Uma medida inédita no país anunciada pelo governo do estado de São Paulo pretende aproximar ciência e gestão pública. Até o início de 2016, cada secretaria estadual deverá contar com um cientista-chefe, cuja função principal será apontar as melhores soluções baseadas no conhecimento científico para enfrentar desafios da respectiva pasta. O anúncio foi feito por Márcio França, vice-governador e secretário estadual de Desenvolvimento Econômico, Ciência, Tecnologia e Inovação, na abertura do Fórum Nacional das Fundações Estaduais de Amparo à Pesquisa (Confap), realizado em 27 e 28 de agosto, na capital paulista. A iniciativa é inspirada no modelo de aconselhamento científico praticado em diferentes níveis de governo em países como Estados Unidos, Reino Unido e Israel.
A iniciativa começou a amadurecer em uma reunião do Conselho Superior da FAPESP, no dia 18 de março, da qual o vice-governador participou como convidado. Na ocasião, França mencionou a dificuldade de identificar pesquisadores com ideias para auxiliar a gestão pública. A sugestão de criar a função de cientista-chefe partiu de Carlos Henrique de Brito Cruz, diretor científico da Fundação. “O professor Brito citou a experiência de países europeus, entre eles o Reino Unido, que criaram o cargo de cientista-chefe em suas estruturas de governo para auxiliar ministros, primeiros-ministros ou presidentes a tomar decisões”, relata Fernando Costa, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e membro do Conselho Superior da FAPESP, um dos presentes à reunião.
No encontro, Brito Cruz explicou ao vice-governador que cerca de 55% dos recursos da FAPESP são investidos em pesquisas voltadas para aplicações, e Eduardo Moacyr Krieger, vice-presidente da instituição, acrescentou que quase 30% dos investimentos da Fundação são direcionados para a área da saúde e podem beneficiar diretamente ações da Secretaria da Saúde. “Outros campos, como agricultura, educação e segurança pública, também deveriam aproveitar mais a contribuição de pesquisadores”, afirma Krieger. Márcio França gostou da sugestão. “Pensei: por que não aprimorar o diálogo com a comunidade científica por meio de uma fundação como a FAPESP?”, recorda-se o vice-governador, que levou a ideia ao governador Geraldo Alckmin e recebeu sinal verde para implementá-la.
“Essa medida não significa que o governo de São Paulo não vem ouvindo a comunidade científica”, observa Marilza Vieira Cunha Rudge, vice-reitora da Universidade Estadual Paulista (Unesp), também membro do Conselho Superior da FAPESP. Segundo ela, o objetivo é fazer com que os conhecimentos gerados em universidades e instituições de pesquisa do estado sejam absorvidos rapidamente pela administração pública. Uma minuta do decreto está sendo redigida com assessoria da Fundação. Um dos objetivos é que os cientistas-chefes ampliem a aplicação de resultados de pesquisas, entre as quais as apoiadas pela FAPESP, sugerindo articulações com projetos em andamento e propondo novos projetos.
O governo analisa agora os detalhes da iniciativa. O primeiro passo será selecionar os cientistas-chefes que atuarão nas secretarias. Segundo França, o mais provável é que se convidem professores vinculados às três universidades estaduais paulistas – a de São Paulo (USP), a Unicamp e a Unesp – que poderiam ou não se licenciar. Também se discute qual seria o prazo mais adequado para o seu mandato. Para França, uma coisa é certa: os cientistas-chefes terão muito trabalho. “Os problemas e os desafios surgem aos montes na administração pública. Todos os dias e nas mais diversas áreas”, observa o vice-governador.
A bússola que orienta os caminhos futuros é a dos exemplos internacionais. Em setembro de 2014, o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, ofereceu um prêmio de US$ 20 milhões para o grupo de pesquisa que conseguir desenvolver o melhor teste de diagnóstico capaz de reconhecer rapidamente infecções causadas por bactérias resistentes a antibióticos. Segundo informações do Centro para Controle e Prevenção de Doenças (CDC), essas infecções são responsáveis pela morte anual de 23 mil norte-americanos. A ação foi motivada por uma avaliação encomendada pela Casa Branca ao Conselho de Ciência e Tecnologia (PCAST), formado por cerca de 20 especialistas, entre ganhadores de Prêmio Nobel e representantes do setor industrial. O grupo é comandado por John Holdren, professor da Universidade Harvard e conselheiro científico de Obama.
