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Genética de plantas

O mapa da cana

Projeto Genoma pavimentou caminho para o desenvolvimento de novas variedades da planta

CTC/ BASFEstufa com mudas do Centro de Tecnologia Canavieira: interesse da indústria estimulou o Genoma CanaCTC/ BASF

A corrida em busca de novas variedades de cana adaptadas aos diversos climas e solos brasileiros se beneficia de uma grande articulação que reuniu 240 pesquisadores de 22 instituições, entre 1999 e 2002. O Projeto Genoma Cana, responsável pelo mapeamento de 238 mil fragmentos de genes funcionais da cana-de-açúcar, pavimentou o caminho para o uso de marcadores moleculares no melhoramento da cultura. A identificação dos fragmentos, chamados de ESTs (ou Etiquetas de Sequências Expressas), foi seguida por um trabalho de prospecção de dados relacionados ao metabolismo da cana, de modo a obter variedades mais produtivas e resistentes à seca ou a solos pobres. “Chegamos a 238 mil fragmentos de transcritos, partimos para a identificação da função dos genes, estudamos as características agronômicas associadas e fizemos a análise do transcriptoma para ajudar na geração de plantas transgênicas mais eficientes”, resume Glaucia Souza, professora do Instituto de Química da Universidade de São Paulo, uma das participantes do Genoma Cana.

Glaucia hoje é coordenadora do Programa FAPESP de Pesquisa em Bioenergia, o Bioen (ver reportagem), voltado para aprimorar a produtividade do etanol brasileiro e avançar em ciência básica e tecnologia relacionadas à geração de energia de biomassa. Uma das vertentes do Bioen agrega pesquisas desenvolvidas a partir do Genoma Cana. As informações obtidas pelo genoma funcional da cana também fertilizaram outros estudos, como a identificação da canacistatina, uma proteína com propriedades antifúngicas, estudada como possível inibidor de patógenos que atacam plantas por um grupo liderado pelo geneticista Flávio Henrique da Silva, do Centro de Biotecnologia Molecular e Estrutural (CBME) da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).

Conhecido oficialmente como Projeto FAPESP Sucest (Sugar Cane EST), o Genoma Cana foi um dos projetos vinculados à Rede Onsa, sigla para Organization for Nucleotide Sequencing and Analysis, infraestrutura de laboratórios espalhados por várias cidades, dotados de sequenciadores novos e outros equipamentos. A rede, uma espécie de instituto virtual de pesquisa, foi criada em 1997 e teve como primeiro desdobramento o sequenciamento do genoma da bactéria Xylella fastidiosa, em 2000 (ler reportagem). Mas logo se engajou em outros projetos no âmbito do Programa Genoma da FAPESP – já em 1998, a rede mergulhou em temas de grande interesse social e econômico, como o mapeamento de genes associados ao câncer e ao genoma expresso da cana-de-açúcar.

O Genoma Cana se caracterizou por uma forte interação entre as universidades e o setor privado, que marca o esforço de pesquisa em bioenergia até hoje. Paulo Arruda, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e coordenador do projeto, lembra que foi convidado a liderar o projeto depois que a Cooperativa dos Produtores de Açúcar e Álcool do Estado de São Paulo (Copersucar) e seu braço de pesquisa, o Centro de Tecnologia Canavieira (CTC), procuraram a diretoria científica da FAPESP e propuseram uma parceria entre universidades e indústria a fim de sequenciar o genoma da cana. “O professor José Fernando Perez, diretor científico à época, me perguntou o que eu achava. Eu observei que a cana tem um genoma muito complexo e sugeri o mapeamento dos fragmentos funcionais do genoma”, diz Arruda, que hoje é um dos coordenadores da área de Pesquisa para Inovação da FAPESP. A cana é mesmo um organismo complexo. Seu genoma chega a ser três vezes maior do que o humano, com o agravante de que, em vez de duas cópias de cada cromossomo, há de oito a doze cópias, nem sempre iguais. Essa peculiaridade fez com que o sequenciamento integral do genoma fosse descartado, pois o processo seria desgastante e demorado.

O projeto teve um financiamento da ordem de US$ 4 milhões da FAPESP e outros US$ 400 mil da Copersucar. Reuniu, pela primeira vez numa empreitada comum, laboratórios de São Paulo, Pernambuco, Bahia, Rio de Janeiro, Paraná, Rio Grande do Norte, Minas Gerais e Alagoas. “Todos os laboratórios tiveram acesso ao banco de dados e puderam estudar os genes identificados”, diz Arruda. “Foi realmente inovador. Centrado em gente muito jovem, que tinha mais facilidade de lidar com tecnologia que os pesquisadores mais experientes, o Genoma Cana mostrou que é possível identificar grandes desafios e reunir talentos para resolvê-los”, afirma o professor. “A repercussão do projeto foi enorme. Reunimos resultados de pesquisa numa edição especial da revista da Sociedade Brasileira de Genética, que foi a mais citada da história da publicação”, afirma o professor. Em setembro de 2003, um artigo na revista científica Genome Research apresentou o principal fruto do programa: a descrição minuciosa da constituição genética da cana-de-açúcar, a planta cultivada há mais tempo em larga escala no Brasil. O artigo mostrou que o genoma da cana é constituído por 33.620 possíveis genes, dos quais cerca de 2 mil parecem estar associados à produção de açúcar.

