A corrida para produzir a preços competitivos o etanol de segunda geração, biocombustível extraído da celulose de resíduos agrícolas como bagaço de cana, sabugo de milho e madeira, promete multiplicar a oferta de energia renovável, mas ainda envolve a superação de entraves tecnológicos. Um artigo publicado na revista Scientometrics indica que a ciência brasileira está em situação de desvantagem nessa corrida em relação a países competidores. Assinado por pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), da Universidade de São Paulo (USP), o trabalho mapeou artigos científicos publicados no mundo durante 30 anos sobre etanol de segunda geração. Demonstrou que o Brasil, embora seja o segundo maior produtor de etanol de primeira geração, obtido da cana-de-açúcar, não exibe essa mesma proeminência em redes internacionais de colaboração científica dedicadas a vencer gargalos para a produção do etanol de celulose. Os sistemas de inovação de países como Estados Unidos, China e Alemanha têm presença mais expressiva nessas redes do que o Brasil, segundo a pesquisa.
“O conhecimento científico raramente é produzido de forma isolada e depende de colaborações entre várias instituições e países para avançar”, diz o autor do artigo, o economista Luiz Gustavo Antonio de Souza, que atualmente faz estágio de pós-doutorado no Núcleo Interdisciplinar de Planejamento Energético (Nipe), da Unicamp. O paper é resultado de sua tese de doutorado na Esalq, sob orientação da professora Márcia Azanha. No caso do etanol de segunda geração, o trabalho em rede é relevante. “Não há uma tecnologia consagrada, mas pacotes de alternativas em estudo. A exploração das oportunidades depende do trabalho conjunto de vários grupos”, afirma.
O estudo analisou 6.053 artigos científicos da base de dados Web of Science publicados até 2012. Todos estavam vinculados a palavras-chave que remetem a campos de investigação do etanol de segunda geração, como “pré-tratamento”, operação para desmontar a estrutura vegetal do material celulósico; ou “hidrólise enzimática”, rota de transformação da celulose em glicose. O passo seguinte foi identificar, nos artigos em colaboração, quais eram os países, instituições e pesquisadores que trabalhavam juntos com frequência. As redes foram representadas na forma de novelos, nos quais os fios que ligam países ou instituições são tão mais grossos quanto a cooperação é mais frequente (ver infográfico).
A base de dados Web of Science mostra que, ao longo de 30 anos, 103 países tomaram parte na produção do conhecimento sobre etanol de segunda geração. Os Estados Unidos lideram, com 23% do total de papers. Em seguida aparecem a China (9,8%) e o Brasil (4,9%). Em termos de colaboração, os norte-americanos dominam. Alemanha, França, Reino Unido e Suécia vêm na sequência. China, Japão, Índia e Brasil, embora publiquem mais que estes países europeus, estão menos conectados. A pesquisa brasileira se destaca quando a análise focaliza instituições. A USP é a terceira instituição mais forte em colaboração, atrás do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos e da Universidade da Califórnia.
Instituições como Unicamp e Universidade Federal de São Carlos também aparecem no gráfico das instituições. “Os esforços do Brasil se concentram em poucas instituições”, diz Luiz Gustavo. A China tem uma quantidade de artigos semelhante à do Brasil e, na categoria das instituições, aparece em boa situação. “A estratégia da China é se aproximar de quem tem capacidade tecnológica, no caso os Estados Unidos”, explica.
