rubéola ou toxoplasmose contraída durante a gestação e meningites pós-natais”, lamenta. Segundo ele, outro problema que pode ser controlado é o alcoolismo. “De 20% a 30% das mulheres da região de Ribeirão Preto consomem bebida alcoólica em excesso e, como resultado, de cada 100 gravidezes, nasce uma criança com DI causada por síndrome alcoólica fetal”, diz ele. “Não fazemos ainda a adequada prevenção das causas da deficiência intelectual.”

As causas genéticas podem ser controladas, já que o risco de uma criança nascer com síndrome de Down aumenta muito com a idade dos pais. “As mulheres estão tendo filhos após os 35 anos de idade, portanto mais propen­sas a terem filhos com Down, e os homens estão se casando várias vezes, tendo filhos em cada ca­samento”, diz Pina-Neto. Segundo ele, homens estéreis que procuram as clínicas de reprodução deveriam ser mais informados sobre a possibilidade de terem alterações genéticas que podem ser transmitidas aos filhos caso se tornem férteis.

As pessoas com DI apresentam capacidade de raciocínio bastante abaixo da média e limitações para aprender, se cuidar ou se comunicar com outras, mas atualmente são muito mais integradas socialmente, autônomas e produtivas, com mais oportunidades para expressar a criatividade do que há algumas décadas. Frequentam escolas regulares, com outras crianças e adultos, participam de competições esportivas e conquistam mais postos de mercado de trabalho. Crianças e adultos com DI não vão mais à Apae de São Paulo para aprender todo dia, mas aparecem algumas vezes por semana para atendimento educacional especializado ou para consultas médicas. O serviço de apoio ao envelhecimento atende 132 pessoas com idade entre 30 e 67 anos.

Ainda há muitas dúvidas sobre como lidar com os novos problemas. Crianças e adultos com de­­­­ficiência precisam de hábitos e horários para se sentir calmos e confortáveis. Ao mesmo tempo, hábitos imutáveis podem favorecer o surgimento da doença de Alzheimer, doença neurológi­ca que se agrava com o envelhecimento. Vem daí um impasse: manter a rotina inalterada poderia alimentar a propensão ao Alzheimer, mas quebrar a rotina pode ser perturbador.

Propensão ao alzheimer
O cérebro das pessoas com Down pode exibir um dos sinais típicos do Alzheimer: o acúmulo de placas amiloides, que dificultam o funcionamento adequado dos neurônios. Uma equipe da Universidade da Califórnia em Los Angeles, Estados Unidos, encontrou placas amiloides em quantidade mais elevada no cérebro de pessoas com Down do que em pessoas com Alzheimer já diagnosticado e em pessoas normais.

“Os sinais biológicos de Alzheimer podem surgir antes dos sinais clínicos”, observa Orestes Forlenza, professor da Faculdade de Medicina da USP. “Ter amiloide não significa ter demência futura. Qual a melhor intervenção futura? Não sabemos. Talvez via nutrição ou atividade física seja mais seguro do que por medicamentos.” Ira Lott e sua equipe da Universidade da Califórnia em Irvine fizeram um estudo duplo-cego durante dois anos com 53 pessoas com síndrome de Down para ver se a complementação da dieta com compostos antioxidantes poderia melhorar o funcionamento mental ou estabilizar a perda da capacidade cognitiva. Os resultados, publicados em agosto na American Journal of Medical Genetics, indicaram que não.

Esper Cavalheiro apresentou três perguntas ainda sem resposta. De que modo as alterações próprias do envelhecimento, como as doenças cardiovasculares, diabetes e câncer, se apresentam nas pessoas com DI? Como alterações frequentes nessas pessoas, a exemplo de demências e osteoporose, se comportam no envelhecimento? Os medicamentos usados para tratar hipertensão, diabetes e outras doenças típicas do envelhecimento funcionam nas pessoas com DI do mesmo modo que em outros indivíduos?

Outra dúvida: as estratégias de controle dos fatores de risco de doenças cardiovasculares recomendadas para pessoas normais, como o estímulo a atividades físicas, têm o mesmo impacto sobre a saúde das pessoas com e sem deficiência intelectual? “Supomos que sim, mas não sabemos ao certo”, diz Ricardo Nitrini, da USP.

Segundo Cavalheiro, as pessoas com DI com 65 anos ou mais correspondiam a 4% da população total no Censo de 2000; hoje respondem por 5,5% da população total. “Não podemos nos contentar apenas com estatísticas e diagnósticos”, alerta. “Temos de enfrentar esse problema com rapidez. Quanto mais gente dialogando e pensando nesses problemas, melhor.”

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