Felipe Rodrigues da Silva, biólogo, e Guilherme Pimentel Telles, formado em computação, sabem como foi difícil chegar a esses números finais, que encerraram a aventura iniciada em abril de 1999. Para determinar inicialmente o número de genes, informação básica sobre qualquer genoma, Silva, então um doutorando com 29 anos, e Telles, com 27, tiveram de resolver o que ainda não havia sido solucionado em nenhum outro laboratório do mundo: descobrir como eliminar as repetições e aproveitar do melhor modo possível as informações contidas em cerca de 300 mil fragmentos de genes. O Genoma Cana foi um dos primeiros projetos de planta no mundo a adotar essa técnica de identificação de genes. Até acertarem o passo, trabalharam pelo menos 12 horas por dia, durante quatro meses, com programas segundo os quais a cana teria ora nove mil genes, ora mais de cem mil, ora um valor intermediário qualquer, que variava de acordo com critérios diferentes sobre o que é um gene. Num dos momentos cruciais, descobriram que estavam sendo jogados fora trechos de genes que poderiam ser aproveitados.

Fundamentalmente, o Genoma Cana deu início ao esforço, ainda em curso, de aprofundar o conhecimento sobre o metabolismo da cana, de modo a obter mais rapidamente variedades mais produtivas e resistentes à seca ou a solos pobres. Pelas técnicas atuais de melhoramento genético, uma nova variedade consome dez anos de trabalho, dos primeiros testes à aprovação para uso no campo. “Ainda estamos na infância na compreensão do genoma da cana”, diz Arruda. “A planta tem um potencial de produtividade três vezes maior, mas a gente ainda não sabe até que ponto o genoma representa um entrave para o aproveitamento desse potencial. De todo modo, o projeto mostrou que é possível enfrentar esse desafio”, afirma.

A conclusão do projeto não arrefeceu o interesse dos pesquisadores e da indústria em seguir buscando conhecimento sobre a planta. Depois de 2003, Glaucia Souza assumiu a coordenação do Sucest e iniciou o Projeto Sucest-FUN, composto por uma rede de pesquisadores dedicados à análise dos genes da cana. A identificação de genes associados ao teor de açúcar foi realizada em um projeto entre o Centro de Tecnologia Canavieira, a Usina Central de Álcool Lucélia e pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) e da Unicamp, financiados pela FAPESP, num projeto liderado por Glaucia. Outro projeto importante foi a identificação de marcadores moleculares a partir das sequências do Sucest, sob a liderança da pesquisadora Anete Pereira de Souza, do Instituto de Biologia da Unicamp. Os marcadores podem ser usados na identificação de um gene específico, por exemplo, que esteja ligado à produção de sacarose. “Os projetos da Glaucia e da Anete foram dois marcos, porque demonstraram haver uma comunidade de pesquisadores preparada a investir no tema. Seus avanços viabilizaram mapear efetivamente o genoma da cana, o que não era viável na época do Sucest”, diz a geneticista Marie-Anne Van Sluys, professora do Instituto de Biociências da USP.

Os Projetos
1. Proposal for DNA coordinator of the Sugarcane EST Project (SucEST) (nº 1998/12250-0) (1998-2004); Modalidade Auxílio a Projeto de Pesquisa – Programa Genoma; Coordenador Paulo Arruda – CBMEG – Unicamp; Investimento R$ 2.324.381,81
2. Bioinformática para projeto EST cana-de-açúcar (nº 1999/02837-6) (1999-2002); Modalidade Auxílio a Projeto de Pesquisa – Programa Genoma; Coordenador João Meidanis – IC-Unicamp; Investimento R$ 576.439,24
3. SucEST – data mining (nº 1999/02840-7) (1999-2002); Modalidade Auxílio a Projeto de Pesquisa – Programa Genoma; Coordenador Antonio Vargas de Oliveira Figueira – Cena-USP; Investimento R$ 52.496,22

Artigo científico
VETTORE, A. L. et al. Analysis and Functional Annotation of an Expressed Sequence Tag Collection for Tropical Crop Sugarcane. Genome Research. v. 13, p. 2725-35. 2003.

De nosso arquivo
Os arquitetos da nova canaEdição nº 59 – novembro de 2000
Farta colheitaEdição nº 91 – setembro de 2003

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