Iniciativas
O esforço brasileiro de pesquisa em etanol de segunda geração se distribui por algumas iniciativas. Uma delas, baseada predominantemente na pesquisa feita em universidades, está vinculada ao Programa FAPESP de Pesquisa em Bioenergia (Bioen), criado em 2008 para aprimorar a produtividade do etanol e avançar em ciência básica e em desenvolvimento tecnológico. Glaucia Souza, professora do Instituto de Química da USP e uma das coordenadoras do Bioen, diz que o destaque obtido pela USP e pelo estado de São Paulo é fruto de investimento recente. “Como são muitos os projetos temáticos no âmbito do Bioen, é comum haver o envolvimento de grupos de outros países. Com o etanol de segunda geração isso também aconteceu”, afirma a pesquisadora, referindo-se, por exemplo, ao Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (Inct) do Bioetanol. Coordenado por Marcos Buckeridge, professor da USP, o Inct do Bioetanol mantém colaborações com pesquisadores dos Estados Unidos, Rússia e Holanda, entre outros. Glaucia também cita o Centro de Processos Biológicos e Industriais para Biocombustíveis (CeProBIO), que envolve parceria com a União Europeia e é liderado por Igor Polikarpov, do Instituto de Física de São Carlos da USP. No campo da aplicação tecnológica, o Laboratório Nacional de Ciência e Tecnologia do Bioetanol (CTBE), em Campinas, montou uma planta-piloto de etanol de segunda geração para avaliar tecnologias propostas e comercializadas no mundo.
Já na pesquisa empresarial, uma iniciativa importante é o Plano de Apoio à Inovação Tecnológica Industrial dos Setores Sucroenergético e Sucroquímico (Paiss), lançado em 2011 pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e pela Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), que disponibilizou R$ 3 bilhões para novas tecnologias de processamento da biomassa de cana. Na carteira de projetos, há algumas plantas de demonstração para produção de etanol de segunda geração: a da empresa GranBio, instalada em 2014 em São Miguel dos Campos, em Alagoas; a da Raízen, que começou a produzir na Usina Costa Pinto, em Piracicaba; e a da Abengoa, que começa a operar em 2016 em Pirassununga. O Centro de Tecnologia Canavieira (CTC) tem uma planta de escala menor, no município paulista de São Manoel.
Empresas estrangeiras
Em comum, as plantas de demonstração trabalham com tecnologias desenvolvidas fora do país. Como não havia no Brasil conhecimento maduro para produzir etanol celulósico, o BNDES e a Finep optaram por atrair empresas estrangeiras. “O Brasil tem as vantagens naturais necessárias para que as tecnologias de produção de etanol celulósico se desenvolvam. Temos recursos naturais e biomassa competitiva, de bagaço e palha de cana”, diz Artur Milanez, gerente da área de biocombustíveis do BNDES. “Várias empresas estrangeiras queriam entrar no nosso mercado. O Brasil tem 400 usinas de cana que passam cinco meses do ano ociosas por conta da entressafra e algumas delas ainda não utilizam a fibra presente no bagaço e na palha. Há muito espaço para celebrar parcerias”, afirma. A expectativa agora é de que pesquisadores brasileiros participem do esforço para solucionar gargalos tecnológicos e adaptar às condições do país tais tecnologias, que foram concebidas para tipos de biomassa disponíveis no hemisfério Norte, como palha de milho e de trigo.
A planta da GranBio, a maior do mundo em etanol celulósico extraído de bagaço e palha de cana, licenciou tecnologias de vários países para iniciar as operações. A empresa DSM, da Holanda, fornece leveduras, e a Novozymes, da Dinamarca, enzimas para hidrólise. A italiana Beta Renewables é a responsável pelos sistemas de pré-tratamento da biomassa. “Desenvolvemos parceria estreita com a empresa norte-americana American Process, de tecnologias e processos industriais”, diz Gonçalo Amarante Guimarães Pereira, sócio-fundador da empresa e professor do Instituto de Biologia da Unicamp. A GranBio tem participação na American Process. “Desenvolvemos na GranBio uma levedura, baseada em cepas brasileiras utilizadas na primeira geração, que já foi certificada e será usada na indústria no segundo semestre”, diz ele. A GranBio investiu US$ 265 milhões na usina e o BNDES, R$ 300 milhões.
O panorama do artigo da Scientometrics é real, afirma Gonçalo, mas ele o interpreta de modo otimista. Segundo ele, a desvantagem brasileira em redes internacionais não é primazia da pesquisa em bioenergia, mas uma fragilidade da ciência do país. “Estar conectado a redes é importante, mas isso só avança quando há perspectiva de financiamentos cooperativos. Hoje, com o petróleo barato, o investimento em energias renováveis ficou mais escasso. Enxergo para a GranBio uma janela de oportunidade para liderar o setor. Apostamos no etanol de segunda geração num momento em que outros interessados estão com menor apetite para o risco.” A usina da GranBio está em fase de comissionamento, com a meta de alcançar capacidade plena até o final do ano. O objetivo é gerar 80 milhões de litros de etanol por ano.
