Léo RamosQuem está acostumado a consumir laranjas, tangerinas e limões à venda nos supermercados pode ter uma surpresa prazerosa no Centro de Citricultura Sylvio Moreira em Cordeirópolis, no interior paulista. Entre pequenas árvores mantidas em estufas e um enorme pomar com plantas adultas, ali está uma coleção com mais de 1.700 tipos de frutas cítricas. Entre elas, quase 700 variedades de laranjas doces – aquelas adequadas para consumo em sucos ou in natura – e quase 300 de tangerinas. A degustação de frutos de árvores diferentes nesse centro de pesquisa ligado ao Instituto Agronômico de Campinas (IAC), da Secretaria de Agricultura, revela uma riqueza surpreendente de sabores e texturas. “Todo material que a citricultura brasileira tem passou por aqui em algum momento”, resume o agrônomo Marcos Machado, pesquisador do Centro de Citricultura e coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Genômica para Melhoramento de Citros (INCT Citros).
Ao longo dos 85 anos de existência do centro, pesquisadores cruzaram variedades diferentes em busca, principalmente, de produzir plantas resistentes a doenças. Partindo de cruzamentos tradicionais, quase como os que deram origem aos cítricos que chegam ao público desde a domesticação dessas espécies, o centro foi enriquecendo seu arsenal de técnicas com a disponibilidade de informações genéticas. Até agora esse conhecimento se concentrou no uso de marcadores moleculares para caracterizar cruzamentos, avaliando quais descendentes da mistura entre duas variedades (ou espécies) receberam o material genético de interesse dos pesquisadores. Mas agora a era genômica chegou ao Centro de Citricultura, abrindo novas possibilidades.
O primeiro grande passo, que rendeu um artigo publicado em junho no site da Nature Biotechnology, trouxe revelações inesperadas sobre a origem das laranjas e tangerinas que hoje existem. Já se sabia que as frutas cítricas não são espécies naturais, mas híbridos aprimorados por cruzamentos naturais ao longo dos últimos milhares de anos. Mas não há registros dessa história da domesticação do gênero Citrus, que começou no Sudeste da Ásia. “Sabíamos que havia misturas, mas não tínhamos detalhes”, conta o biólogo Marco Takita, um dos autores.
Uma surpresa foi descobrir que algumas tangerinas, que se precisava serem variações da espécie ancestral C. reticulata, na verdade contêm em seu genoma vários trechos de outra espécie, a toranja (C. maxima). Esta é como se fosse uma laranja enorme, com até um quilograma, explica Takita, que não é consumida por aqui. É usada como fonte de diversidade genética em programas de melhoramento e, agora se sabe, participou nos cruzamentos que resultaram na tangerina poncã, que por seu sucesso comercial no Brasil foi sequenciada no Centro de Citricultura, com recursos do INCT Citros, que tem financiamento da FAPESP e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). “É importante saber que a toranja serviu como fonte genética”, afirma o pesquisador.
O estudo encontrou também uma espécie inesperada. A tangerina chinesa conhecida como mangshan, que se considerava ter a mesma origem das outras tangerinas, é na verdade uma espécie distinta, C. mangshanensis, que parece ter um parentesco distante com a C. reticulata.
Outra surpresa para os consumidores vem da laranja doce, que nas feiras brasileiras são vendidas como laranja-pera, baía ou lima, em suas variedades mais comuns. Uma mistura de C. reticulata e C. maxima, essas laranjas na verdade compartilham uma semelhança genética com tangerinas como a poncã em boa parte do genoma. Os resultados revelam uma diversidade genética muito pequena entre laranjas do tipo doce e tangerinas a partir de uma origem comum. “O desafio agora é entender por que elas são tão parecidas geneticamente e tão diferentes no paladar, por exemplo”, diz Takita.
A laranja-azeda, usada, por exemplo, para fazer doces, é também um híbrido das espécies ancestrais da toranja e das tangerinas. As inferências que se podem fazer hoje a partir dos estudos genômicos, como se o filme fosse recriado do presente para o passado, indicam que o surgimento dessas frutas na natureza parece ter acontecido no sudeste asiático há alguns milhares de anos, antes de serem distribuídas pelo mundo.
O consórcio de pesquisadores em busca de genomas cítricos começou a ser formado em 2005, com participação ativa dos pesquisadores do Centro de Citricultura. Depois de quase 10 anos de trabalho, porém, em que se tinha avançado com o sequenciamento de uma clementina espanhola, um tipo de mexerica, um grupo chinês se adiantou e publicou o genoma da laranja doce na revista Nature. Com resultados semelhantes em mãos, o grupo internacional decidiu ampliar o trabalho. “Sequenciamos mais seis genomas e produzimos uma discussão mais elaborada, que chega a contestar alguns pontos do trabalho chinês”, conta Machado.
Os resultados mostram por que, no caso dessas plantas, cada vez se sabe menos o que é uma espécie. “Há quem diga que existem 163 espécies de Citrus, outros distinguem somente 16”, exemplifica o pesquisador. “Lineu classificou seis”, completa, referindo-se ao naturalista sueco tido como pai da classificação dos seres vivos, por ter criado no século XVIII o sistema binomial de denominação científica usado até hoje.
