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Marco Antonio Zago

Marco Antonio Zago: Conexão com a sociedade

LÉO RAMOSAcostumado tanto com os estudos genéticos e hematológicos quanto com os meandros sinuosos da política científica, Marco Antonio Zago assumiu a Pró-Reitoria de Pesquisa da Universidade de São Paulo (USP) em 2010 e logo deparou com um desafio. Como fazer com que os mais bem-sucedidos pesquisadores voltassem a se interessar mais pela universidade responsável por sua formação? 
Ele identificou em muitos cientistas da casa certo afastamento da instituição. Para Zago, é importante criar condições para que todos se conectem com mais vigor à universidade e, desse modo, à própria sociedade. “É preciso dar certa coerência à pesquisa dentro da universidade”, acredita.

As medidas adotadas pelo pró-reitor aparentemente tomaram o rumo desejado por ele. A criação dos multidisciplinares Núcleos de Apoio à Pesquisa (NAPs), por exemplo, calcados no modelo dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) – programa criado pela FAPESP em 2000 –, atraiu 118 grupos de pesquisadores desde 2010. A Agência USP de Inovação está mais próxima dos pesquisadores e os auxilia nas questões relativas às patentes. Os novos professores que ingressam na universidade recebem estímulos para buscar recursos externos e integrar as equipes de pesquisa. “Sem dúvida, conseguimos melhorar a universidade em alguns aspectos”, diz Zago. A boa posição alcançada em todos os rankings de avaliação de universidades comprova a avaliação – a despeito do gigantismo da USP, algo incomum nas melhores instituições que investem na pesquisa científica.

Idade
65 anos
Especialidade
Hematologia e genética
Formação
Universidade de São Paulo (graduação e doutorado)
Universidade de Oxford (pós-doutorado)
Instituição
Universidade de São Paulo

Marco Antonio Zago formou-se na Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto. Passou parte da carreira de pesquisador também trabalhando como médico. Foi diretor clínico do Hospital das Clínicas e diretor científico do Hemocentro, ambos de Ribeirão. Em 2007 presidiu o Conselho de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e criou os Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia (INCTs), uma tentativa de mudar o modelo de produção científica do país.

Como pesquisador, contribuiu para o estudo da anemia falciforme e da talassemia – atuou fortemente para estabelecer métodos de diagnósticos e de tratamento dessas doenças. Passou a estudar genética de populações e demonstrou de quais regiões da África vieram os escravos trazidos ao Brasil. Também teve participação destacada em genômica ao trabalhar no sequenciamento da bactéria Xylella fastidiosa e no genoma do câncer. Líder do Cepid de Terapia Celular, nos últimos anos concentrou seus esforços em estudar células-tronco. Abaixo, os principais trechos da entrevista.

Qual a função de um pró-reitor de Pesquisa de uma universidade do tamanho da USP?
Entendo que é dar certa direção e unidade à pesquisa que a universidade faz. E quando digo certa direção, não é fazer ou promover pesquisa direcionada, no sentido tradicional do termo, de definir as linhas de pesquisa. Isso não é possível numa universidade como a USP. Somos, em tamanho e em termos de abrangência de área, uma das maiores universidades do mundo. É difícil procurar uma área de conhecimento ou uma subárea de conhecimento que não tenha especialistas qualificados na USP. E, portanto, a atividade de pesquisa é muito heterogênea, tem vários formatos.

O que seria então essa “certa direção”?
Talvez dar coerência e sinergismo à pesquisa dentro da universidade. Ao chegar aqui, percebi que o sentido de unidade da USP estava reduzido. Os grupos mais bem-sucedidos eram aqueles que se ligavam menos à própria universidade, eles ganhavam independência e alegavam que os seus recursos vinham de fora, e não da própria USP.

Havia certo descolamento…
É, um descolamento da universidade, que leva a um grau de desagregação.

Em que lugar se situaria a USP entre as maiores do mundo?
A Unam [Universidade Nacional Autônoma do México] tem 270 mil alunos; a Universidade de Buenos Aires está ao redor disto. São instituições que não têm numerus clausus e, portanto, todo aluno que quiser se inscreve. Por outro lado, quando olhamos as melhores universidades do mundo – aquelas que todos citam como exemplos de universidade para dar a entender que é lá que nós queremos chegar –, as mais expressivas dos Estados Unidos, da Inglaterra, do Japão e da Coreia do Sul são universidades com 17 mil alunos, em média. E muitas delas têm mais que 60% dos alunos na pós-graduação.