Redes de colaboração, na definição dos autores do artigo, conectam os sistemas de inovação dos países e envolvem cientistas e empresas tanto na geração de conhecimento quanto na exploração comercial de tecnologias. O Brasil, à parte a dificuldade em participar de redes de pesquisa, também sofre para envolver o setor empresarial. A análise é de José Maria Ferreira Jardim da Silveira, professor do Instituto de Economia da Unicamp. Ele é o pesquisador responsável pelo Projeto Temático, no âmbito do Programa Bioen, que resultou no artigo, com a participação da professora Ester Dal Poz, da Unicamp. Ambos são coautores do paper. O pesquisador vê dificuldade na articulação entre universidades e empresas. “No campo da ciência, o país é muito bom. Quando se olha para o desenvolvimento e a comercialização de tecnologia, estamos defasados”, afirma José Maria.
Experiências distintas
Antonio Bonomi, coordenador de Avaliação Tecnológica do CTBE, em Campinas, alerta que a situação do Brasil é diferente da dos outros países e que comparar experiências tão distintas pode ser impróprio. “Nosso etanol de primeira geração é um caso de sucesso. A segunda geração, apesar das vantagens, não tem para nós o caráter estratégico que tem para os outros países. Já para a Europa e a própria China, é a única alternativa para uma produção em larga escala”, diz. “As usinas brasileiras queimam o bagaço e a palha de cana para gerar energia, o que reduz os custos de produção, além de ampliar a redução da emissão de gás estufa do etanol brasileiro. Só fará sentido usar esses resíduos para fabricar etanol celulósico quando o custo for ainda menor.” Ele também enfatiza a dificuldade de envolver nas redes os fabricantes de etanol, que se ressentem de uma crise duradoura. “As empresas brasileiras do setor estão em situação difícil e isso não se deve apenas à política que manteve o preço da gasolina congelado por muito tempo. Elas tiveram perda de produtividade associada a fatores climáticos e à introdução da colheita mecanizada”, conta Bonomi. “Enquanto isso, outros países se organizam para patentear e comercializar tecnologias de etanol de segunda geração.”
O estudo da Scientometrics mapeou os pesquisadores mais ativos em produção científica e colaboração. O primeiro da lista é Lee Lynd, da Thayer School of Engineering do Dartmouth College, que mantém laços com a pesquisa brasileira desde 2008. A convite da FAPESP, já participou de diversos workshops e eventos do Bioen (ver Pesquisa FAPESP nº 163).
O economista Guilherme de Oliveira Marques, que está fazendo doutorado na Unicamp sobre o impacto para a indústria da incorporação de ferramentas da biotecnologia, observa que o número de conexões que um país estabelece com uma rede é menos importante do que a qualidade desses contatos. “A participação em redes científicas não necessariamente implica em produção de tecnologia. A tradução do conhecimento científico em capacidade tecnológica está longe de ser trivial”, afirma. Na sua opinião, estar conectado a nós mais centrais pode criar canais para fluxo de conhecimento científico e tecnológico. “Nesse sentido, é preciso avaliar a evolução da inserção brasileira ao longo do tempo. A absorção, incorporação e adaptação de conhecimento gerado lá fora pode ser um passo importante na construção de capacidades internas, que permitam a alavancagem do Brasil a posições de maior destaque no futuro.”
Projeto
Desenho organizacional do programa Bioen: propriedade intelectual, mecanismos de incentivo e avaliação e impactos (nº 2008/58041-6); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Programa Bioen – Projeto Temático; Pesquisador responsável José Maria Ferreira Jardim da Silveira (Unicamp); Investimento R$ 316.200,13 (CNPq/FAPESP).