“Eu tô te explicando/ Pra te confundir/ Eu tô te confundindo/ Pra te esclarecer/ Tô iluminado/ Pra poder cegar/ Tô ficando cego/ Pra poder guiar”, cantarola Tom Zé em “Tô”, quarta faixa do álbum Estudando o samba, de 1976. Indiretamente, o refrão do cantor baiano poderia se referir ao impacto da produção musical dos artistas escolhidos pelo historiador Herom Vargas, professor titular do programa de mestrado em comunicação da Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS) e da Universidade Metodista de São Paulo (Umesp), como foco da pesquisa Experimentalismo e inovação na música popular brasileira nos anos 1970. Além de Tom Zé, Novos Baianos, Walter Franco e Secos & Molhados compõem entre si um apanhado díspar, mas que conta uma história da criatividade e da experimentação da música brasileira num período em que a indústria fonográfica no Brasil passava por um momento de expansão e centralização.
Em seu trabalho de 1994 O berimbau e o som universal, Enor Paiano, autor de Tropicalismo: bananas ao vento no coração do Brasil (Scipione), colhe alguns dados que demonstram o crescimento do mercado fonográfico brasileiro na época: 444,6% entre 1966 e 1976, num período em que o crescimento acumulado do PIB foi de 152%. Entre as empresas que mais faturavam com esse crescimento estava a Continental, gravadora brasileira fundada em 1929 e sediada em São Paulo, que contava com um elenco de artistas populares e regionais. “A Continental foi a maior gravadora nacional de todos os tempos”, enfatiza Eduardo Vicente, professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP) e autor da pesquisa Música e disco no Brasil: a trajetória da indústria nas décadas de 80 e 90, de 2002.
“Lá por 1970 a Continental decide ir além do seu elenco regional e começa a gravar músicos novos. Walter Franco, Secos & Molhados, Novos Baianos e Tom Zé tinham pouca ou quase nenhuma abertura com as gravadoras maiores e multinacionais que estavam começando a entrar no mercado, como a Philips”, explica Vargas, justificando a escolha dos nomes analisados na pesquisa.
Mas, além das realidades do mercado, outros dois fatores ainda pesam no surgimento dessa geração experimental. “Existe uma repressão muito forte da ditadura militar na primeira metade dos anos 1970. Esses artistas, como outros da música popular, vão tentar driblar a questão da censura. Mas, diferentemente de um Chico Buarque, não têm um viés político declarado, aberto, eles operam pelas frestas. Trabalhavam a linguagem da canção como um caminho de provocação”, reflete Vargas.
Por fim, há também o contexto internacional da contracultura – nome que se deu ao conjunto de atitudes e novas relações sociais e também artísticas que começam a se delinear na segunda metade da década de 1960 na Europa e EUA e que reverberam de diferentes formas mundo afora, do maio de 1968 francês ao tropicalismo brasileiro.
Para falar dessa nova geração, o pesquisador recorreu ao termo “pós-tropicalismo”: “O termo pós-tropicalismo tem sido empregado com razoável discernimento para nomear um segmento da produção musical do período que, de alguma maneira, seguiu parte de seus passos”, escreveu ele no artigo “Categorias de análise do experimentalismo pós-tropicalista na MPB”. “O tropicalismo criava suas novidades dentro do contexto dos festivais de música televisivos, muitas vezes numa crítica à própria esquerda. Os Novos Baianos, por exemplo, faziam isso já dentro da canção, num contexto mais musical”, diferencia Vargas.
O grupo de Luiz Galvão e Morais Moreira é emblemático dessa transição. Formado em 1969 em Salvador, mudou-se em 1971 para o Rio de Janeiro e, sob a influência de João Gilberto, começou a incorporar diferentes elementos do samba ao seu rock em álbuns como Acabou chorare e Novos Baianos FC. “Pegue a regravação deles para “O samba da minha terra”, de Dorival Caymmi. Quando o Pepeu Gomes entra com a guitarra você ouve riffs, solos, que são da linguagem associada ao rock. Mas a música ainda é um samba”, exemplifica Vargas.