E a USP?
Temos 91 mil alunos, dos quais 30% na pós-graduação. Uma das características comuns das universidades que têm grande empenho em pesquisa, além do ensino, é a missão de produzir pesquisa científica e transferir conhecimento. A USP se enquadra nisso. É preciso ressaltar o empenho em ensino. Isso é importante porque muitos pensam que sou, às vezes, monomaníaco, pensando que a universidade só deve fazer pesquisa. Não penso assim. Entendo que o papel fundamental da universidade é o de educação, de formar pessoas qualificadas em nível superior.

A USP se enquadra e se situa bem entre as universidades de pesquisa?
Ela é bem vista por todos os tipos de ranking. Há uma unanimidade de que na América Latina a USP é a primeira universidade. Existem outras boas no Brasil, mas são poucas. O clube de universidades de pesquisa no Brasil é muito pequeno.

Como pegar essa universidade múltipla e dar coerência à atividade de pesquisa desenvolvida por tantos grupos com diferentes objetivos?
Em primeiro lugar é preciso fazer com que eles voltem a sua atenção novamente para o centro, que é a universidade. E, por meio da universidade, retomem sua relação com a sociedade. Nós não fazemos pesquisa por diletantismo, mas porque buscamos conhecimento novo, que pode ter uma aplicação imediata ou não. Pesquisa não é atividade de laboratório exclusivamente, é toda atividade criativa, inclusive o desenvolvimento da cultura, que é responsabilidade da universidade.

Incluindo arte?
Artes e humanidades, que representam uma contribuição importantíssima da USP. Se observarmos alguns rankings que subdividem o desempenho da universidade, a USP está muito bem situada nas humanidades. Isto é algo que temos que promover: um diálogo muito mais intenso entre essas culturas acadêmicas. Quando falo em dar unidade ou coerência, é trazer a atenção dos pesquisadores, principalmente dos mais bem-sucedidos, de volta para a universidade e, através da universidade, para a sociedade. Um dos caminhos que encontramos para isso foi colocar recursos próprios para apoiar pesquisa. Isto nunca houve, de maneira intensa, em nenhuma universidade brasileira. Começou aqui, embora a quantidade de recursos não seja muito vultosa comparada àquilo que a USP já emprega em pesquisa. Investimos cerca de R$ 2 bilhões por ano em pesquisa, embora isso não apareça para as pessoas.

Nessa conta estão os recursos postos pela FAPESP e CNPq?
Não. Os R$ 2 bilhões são os recursos orçamentários que a USP distribui para suas atividades. Uma parte considerável vai para pagar técnicos, infraestrutura de laboratório, reformas, água, luz, a parcela do tempo integral correspondente a atividade de pesquisa… Tudo é pago pela universidade. Nas universidades americanas esses recursos saem do grant do pesquisador. Ele usa os seus recursos para pagar bolsas, técnicos, a conta do telefone e as reformas do laboratório, tudo. Acontece que a utilização desse dinheiro é diversa. Nós damos a infraestrutura básica e alguns recursos que vêm no holerite e as pessoas não notam. Além disso, há o dinheiro da FAPESP, distribuído em propostas que são submetidas à avaliação externa, em que predomina o mérito. Isso introduz um componente de qualidade para a distribuição do dinheiro.

Como é o programa de apoio à pesquisa criado pela Pró-Reitoria?
Em dois editais internos, sucessivos, colocamos R$ 73 milhões no primeiro ano de gestão, que foi 2010/2011, e depois mais R$ 73 milhões em 2011/2012. Para isso convidamos os pesquisadores a apresentarem propostas de pesquisas, que seriam analisadas pelo mérito, que contemplassem a formação de um grupo que tivesse duração limitada, e que obrigatoriamente tivesse uma conotação multidisciplinar. Também deveriam ter um foco num problema importante da sociedade, de aplicação imediata ou de análise teórica. Com isso, dos dois editais nós selecionamos 43 no primeiro ano e 75 no segundo, de tal maneira que nós temos 118 núcleos, ou centros de pesquisa. Demos a eles o nome de NAP, Núcleo de Apoio à Pesquisa.

