A impunidade em casos identificados de corrupção no Brasil pode ser inferior a 5%. Esse é o percentual de processos que, entre 2010 e 2016, em varas pertencentes aos estados de Alagoas, São Paulo e Rio de Janeiro e ao Distrito Federal, deixaram de ser julgados em razão da lentidão da Justiça. “A prescrição é vista pelo senso comum e retratada na mídia como um mecanismo pelo qual se evita que acusados de crimes sejam levados a julgamento, beneficiando os infratores ao estender prazos”, observa o cientista político José Álvaro Moisés, professor do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo (USP) e coordenador de estudo desenvolvido pelo Núcleo de Políticas Públicas da instituição (NUPPs) em parceria com a Associação Brasileira de Jurimetria (ABJ). “Partimos desse ponto de vista para verificar se a impunidade realmente ocorre e qual sua dimensão”, explica.
A pesquisa “Justiça criminal, impunidade e prescrição” reuniu, além do coordenador, seis pesquisadores e quatro estagiários, com o objetivo de buscar indícios de impunidade no que se convencionou denominar Sistema de Integridade brasileiro. O SI, como se tornou conhecido, é composto por instituições judiciárias e policiais destinadas ao cumprimento da lei nos casos de crimes de corrupção e lavagem de dinheiro. “O termo está relacionado, na ciência política, ao estudo da qualidade da democracia e à perspectiva de preservação da integridade da administração pública”, informa Moisés, que aponta o sistema como responsável pelo desencadeamento da operação Lava Jato em 2008. Para compreender como as instituições brasileiras vêm enfrentando a impunidade desde esse momento, os esforços dos pesquisadores se dividiram em dois eixos principais: o mapeamento do fluxo e da duração de inquéritos policiais e processos penais, envolvendo crimes desse tipo e a identificação do perfil dos atores que operam no SI.
Sistema de Integridade (SI)
Composto por instituições judiciárias e policiais destinadas ao cumprimento da lei nos casos de crimes de corrupção e lavagem de dinheiro
Crimes & processos
• Corrupção ativa e passiva
• Tráfico de influência
• Lavagem de dinheiro
Processos & desfechos
• Ativo, quando o caso segue em andamento
• Denúncia arquivada
• Condenação
• Arquivado sem resolução do mérito
• Resultados mistos (condenação e absolvição)
• Prescrição
Com auxílio da tecnologia de informação, em tribunais de primeira instância foram coletados dados de mais de 4 mil processos, envolvendo crimes como corrupção ativa e passiva, tráfico de influência, lavagem de dinheiro, entre outros. Todos os processos foram classificados segundo um dos seis possíveis desfechos: ativo, quando o caso segue em andamento, denúncia arquivada, condenação, arquivado sem resolução do mérito, resultados mistos (condenação e absolvição) e prescrição. Nos tribunais de Justiça de São Paulo e do Rio de Janeiro, de onde saíram as maiores quantidades de casos da amostra – 1.625 e 1.010, respectivamente –, 3% dos processos prescreveram. O índice mais elevado de prescrição, ou seja, 10%, ocorreu no Tribunal de Justiça do Distrito Federal: em três de 31 ações o Estado perdeu a oportunidade de julgar a responsabilidade de investigados por crimes dessa ordem em razão da longa duração dos processos.
“A pesquisa é um marco no debate sobre a impunidade no Brasil”, comenta o cientista político Rogério Arantes, também do Departamento de Ciência Política e pesquisador do Instituto de Estudos Avançados (IEA-USP). “Seguramente a opinião pública brasileira, que não acredita no funcionamento da Justiça porque os crimes prescrevem, esperaria um percentual muito mais alto do que o encontrado pelo estudo”, avalia. Para a socióloga Ludmila Ribeiro, professora do Departamento de Sociologia e pesquisadora do Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública (Crisp) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), ainda que o índice esteja abaixo do que se poderia esperar, não se trata de uma boa notícia. “A prescrição é algo que não deveria acontecer. É o Estado mostrando toda a sua ineficiência: os agentes abrem um processo, mas perdem a oportunidade de punir o responsável por determinado crime porque demoram tempo demais”, afirma.