Os Estados Unidos têm tradição em aconselhamento científico. Em 1933, o presidente Franklin Roosevelt criou um comitê consultivo formado por cientistas, engenheiros e profissionais da saúde para assessorá-lo. Em 1957, o país foi o primeiro a nomear um cientista-chefe para trabalhar na Casa Branca. Logo departamentos e autarquias passaram a contar com a consultoria de especialistas. Em 1998, a então secretária de Estado, Madeleine Albright, encomendou um relatório para as Academias Nacionais de Ciências dos Estados Unidos sobre o suporte que a ciência poderia dar em assuntos relativos à política externa. A recomendação foi que ela escolhesse um assessor científico. “Minha tarefa é ajudar o governo a aproveitar os recursos da ciência e da tecnologia para embasar a política externa”, disse à Pesquisa FAPESP Vaughan Turekian, assessor científico de John Kerry, o atual secretário de Estado. Ex-diretor internacional da Associação Americana para o Avanço da Ciência (AAAS), Turekian conta que foi submetido a um rigoroso processo de análise de suas credenciais científicas. “O assessor é nomeado por um período determinado. Isso é intencional. Convém lembrar que o cargo não é uma indicação política”, esclarece.
Outra referência é o Reino Unido, que criou o cargo em 1964. A função de cientista-chefe é desempenhada hoje pelo imunologista Mark Walport, ex-diretor do Wellcome Trust, fundação que financia pesquisa biomédica. Desde 2013, Walport assessora o premiê David Cameron. Um dos primeiros temas tratados por Walport no governo foi o da experimentação animal. Em 2014, após estatísticas mostrarem que o número de animais utilizados em testes pré-clínicos aumentou nos últimos anos no Reino Unido, o governo anunciou medidas para reduzir ou substituir seu uso. Walport atuou como ponte entre o governo e a comunidade científica. Reconheceu a necessidade de mudanças, mas salientou que a abolição de animais em estudos científicos ainda é inviável.
Walport também preside o Conselho de Ciência e Tecnologia (CST), ligado ao Departamento de Negócios, Inovação e Capacitação do Reino Unido. O órgão dispõe de uma divisão de especialistas que forma o Grupo de Aconselhamento Científico para Emergências (Sage). A equipe foi acionada em 2010, quando cinzas de um vulcão na Islândia afetaram o espaço aéreo do Reino Unido, e em 2011, após o incidente nuclear de Fukushima, no Japão.
O Reino Unido conta com cientistas-chefes em departamentos e ministérios. “Há uma rede de conselheiros científicos dentro do governo. Isso aproximou ainda mais os diferentes ministérios. O professor Walport organiza uma reunião semanal com os conselheiros, que discutem juntos as prioridades de cada área”, disse à Pesquisa FAPESP Robin Grimes, conselheiro-chefe para assuntos científicos do Ministério das Relações Exteriores do Reino Unido. “Acredito que São Paulo conseguirá se articular melhor com a ciência ao adotar essa medida, além de obter acesso a conceituadas redes de pesquisadores no Brasil e no mundo”, afirmou Grimes.
Para James Wilsdon, especialista em política científica da Universidade de Sussex, Inglaterra, esses exemplos ajudaram outros países a criar modelos de aconselhamento científico adaptados a suas realidades. “Há uma grande variedade de temas que demandam o olhar da ciência, como mudanças climáticas, pandemias, segurança alimentar e pobreza”, explica Wilsdon em um relatório apresentado na conferência da Rede Internacional para Aconselhamento Científico a Governos (INGSA), realizada em agosto de 2014 em Auckland, na Nova Zelândia. A entidade reúne tomadores de decisão e pesquisadores com o objetivo de compartilhar experiências e discutir a utilização de informações científicas em governos. O documento apresenta uma avaliação dos modelos de aconselhamento adotados em 20 países. Além dos exemplos clássicos, são apresentados casos de países que criaram recentemente o cargo, como a Nova Zelândia, cujo primeiro cientista-chefe, Peter Gluckman, foi nomeado em 2009.