De alguma forma os NAPs se superpõem a Cepid e INCTs?
Vocês estão falando sempre com o mesmo indivíduo. É claro que a ideia de as pessoas se agregarem ao redor de um tema surgiu daí. Eu coordeno um Cepid desde 2000. Quando fui presidente do CNPq, novamente tínhamos a ideia de tentar fazer algo que tivesse a característica de agregar grupos. Usei o modelo do Cepid e dentro do que era possível fazer em escala nacional nós fizemos os INCTs, que foram e ainda hoje são o maior programa de ciência e tecnologia que o CNPq coordenou.

Os NAPs têm então o claro objetivo de agregar mais os pesquisadores na universidade?
Sim. Outra providência complementar vem da Agência USP de Inovação, hoje ligada à Pró-Reitoria de Pesquisa. Ela foi inteiramente renovada e tem uma função importante de resolver problemas dos docentes pesquisadores relacionados, por exemplo, com escrever patentes, tratar isto do ponto de vista legal, fazer negociação com empresas que queiram licenciar patentes, entre outras tarefas. Hoje os pesquisadores reconhecem que o panorama mudou. Tanto que a USP é a universidade brasileira que deposita o maior número de patentes no INPI [Instituto Nacional de Patente Industrial].

Esse dado é interessante porque sempre que se fala em patente de universidades a Unicamp aparece com destaque.
Há uma tradição porque, de fato, a Unicamp se organizou muito antes da USP. É altamente competente neste aspecto. No período de 2000 a 2006, a USP depositava, em média, 29 patentes novas por ano, que subiu para 81 patentes novas anuais entre 2007 e 2011. Entre 2009 e 2011, os dados acumulados em três anos são: USP 231, UFMG 178 e Unicamp 170. Além disso, a Agência de Inovação ganhou outras funções. Por exemplo, atuar decisivamente na parte educativa. Se a principal contribuição da universidade é a educação, vamos também formar pessoas com espírito inovador. Não são as patentes que os pesquisadores depositam que vão mudar o panorama do país. O que pode mudar é formar jovens que vão sair da universidade e fazer as coisas acontecerem. Este ano nós criamos um curso de empreendedorismo e há 200 alunos de graduação frequentando.

Em 2009, o senhor dizia que os INCTs poderiam mudar o modelo de produção científica no país. Chegou perto disso?
Acho que a grandeza e parte dos objetivos foram abandonados. Hoje o projeto nacional de ciência e tecnologia é enviar estudante para o exterior. Quando criamos os INCTs tínhamos um programa do qual participava grande número de componentes, não só como financiadores, mas como planejadores e fazendo o acompanhamento. Convencemos as FAPs [fundações de amparo à pesquisa] a participarem. A primeira a entrar foi FAPESP, depois vieram as outras. Nós tínhamos um primeiro grande programa com um único objetivo, do qual participavam o CNPq, a Capes, as principais FAPs, a Petrobras, o BNDES. Se tivesse seguido esse rumo inicial, nós teríamos um crescimento do papel do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação,  não só como financiador. Seria possível atrair muito mais dinheiro do que o ministério é capaz de movimentar e colocar todos para conversar e acertar suas diferenças, os contrapesos de maior influência do Sudeste em relação ao Nordeste e ao Norte, e assim por diante.

Quais os outros projetos que podem levar os pesquisadores da USP a se agregarem mais ao redor da universidade?
Todo novo professor contratado ganha recursos para atender às suas primeiras necessidades como docente, desde que demonstre ter submetido um pedido de auxílio à pesquisa para a FAPESP. O sucesso desse programa, de 2010 para cá, é enorme, porque quando a gente faz a conta de quanto investimos e o quanto eles trazem de auxílio da pesquisa é sete vezes mais.