Contracultura
Além da música, o comportamento do grupo – que por um período de tempo conviveu coletivamente em um sítio no Rio de Janeiro – também foi importante na continuidade do tropicalismo. “Os Novos Baianos traduziram o que poderíamos chamar de ‘versão brasileira da contracultura’”, afirma o professor e pesquisador da Unicamp José Roberto Zan. “A vida em comunidade, as drogas, o procedimento tropicalista de combinar elementos musicais do pop internacional com a música brasileira (samba e gêneros regionais como o frevo) compõem um estilo que expressa ressonâncias da contracultura na nossa música popular.”
Outro grupo que expressou sua discordância através do corpo e da performance – e, inevitavelmente, do rock – foi Secos & Molhados. Mesclando rock progressivo, blues, incorporando referências folclóricas luso-brasileiras (em “O vira”) e com a utilização constante de poesia – de nomes como Vinicius de Moraes, Manuel Bandeira e Fernando Pessoa, entre outros –, o trio teve uma carreira meteórica, com dois álbuns lançados entre 1971 e 1974 e um enorme sucesso popular, impulsionado pelo apelo visual das maquiagens e da teatralidade sexualmente ambígua do vocalista Ney Matogrosso.
As maquiagens em preto e branco que marcaram a visualidade do grupo aconteceram meio que ao acaso. Antes do sucesso de Secos & Molhados, Matogrosso era ator e, numa apresentação do grupo na Casa da Badalação e Tédio, clube anexo ao teatro Ruth Escobar, chegou atrasado, diretamente de uma peça infantil em que estava atuando anteriormente e, na pressa, subiu ao palco ainda maquiado. João Ricardo, fundador e principal compositor da banda, e o companheiro Gérson Conrad ficaram animados com a reação da plateia e resolveram adotar o estilo.
Esse artifício era amplificado pela própria performance de Matogrosso no palco e na televisão, que no início dos anos 1970 reclamava um novo papel hegemônico. No artigo “Corpo e performance no experimentalismo do grupo Secos & Molhados”, Vargas descreve com precisão a postura do cantor: “Sua figura é altiva (peito nu estufado e cabeça erguida), mesmo de pés descalços, os olhos são arregalados, a voz aguda é marcante, movimentos exagerados da boca marcam a pronúncia das palavras, movimentos de quadris insinuam outros códigos, penas, colares e lantejoulas bailam com o corpo, séries de movimentos de dança ou completamente livres sobre o palco transformaram-se em códigos de desprendimento. Não eram movimentos ensaiados e sempre iguais”.
Ao invés de afastar o público em um país ainda conservador, o efeito foi contrário: shows lotados país afora, turnê no México, álbuns vendidos às centenas de milhares. “Os dois LPs do grupo Secos & Molhados foram, talvez, o maior fenômeno de vendas da indústria fonográfica brasileira naquele período”, observa Zan. “Acredito que a experiência do grupo definiu novos padrões de encenação da canção num momento em que a televisão se consolidava como o principal meio de comunicação de massa no país. Ao mesmo tempo, as performances antecipavam a invenção do clip, um novo componente da linguagem da música popular.”
Diferentemente desses casos em que a experimentação se traduziu em sucesso popular, Walter Franco é um exemplo de como o radicalismo mais aguerrido não encontrava eco fora da vanguarda, que acabou sendo batizada, especialmente pela sua postura de enfrentamento, de “malditos”. O compositor paulistano começa a ganhar projeção a partir da sua apresentação em 1972 no VII Festival Internacional da Canção, da Rede Globo, apresentando a música “Cabeça”. Sem letra, a faixa era uma colagem de frases e fragmentos, sobre uma camada de sons sintetizados. Apesar de ter sido hostilizado e vaiado pelo público durante a apresentação, a canção foi encarada com simpatia pelo júri presidido por Nara Leão, e para evitar que a obra polêmica fosse premiada, a emissora acabou destituindo o júri, amplificando a polêmica.