O estudo mostra que alguns países optaram por formas de aconselhamento não atreladas à figura de um cientista-chefe. No Japão, o Conselho de Ciência, Tecnologia e Inovação (CSTI) é um dos quatro conselhos que auxiliam o gabinete do primeiro-ministro. Ele é formado pelo primeiro-ministro, seis ministros de Estado e representantes da comunidade científica e do setor industrial. Já países como China, Alemanha, Holanda e África do Sul aproveitam a expertise das entidades representativas da comunidade científica. A Sociedade Alemã de Pesquisas Científicas (DFG), agência não governamental de apoio à pesquisa, é consultada pelo governo e ajuda a elaborar políticas públicas. “Fazemos declarações em comissões do
Senado e temos interação direta com o governo”, diz Dietrich Halm, diretor-presidente da DFG para a América-Latina. Segundo Wilsdon, uma das vantagens desse modelo é que os pesquisadores gozam de independência em relação ao governo.
Na região da América-Latina e Caribe, o relatório do fórum de aconselhamento científico cita os exemplos de Cuba e El Salvador. No modelo cubano, há um escritório de aconselhamento científico vinculado ao conselho de Estado, formado por 31 membros. Embora o Brasil nunca tenha contado com a figura do cientista-chefe, a administração pública no país criou mecanismos de articulação com pesquisadores. “Informalmente, o governo federal é aconselhado pela comunidade científica em vários temas”, disse Aldo Rebelo, então ministro da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI). “No meu caso, mantive contato com a Academia Brasileira de Ciências (ABC), com a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e com sociedades científicas.” Segundo o vice-presidente da FAPESP, Eduardo Moacyr Krieger, que também foi presidente da ABC, a atuação do cientista-chefe deve complementar o trabalho que as academias de ciências desenvolvem. “As recomendações dadas pelas academias aos governos estão no plano macro. Já o cientista-chefe está no plano da implementação e do detalhamento do que deve ser feito no cotidiano da administração pública”, diz ele.
No estado de São Paulo a assessoria científica ao governo já era praticada em situações específicas, mesmo sem a presença de cientistas-chefes. É o caso da interlocução entre especialistas ligados ao Programa Biota-FAPESP e a Secretaria Estadual do Meio Ambiente. Desde o lançamento do programa em 1999, 23 resoluções e decretos estaduais mencionam resultados do Biota como referência para a tomada de decisões. Há um canal de diálogo com gestores das unidades de conservação onde são desenvolvidos projetos. “Os pesquisadores costumam ser membros de conselhos consultivos de parques estaduais e outras áreas protegidas”, observa Carlos Joly, professor da Unicamp e coordenador do programa. Os especialistas vinculados ao Biota também trabalham em parceria com instituições ligadas à secretaria, como o Instituto de Botânica, o Instituto Florestal e a Fundação Florestal. E o próprio gabinete da secretária do Meio Ambiente, Patricia Faga Iglecias Lemos, acompanha a produção científica do programa.
Outra experiência é a do Conselho Estadual de Ciência, Tecnologia e Inovação em Saúde, criado em 2014 para assessorar a Secretaria da Saúde na formulação e condução de políticas. O órgão é composto por representantes de universidades públicas instaladas em São Paulo, institutos, centros de pesquisa, hospitais e entidades ligadas ao setor industrial. “Atualmente, o conselho discute a proposta de criação de uma política estadual de ciência, tecnologia e inovação em saúde”, explica Sergio Swain Muller, presidente do conselho. “Já realizamos oficinas, ouvimos a contribuição das universidades e estamos preparando um documento com diagnósticos e ações para a consolidação desse plano.” Cabe também ao conselho auxiliar na definição de prioridades para o próximo edital do Programa de Pesquisa para o Sistema Único de Saúde (PPSUS), conduzido pela FAPESP em parceria com a Secretaria da Saúde, o Ministério da Saúde e o CNPq. “Uma das prioridades é apoiar pesquisas sobre novos mecanismos de gestão pública da saúde”, diz Muller. Já no âmbito da Secretaria Estadual de Agricultura e Abastecimento foi criada em 2002 a Agência Paulista de Tecnologia dos Agronegócios (Apta), que atua na coordenação de pesquisas de interesse da pasta. Sua estrutura compreende os institutos Agronômico (IAC), Biológico, de Economia Agrícola, de Pesca, de Tecnologia de Alimentos e o de Zootecnia, além de 15 polos regionais de pesquisa.