Vamos falar sobre os rankings. A USP está subindo em todos eles porque a universidade de fato melhorou, ou porque está se expondo de modo mais eficiente?
Acho que são as duas coisas. Ela melhorou em alguns aspectos e em outros passou a se apresentar melhor. Há rankings extremamente objetivos, não dependem de análise de opinião, como o Webometrics Ranking of World Universities. Ele trabalha com medidas de tráfego de internet e de quantidade de documentos disponíveis. Nesse ranking nós melhoramos enormemente [a USP está colocada em 15º lugar]. Isso ocorreu porque, em parte, a universidade se organizou melhor. E, em parte, o fato de que ela começa a ser mais conhecida faz com que o tráfego na internet aumente.

E os outros rankings?
Outros são baseados no desempenho. Em um ranking importante como o de Xangai, que dá um valor importante para a pesquisa, ao olhar os scores vemos que a USP tem um desempenho excepcionalmente bom. No entanto, eles usam alguns critérios que são importantes para o desempate nos primeiros lugares e nesses nós não temos um desempenho tão bom. Eles levam em conta o número de ganhadores de prêmios Nobel que ensinam na universidade, o número de ex-alunos ganhadores de Nobel e da medalha Fields etc. Isto é importante para desempatar Cambridge, Harvard, MIT. Por outro lado, pode provocar um enorme desequilíbrio se alguma instituição tiver um; por exemplo, se uma universidade mal classificada no ranking contratar um ganhador de Prêmio Nobel, ela vai subir muito. Significa que a universidade melhorou enormemente? Não.

E os rankings que medem opinião?
Alguns são mais influenciáveis por fatores como esse, sem dúvida. Para avaliar a pesquisa, bem ou mal nós dispomos de dados, como o número de trabalhos publicados, o número de citações e o impacto das revistas. É um conjunto informativo, que dá ideia de como está a pesquisa, pelo menos para as áreas experimentais. Recentemente começaram a surgir outros instrumentos de avaliação que vão aperfeiçoando isso. Há o Google Acadêmico, que já pega muito o impacto das ciências sociais. Às vezes, recorre-se à opinião de especialistas.

É só outro critério…
Subjetivo, mas é um critério. O ranking mais valorizado, cujo resultado deve sair por estas semanas, é o da Times Higher Education, o THE. Ele deve 30% ao que é chamado de ranking de prestígio. Isto é, eles perguntam para um grande número de pessoas do mundo inteiro qual a avaliação que elas fazem de diferentes universidades. E isso pesa no ranking final. E este aspecto talvez seja o que mais influenciou o fato de a USP ter sido muito exposta, ou exposta de uma maneira melhor. O que o indivíduo de Paris ou de Hong Kong pensa a respeito da USP ou das outras universidades. Esta opinião pode ser influenciada por ele conhecer pessoas daqui, de nos visitar, de pessoas daqui visitarem a universidade dele.

Essas opiniões impactam o ranking do THE?
Tem um impacto muito positivo. No ranking de prestígio que o THE publicou no início do ano a USP está entre as 70 primeiras do mundo. E certamente vai influenciar o ranking que está para sair porque ele tem 70% de avaliação objetiva, que são indicadores, e 30% de opinião.

O que tem sido feito na USP sobre a necessidade da internacionalização da pesquisa brasileira?
A maneira de fazer uma internacionalização mais produtiva é estabelecer alianças com um grupo selecionado de universidades. Na Pró-Reitoria escolhemos algumas delas e procuramos fazer acordos, seminários conjuntos para depois propormos pesquisas bilaterais. No momento estamos fechando um acordo com a Universidade de Toronto, do Canadá, uma das 15 ou 20 melhores do mundo, que inclui conferências conjuntas e editais para pesquisa em colaboração. O mesmo está acontecendo com outras universidades importantes.

Vamos dar um salto aqui. Gostaríamos de saber como ficou seu lado pesquisador desde que se tornou pró-reitor?
Seria ilusório achar que desde que saí para ser presidente do CNPq, em 2007, e depois para assumir a Pró-Reitoria, eu mantivesse o mesmo tipo de atividade que tinha no laboratório. Esta participação pessoal e intensa no dia a dia de checar o método, de ver um resultado pessoalmente, de refazer, de montar experimentos de bancada, isso não faço mais. Por outro lado, há um grupo de pesquisadores que trabalham comigo há muito tempo e estou quase sempre participando das discussões toda semana.