Após o entrevero, Franco acabou contratado pela Continental, onde lançaria dois álbuns: Ou não, de 1973, e Revólver, de 1975. “É possível fazer um paralelo entre a poesia concreta e o trabalho de Franco, especialmente no sentido da concisão”, nota Vargas. “Ele utiliza poucas notas, uma melodia muito restrita, letras em sua maioria curtas. Mas ele demonstra os sentidos no canto, no arranjo, na performance. ‘Cabeça’, por exemplo, não tem letra, é só uma frase, mas a cada repetição, ao vivo, ele dá um novo sentido. A poesia concreta tem isso: a mensagem precisa ser concisa, mas ao mesmo tempo precisa ter muito sentido dentro dela para ser compreendida pelo público.”
A preocupação com a palavra e os experimentos atonais e com colagens acabaram influenciando uma geração posterior de músicos, na chamada Vanguarda Paulistana, do final dos anos 1970 e início dos 1980. “Parece haver ali um diálogo”, nota Zan. “Vale ouvir e comparar as composições ‘Cabeça’, de Franco, e ‘Minha cabeça’, de Luiz Tatit e Zé Carlos Ribeiro, presente no LP Rumo, de 1981.”
Outro músico cuja obra setentista vai ter uma influência posterior na música brasileira é Tom Zé. Participante do núcleo central do tropicalismo, compondo com os Mutantes e gravando no álbum-manifesto Tropicália ou panis et circensis, de 1968, o músico baiano, discípulo de Hans Joachin Koellreutter, teve uma fase especialmente criativa – mas de pouco impacto imediato – nos anos 1970.
Experimentação
Em álbuns como Todos os olhos e Estudando o samba, Zé elege a canção como seu veículo de experimentação e crítica. Seu objetivo era remodelar o que ele mesmo mais tarde viria chamar de “acordo tácito” entre artista e público, em que existia uma ideia preconcebida do que seria uma canção “de fato” e o que “não seria música” – acusação intermitente do público às vaias nos festivais contra toda música que saísse desse insondável “padrão”.
Dessa forma, Tom Zé vai buscar diferentes recursos para desconstruir a canção a partir de dentro. “Um exemplo é o uso do ostinato, célula rítmica e melódica repetida durante toda a música. Ele utiliza isso em várias composições do período, e a cada repetição algo novo acontece na música. Esse uso não é muito comum na música popular, que costuma ter uma estrutura dividida em primeira e segunda parte, refrão, solo etc.”, observa Vargas.
Além disso, Tom Zé fazia o uso amplo de objetos “não musicais” dentro de suas composições, adaptando propostas da vanguarda erudita. “O que me salvou foi que eu sou um péssimo compositor, um péssimo cantor e um péssimo instrumentista. Então, quem é péssimo, tanto faz tocar piano como tocar enceradeira!”, declarou o músico em 2006, explicando suas escolhas.
Um terceiro ponto que Vargas gosta de observar na obra do compositor nesse período é certa mistura de sinais, com Tom Zé invertendo, misturando e se apropriando de estilemas relacionados a diferentes gêneros populares. Em Estudando o samba essa vocação aparece com vigor, e o músico analisa, decompõe e recompõe “estruturas rítmicas, estilemas melódicos e temáticos, timbres instrumentais e formas tradicionais de interpretação do samba”, como explica Vargas no artigo “As inovações de Tom Zé na linguagem da canção popular dos anos 1970”. “Há no disco uma versão para ‘Felicidade’, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes. Ele desconstrói a música, fica estranha, mistura o compasso binário do samba com um violão no compasso ternário e apresenta entradas de ruídos, sons gravados.”
Essa fase da música ainda deve render novas discussões. “Quero estudar melhor essas condições em que se desenvolveram esses artistas nos anos 1970 e falar sobre a Continental e a ditadura, as gravadoras e o pano de fundo da época”, conta o pesquisador.
Projeto
Experimentalismo e inovação na música popular brasileira nos anos 1970 (nº 2009/18261-0); Modalidade Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa; Coordenador Herom Vargas – Universidade Metodista; Investimento R$ 11.587,00 (FAPESP).