Analisando a proporção de cada etapa de tramitação de um processo judicial – que ao todo leva, em média, 6,5 anos –, a pesquisa concluiu que o maior tempo é dedicado à instrução do processo, isto é, à reunião de provas por parte do juiz. Na interpretação de Ribeiro, que assim como Arantes não integra a equipe do projeto, o dado mostra que a prescrição não é causada pela interposição de recursos por parte da defesa – que desse modo produziria intencionalmente demora no processo –, e, sim, pela ineficiência sistêmica do Poder Judiciário.
Augusto Zambonato
Considerada alta, a taxa de arquivamento chamou a atenção dos pesquisadores. No universo analisado, um em cada cinco processos foi encerrado sem que houvesse decisão judicial. “A rigor, não se pode dizer que o arquivamento é impunidade, pois o Estado de fato agiu naquele caso: após o inquérito policial, um integrante do Ministério Público ou um juiz decidiu pelo arquivamento. A taxa é enorme, mas talvez esteja relacionada a questões meramente técnicas, não associadas à impunidade”, avalia Fernando Corrêa, cientista de dados e diretor-técnico da ABJ. Na opinião de Arantes, entender por que os processos são arquivados é uma boa questão para investigações futuras.
A pesquisa também analisou mais de 3 mil decisões judiciais em tribunais de segunda instância, nos mesmos estados de Alagoas, Rio de Janeiro e São Paulo e no Distrito Federal, com o objetivo de compreender se o foro privilegiado, ao permitir que processos envolvendo autoridades públicas tramitem em instância superior, implicaria gargalos. A conclusão foi de que cerca de 45% dos pedidos de foro privilegiado não são admitidos, o que, segundo os pesquisadores, seria um indício de ineficiência do sistema, já que as razões para a negação do pedido estão previstas na legislação – quando ocorre a perda de mandato, por exemplo, fazendo com que o processo passe novamente à primeira instância, ou quando compete à Justiça Eleitoral conduzi-lo. “Se as regras fossem outras, talvez o sistema fosse mais eficiente. Isto é, poderia haver menor número de interrupções da tramitação dos processos, o que por sua vez poderia acarretar uma investigação mais rápida”, afirma Corrêa.
A prescrição é algo que não deveria acontecer. É o Estado mostrando toda a sua ineficiência, diz Ludmila Ribeiro
No que diz respeito à Polícia Federal, os números chamaram a atenção dos pesquisadores. Em um tempo médio de 936 dias de investigação, cerca de 2,5 anos, foram solucionados 95% de 3.885 inquéritos instaurados e concluídos entre 2003 e 2018, com identificação de autoria em 38% deles e conclusão de que em 57% dos casos, apesar da denúncia, não houve crime ou o indivíduo apontado como responsável não o era de fato. Ainda que o dado global sugira alta eficiência, o índice é visto com ressalvas. Para a professora da UFMG, seria preciso investigar o que de fato ocorre nesses casos. “Como o inquérito policial é sigiloso – e não público como a maioria dos processos judiciais –, não temos como saber por que há tantas suspeitas que não resultam em crimes ou em indicação de acusado”, observa Ribeiro.
Atores em debate
O segundo eixo do estudo, voltado à identificação do perfil dos atores que trabalham no combate à corrupção, foi desenvolvido com a aplicação do método Q, uma “ferramenta de captação de subjetividades”, na definição do coordenador da pesquisa. A metodologia consiste em um formulário eletrônico com afirmações sobre a área de atividade pesquisada, neste caso a atuação da Justiça criminal e a corrupção. Ao preenchê-lo, cada um dos respondentes classificou as informações de duas maneiras: organizando-as conforme a relevância que lhes atribui e apontando seu grau de identificação, em uma escala que vai de -5 (discordo completamente) a +5 (concordo completamente).