Melhoramento
Com esse ponto de partida, Machado acredita que o enfoque genômico seja uma forma de “pensar alto sem tirar os pés do chão”. O grupo brasileiro já começou a estudar a ancestralidade do limão, que tem origem na espécie C. medica, com o sequenciamento do limão-cravo. A seleção não foi ao acaso: por sua capacidade de crescer em condições mais áridas, esse tipo de limão é usado em 85% da citricultura paulista como porta-enxerto para laranjas e tangerinas. “O norte do estado tem as melhores características para a produção de laranja para suco, mas o clima mais seco exigiria uma irrigação inviável”, explica. O estudo genômico pode ajudar a identificar a base genética para essa resistência, assim como identificar genes associados a determinadas características para direcionar os cruzamentos e talvez até conseguir em laboratório a transferência de genes, chamada de cisgenia pelos especialistas (distinta da transgenia por envolver espécies de um mesmo grupo que podem gerar híbridos naturais).
Com a importância econômica dos cítricos, esses estudos são essenciais não só para atender a demandas do mercado e orientar a busca por novas variedades e aperfeiçoamento do sabor e outras qualidades das frutas, mas também para fazer frente a doenças. No caso das laranjas, destacam-se a clorose variegada dos citros (CVC), causada pela bactéria Xylella fastidiosa, e a huanglongbing, ou greening, que entrou no Brasil há 10 anos e ameaça os pomares. As tangerinas são resistentes à CVC, mas suscetíveis à huanglongbing, além de sofrerem com a mancha marrom de alternária, uma doença causada por fungo que provoca manchas nas folhas e frutos, e causa perda de folhas. A homogeneidade genética destacada no estudo da Nature Biotechnology deixa claro por que os cítricos são presas fáceis de microrganismos que atacam as plantações: quando uma árvore não consegue resistir a uma doença, as outras do mesmo tipo também não conseguem, já que são muito parecidas. Por isso, uma grande parte das atividades do Centro de Citricultura envolve produzir variedades resistentes a essas doenças. “Alguns cruzamentos entre tangerinas, por exemplo, produzem frutas que não têm valor direto para consumo, mas geram variabilidade genética importante”, explica a engenheira agrônoma Mariângela Cristofani-Yaly. Publicações recentes do grupo do Centro de Citricultura, como na revista Journal of Agricultural Science em 2013 e deste ano na Bragantia, expõem resultados dos esforços para a criação de novas possibilidades de porta-enxerto e de variedades produtoras de frutos.
“Primeiro introduzimos a resistência, e depois voltamos a buscar a qualidade da fruta”, conta a pesquisadora. Para avaliar as possibilidades dos cruzamentos para a produção de novas variedades para suco ou consumo direto, toda a população do Centro de Citricultura – pesquisadores, estudantes e funcionários – acaba servindo como cobaia em experimentos de avaliação sensorial, que levam em conta o julgamento de características como cor, sabor e facilidade de descascar, como mostra artigo de 2013 no Journal of Agricultural Science. Além disso, as plantas são também classificadas quanto à sua produtividade, rendimento de suco e época de frutificação, entre outras características.
A produção acadêmica é uma faceta da personalidade desse centro de pesquisa no interior paulista. O outro lado de sua vocação é contribuir para o aprimoramento dessa cultura em que o Brasil tem destaque como o maior produtor de laranja do mundo e o terceiro em mexericas, tangerinas e afins. A China ocupa o posto de maior produtor mundial de cítricos, mas se concentra sobretudo em tangerinas. “Com as novas técnicas podemos juntar o básico com o aplicado, criar uma plataforma para coisas novas”, planeja Machado.
Mas o mercado brasileiro é também uma limitação. Grande parte das laranjas plantadas no país se destina aos sucos concentrados, de maneira que a indústria tem controle sobre a produção. O interesse principal é quanto suco há nas frutas, além de um preço baixo, o que criou uma crise entre plantadores de laranjas. Nos cálculos de Machado, na última década cerca de 10 mil citricultores abandonaram a produção. Mas ele avalia que essa crise pode acabar por ter consequências positivas para o consumidor. Se os pesquisadores de Cordeirópolis tiverem razão, nos próximos anos mais citricultores aceitarão experimentar o plantio de variedades produzidas como resultado de seu trabalho, e os mercados e feiras podem passar a oferecer uma diversidade maior de cítricos para serem consumidos como frutas de mesa. Uma perspectiva que dá água na boca.
Projetos
1. Plataforma genômica aplicada ao melhoramento de citros (nº 08/57909-2); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável Marcos Antonio Machado (IAC); Investimento R$ 3.533.624,89 (FAPESP).
2. Obtenção e avaliação de novas variedades de copas e porta-enxertos para citricultura de mesa (nº 11/18605-0); Modalidade Projeto Temático; Pesquisadora responsável Mariângela Cristofani-Yaly (IAC); Investimento R$ 859.670,11
Artigo científico
WU, G. A. et al. Sequencing of diverse mandarin, pummelo and orange genomes reveals complex history of admixture during citrus domestication. Nature Biotechnology. On-line, 8 jun. 2014 (FAPESP).