Qual é, do seu ponto de vista, sua maior contribuição à produção do conhecimento feito na USP?
Eu dividiria minha contribuição em três períodos fundamentais. Na fase inicial, fui para a Universidade de Oxford fazer um pós-doc e voltei capacitado para realizar pesquisa básica de bioquímica envolvendo hemoglobinas. Lá trabalhei com o David Weatherall, um dos pioneiros na área de hemoglobinopatias. Servindo como médico no sudoeste da Ásia, ele viu grande quantidade de crianças com talassemia, uma forma de doença muito especial, e junto com o bioquímico John Clegg investigou o mecanismo básico da doença. Havia evidências de que isso se deveria a um desequilíbrio na síntese das duas cadeias da hemoglobina, alfa e beta. Elas são muito semelhantes, sintetizadas sobre controle de genes diferentes. Há no indivíduo normal um equilíbrio: duas alfas e duas betas formam uma cadeia de hemoglobina. Os dois desenvolveram um método que permite medir a síntese dessas cadeias. Com isto provaram que na talassemia há um desequilíbrio. Ao voltar ao Brasil, eu sabia que essas doenças eram comuns aqui e comecei a estudá-las. Encontrei uma quantidade grande de pacientes e consegui estabelecer métodos de diagnóstico e de tratamento dessas doenças.

Não tinha como tratar naquela época?
Não tinha. Era muito desordenado, não havia protocolos de segmento, de tratamento… Acabei me envolvendo não só com pesquisa, mas com atividades de organização e de tratamento também. Convenci o Ministério da Saúde a estabelecer um programa para o tratamento dos pacientes com anemia falciforme. O programa existe até hoje e evoluiu para fazer também o diagnóstico neonatal.

Foi uma contribuição tanto em termos de pesquisa básica quanto de interferência direta na aplicação.
Isso. Tinha um outro componente dessas doenças que era a talassemia, uma doença complexa em termos de tratamento porque exige que o paciente receba transfusões regulares de sangue. É preciso haver algum lugar onde sejam recebidos e seguidos mensalmente. Uma das complicações é o acúmulo de ferro no organismo. Para eliminação desse elemento, àquela época, só existia um medicamento que tinha que ser dado por injeção – e uma injeção de longo tempo. Para isso se usa uma bomba infusora, que não existia no Brasil e não havia maneira de importar. Eu e um colega, Sebastião Ismael, planejamos uma bomba dessas, que foi fabricada ainda no tempo do Ibecc [Instituto Brasileiro de Educação, Ciência e Cultura] com o Isaias Raw.

A talassemia é menos prevalente na população do que a anemia falciforme?
É a metade, mais ou menos. A forma grave da anemia falciforme se deve à homozigose do gene da hemoglobina S. A prevalência do heterozigoto é mais ou menos 2% da população, aqui no estado de São Paulo – isso varia de lugar para lugar no Brasil porque ela foi trazida pelo tráfico de escravos. Onde se tem uma população com maior frequência de genes africanos a frequência é  maior. A talassemia é um outro tipo de alteração do mesmo gene beta que quando o individuo é homozigoto ele tem uma doença muito grave. Essa mutação veio das regiões mediterrâneas, principalmente Itália, Portugal, Espanha e um pouco do Líbano.

Foram esses estudos que o levaram a outro campo de pesquisa, a genética de populações?
Foi o que aconteceu. O mundo mudou, todos começaram a estudar DNA. E meu grupo começou a examinar, em Ribeirão Preto, nos anos 1980, o DNA relacionado a algumas doenças, e depois à genética populacional. O nosso primeiro estudo foi focado no gene da anemia falciforme (beta S). Em regiões próximas do gene há elementos que chamamos de polimorfismos, que definem haplótipos. No gene da anemia falciforme, conforme o local da África, o gene beta S é sempre o mesmo, mas o haplótipo a que está associado é diferente. Quando examinamos os negros na população brasileira que têm anemia falciforme, olhamos o gene e o que está ao redor dele. Com isso é possível saber de qual região da África os antepassados vieram e recompor o histórico do tráfico de escravos para o Brasil. Feito isto, tivemos uma surpresa. O padrão dos africanos que foram trazidos para o Brasil é muito diferente daqueles que foram levados para os Estados Unidos. Fomos os primeiros a demonstrar isso.