Augusto ZambonatoAs afirmações eram tanto de caráter geral – “o salário mínimo no Brasil é justo”, “a lei é igual para todos”, “a pobreza e a desigualdade estão na raiz da corrupção” – quanto específico, voltadas a mecanismos jurídicos – “a prisão em segunda instância combate a corrupção”, “a prisão cautelar é injusta”, “a condução coercitiva fere direitos”. O objetivo era duplo: apreender a visão do respondente sobre sua atividade e o modo como insere sua atividade na sociedade. De acordo com o cientista político José Veríssimo, pesquisador do NUPPs, “ao convidar o participante a montar um mapa bastante complexo de circunstâncias e de opiniões acerca de sua atividade laboral, o método privilegia o modo como ele entende sua atividade cotidiana”. O conjunto de assertivas foi elaborado coletivamente pela equipe que, como hipótese, estabeleceu dois tipos de atores: os garantistas-contratualistas e os garantistas-igualitaristas, definidos, respectivamente, como aqueles que privilegiam a visão do indivíduo perante a lei e aqueles que “reconhecem que desigualdades estruturais desafiam a Justiça no sentido de que a lei seja ‘igual para todos’”.
Embora tenha sido enviado a 1.842 destinatários, entre magistrados, promotores, procuradores e delegados da Polícia Federal, o questionário foi respondido por apenas 40 pessoas. Os dados passaram, então, por dois momentos de análise. Em primeiro lugar, os tipos ideais, desenhados na etapa de elaboração do questionário, foram ajustados, permitindo à equipe estabelecer algumas correlações: entre os 27 garantistas-contratualistas se acredita que “a prisão em segunda instância combate a corrupção, que a lentidão processual gera impunidade e que a multiplicidade de recursos causa a prescrição”, segundo o relatório da pesquisa. Já os 13 garantistas-igualitaristas não apostam em fluxos e procedimentos mais rápidos como resposta para efetividade e garantia da Justiça e “demonstram-se contrários, por exemplo, à condução coercitiva, menos críticos à política como fator de controle do Judiciário e extremamente propensos a uma avaliação estrutural das circunstâncias que envolvem situações de crime”.
No segundo momento, os dados obtidos a partir dos questionários foram combinados à primeira parte da pesquisa, isto é, os pesquisadores observaram o andamento de processos sob responsabilidade dos juízes que responderam ao questionário. Resultado: entre igualitaristas houve 8% de prescrição, enquanto essa taxa ficou em 3% entre contratualistas; estes, porém, arquivaram mais processos (19% contra 8%) e condenaram menos (40% diante de 46%). Além de o universo considerado ser pequeno, trata-se de um método não amostral, indutivo, que relaciona crenças e comportamentos. Por isso, os pesquisadores alertam que as conclusões não podem ser estendidas para a totalidade da Justiça brasileira. “O método indica que a maneira como o grupo expressa questões envolvidas na atuação profissional é uma tendência no interior dessa comunidade analisada”, explica Moisés.
Para Veríssimo, os resultados encontrados refletem o debate jurídico atual, como a prisão após condenação criminal em segunda instância, em discussão no Supremo Tribunal Federal (STF). “A questão que resume o teor do questionário poderia ser: que tipo de garantias individuais e a que custos individuais se podem aplicar aos fluxos da Justiça? Esse é o debate que o Judiciário está fazendo hoje”, explica o cientista político do NUPPs. Também para Arantes os perfis encontrados coincidem com as principais discussões a respeito de como se deve dar o combate à corrupção: “Um grupo de atores acredita que a Justiça deva funcionar de acordo com as regras processuais e garantir a todos os envolvidos o pleno direito de atuação que essas regras conferem. Para outro grupo, a Justiça deve aportar algo novo, indo além das regras em busca de um objetivo final”.
Desenvolvida em aproximadamente um ano, a partir do início de 2018, a pesquisa inova ao realizar um levantamento inédito de informações processuais, obtidas com auxílio de ferramentas computacionais descritas em detalhes no relatório que está disponível no site do CNJ, como parte da série Justiça Pesquisa. “Entre os trabalhos desenvolvidos pela ABJ, este é um estudo atípico. Aqui há várias camadas de interpretação e muito material para discussão”, completa Corrêa. Além do relatório final, os dados da pesquisa também podem ser consultados na página da ABJ, na internet.
Estudo
MOISÉS, J. A. (coord.). Justiça Criminal, impunidade e prescrição. Conselho Nacional de Justiça. On-line. 2019.