“Prospectamos estudos capazes de resolver problemas enfrentados por agricultores e os encaminhamos para a secretaria”, diz Orlando Melo de Castro, coordenador da Apta. Um dos desafios da secretaria cuja solução vem sendo debatida entre os institutos abrigados pela agência é tornar a cana-de-açúcar mais resistente à seca. “O IAC foi procurado, porque já trabalha nesse assunto, inclusive em parceria com usinas localizadas em Goiás, onde há um período de seca prolongado. A ideia é aproveitar essas pesquisas em programas da secretaria”, explica Castro.
Para o sociólogo Simon Schwartzman, estudioso da comunidade científica brasileira e pesquisador do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade, o país não tem tradição no uso da ciência por gestores públicos. “Claro, há exceções”, pondera. “O Ministério da Saúde conta com um centro de pesquisas próprio, o Instituto Oswaldo Cruz, assim como acontece com o Ministério da Agricultura, que tem a ajuda da Embrapa.” Carlos Joly recorda-se que a comunidade científica costumava impor barreiras na hora de se sentar à mesa com políticos. “Colaborei como assessor de meio ambiente na elaboração da Constituição Federal de 1988. Na época, fui criticado por colegas, que pensavam que cientista não deveria se envolver com assuntos da política”, conta. Em 1995, Joly foi convidado pelo então secretário de Meio Ambiente do estado de São Paulo, Fábio Feldmann, a trabalhar como seu assessor. “Naquele momento isso já não foi visto como algo incomum. Aos poucos os pesquisadores se deram conta da importância de trabalhar em colaboração com gestores públicos”, afirma Joly.
O climatologista Carlos Nobre, presidente da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), guarda na memória histórias da relação tensa entre políticos e cientistas. Em 1998, Nobre e sua equipe do Centro de Previsão de Tempo e Estudos Climáticos (CPTEC) encaminharam ao governo federal e ao Congresso um parecer prevendo uma seca de grande intensidade no Nordeste nos meses seguintes, em decorrência do El Niño. “Ninguém nos ouviu”, lembra Nobre. “Acho que não acreditavam, na época, que fosse possível fazer previsão de secas de qualidade com base em modelos matemáticos.”
O vice-governador Márcio França reconhece que há pontos de tensão quando políticos e cientistas se encontram. “A questão é que nem sempre o consenso científico é financeira e politicamente viável naquele momento”, diz ele. Para Carlos Nobre, que já ocupou cargos de gestão de política científica no MCTI e integra o corpo de especialistas do fórum global de aconselhamento científico, ainda assim a situação é melhor hoje. “Ambos os lados perceberam que a solução de problemas como secas e desastres naturais dependem de ações conjuntas”, afirma.
Autora do livro The fifth branch: science advisers as policymakers e de artigos que abordam a relação entre ciência, democracia e política, a norte-americana Sheila Jasanoff, da Universidade Harvard, adverte que o aconselhamento científico a governos exige muitos julgamentos. “Requer a tomada de decisões sobre, por exemplo, se é melhor correr um risco ou se precaver. É preciso saber como pesar as diversas evidências”, explica. Segundo ela, o aconselhamento pode de fato auxiliar os gestores. “Mas os órgãos científicos consultivos precisam operar de forma aberta e transparente. Isso é exigido por lei nos Estados Unidos”, explica. Em 2010, o governo britânico divulgou um documento no qual recomenda que os níveis de incerteza presentes em torno de questões científicas sejam explicitamente identificados nos pareceres enviados a gestores públicos, comunicados em linguagem simples e direta.
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