E é esse trabalho que demonstra de qual região da África vinham eles?
Isto. Mais ou menos 60% vieram das regiões com haplótipo banto, isto é, Moçambique, República Centro-Africana, Angola, o sul da África. Da região de Benim vieram de 30% a 35%. E da região de Gâmbia e Senegal, de 1% a 2%. Nos Estados Unidos o predomínio é de Benim, mais ou menos 60%, 15% do Senegal e 15% de Gâmbia. Depois que fizemos esse estudo, encontrei um livro que se chama The atlantic slave traffic, de Philip Curtin, que trabalhando com documentos primários dos portos de partida e de chegada mostra números exatamente iguais aos nossos.

A sua terceira fase de contribuições se refere à genômica?
Sim, nesse momento eu já estava longe da medicina, propriamente dita, tinha um grupo que tratava de questões de genética molecular e genética populacional, quando começou o sequenciamento da bactéria Xylella fastidiosa, em 1998, um marco importante para a ciência brasileira.

O seu laboratório tinha algum domínio dessa tecnologia?
Sim, mas o programa genoma trouxe foco para o trabalho e isto nos ajudou muito. Depois da Xylella emendamos no genoma do câncer com o Ricardo Brentani, do Hospital do Câncer, e com o Andrew Simpson, do Instituto Ludwig. Ao mesmo tempo, surgiu a oportunidade de nos organizarmos ao redor de um Cepid, em 2000, e decidimos investir na terapia celular e nas células-tronco. Fomos muito bem-sucedidos e avançamos em pontos que eram desconhecidos na época. Células mesenquimais, por exemplo, eram vistas como exclusivas da medula óssea. Fomos nós que mostramos que elas existem na veia umbilical, na artéria safena, e depois descrevemos que existem praticamente em todos os tecidos adultos e fetais, porque é uma célula que está presente na parte exterior dos pequenos vasos, chamados pericitos. Para esse tipo de conhecimento demos uma contribuição relevante.

Esse é seu trabalho mais citado?
O mais citado é o sequenciamento da Xylella, em que há mais de 100 autores. O segundo é a primeira análise feita no mundo sobre o padrão de expressão gênica das células mesenquimais, de 2003. E o terceiro é o que mostra que as células mesenquimais, obtidas de fontes muito diferentes, têm um padrão e propriedade muito semelhantes aos pericitos e aos fibroblastos.

O senhor viveu a fase da euforia da genômica e vive a fase atual em que está claro que ainda há um longo caminho a percorrer. Como vê essa questão hoje?
Na ciência é sempre assim. Escrevi um livro com o Dimas Covas chamado Células-tronco, a nova fronteira da medicina, sobre terapia celular. No prefácio eu digo que o entusiasmo exagerado, em grande parte inflado pela imprensa, ocorre repetidamente. Eu alertava que havia, naquele momento, em 2006, uma expectativa que era absolutamente irreal com relação a células-tronco, como se aquilo fosse salvar a humanidade nos próximos dias. A técnica de produção de linhagens de células-tronco embrionárias é muito difícil. Com a genômica foi a mesma coisa. É difícil ver um trabalho de biologia celular molecular hoje que não envolva sequenciamento de genes. Daí a achar que isso irá resolver toda a questão do conhecimento relativo à biologia seria uma grande ingenuidade.

Mas houve avanços.
A história mostra que nenhum tópico da ciência se resolve com uma técnica ou uma única descoberta. Damos um passo a mais e melhoramos o conhecimento. Mas hoje já temos medicamento vendido em farmácia que foi desenvolvido porque se pegou o gene numa neoplasia, sequenciou-se e descobriu-se que era um gene híbrido, que alterava a síntese de uma determinada proteína. A indústria farmacêutica produziu um inibidor que é usado por via oral e impede o funcionamento do gene – e o individuo melhora da doença. Então a genômica produziu efeitos sim e vai continuar produzindo. Pode ser que a praga do amarelinho, causada pela Xylella, não tenha sido resolvida. Mas essa é uma coisa menor comparada aos benefícios que já obtivemos.

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