Nos primeiros meses de 2018, diante dos novos casos graves de febre amarela, as equipes do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC-FM-USP) reconheceram que sabiam muito pouco sobre tratar essa doença, rara na capital paulista e com alto índice de letalidade, capaz de levar à morte em dois dias. Com rapidez, à medida que chegavam mais pacientes, começaram a testar, modificar e implantar estratégias de tratamento. Como resultado, no ano passado, a mortalidade dos pacientes com febre amarela em estado grave foi de 67%, abaixo dos 80% previstos.
A partir de janeiro deste ano, uma versão aprimorada dessas estratégias, que incluem a adoção mais frequente da troca do plasma (a porção líquida do sangue), passou a ser aplicada e ajudou a reduzir a mortalidade. Das 39 pessoas com febre amarela que chegaram ao HC até maio deste ano, apenas duas morreram. Os resultados são promissores, mas o infectologista Esper Kallas, da FM-USP, observa que é preciso examinar a redução da mortalidade com cautela. “A melhoria no tratamento ajudou, mas ainda não sabemos se os casos deste ano foram mais brandos que os do ano passado”, diz.
A epidemia recente de febre amarela silvestre foi a mais intensa registrada no Brasil em décadas. Essa forma da doença é transmitida pelos insetos dos gêneros Haemagogus e Sabethes, diferentemen-te da versão urbana, propagada pelo Aedes aegypti, embora nos dois casos o vírus seja o mesmo. O Ministério da Saúde registrou 1.376 casos de febre amarela, com 483 mortes, de julho de 2017 a junho de 2018 – e pela primeira vez o vírus chegou a regiões metropolitanas de Belo Horizonte, Rio de Janeiro e São Paulo. Nos últimos meses, o vírus deslocou-se para o Sul: o Boletim Epidemiológico de 13 de junho da Secretaria de Estado da Saúde do Paraná registrou, de julho de 2018 a junho deste ano, 17 pessoas com a doença e uma morte, de um morador de Morretes, da região litorânea. O mais recente caso registrado de febre amarela foi de um morador de Quatro Barras, na Região Metropolitana de Curitiba.
A febre amarela causa inicialmente febre, dores musculares, dor de cabeça, perda de apetite, prostração, náusea e vômito, que aparecem à medida que o vírus causador da doença se instala no organismo. Os sintomas iniciais desaparecem geralmente em quatro dias e as pessoas infectadas nem sabem que se contaminaram, já que os primeiros sinais podem ser confundidos com os de outras doenças, como a dengue, ou um mal-estar passageiro. De 10% a 15% dos casos evoluem para a forma grave e podem ser fatais: a pele e os olhos ficam amarelados e a urina escura, a febre reaparece, as dores abdominais e os vômitos se intensificam, começam as diarreias e as hemorragias. A vacina, produzida a partir de vírus atenuado, é a forma mais eficaz de prevenção contra a doença.
A estratégia de tratamento adotada no HC da USP consiste principalmente em troca de plasma, para reduzir a carga viral, repor os fatores de coagulação e, desse modo, evitar as hemorragias intensas que marcam a fase final da doença. Em 2019, as equipes da unidade de terapia intensiva (UTI) de moléstias infecciosas e da hematologia do hospital aumentaram a periodicidade da troca de plasma, aprimorada a partir de experiências de médicos que combatiam a febre amarela no Rio de Janeiro. Em vez de usar esse procedimento apenas uma vez por dia, como no ano passado, com a aplicação de cerca de 30 bolsas de plasma, as equipes do HC começaram a fazer duas vezes por dia, com metade do volume por vez.
“Fazer esse procedimento com frequência maior evitou que os pacientes tivessem hemorragias entre uma troca e outra, como ocorria antes”, observou a infectologista Yeh-Li Ho, coordenadora da UTI de moléstias infecciosas do HC da USP e principal autora de um artigo científico publicado em maio na revista Journal of Travel Medicine detalhando os resultados obtidos com a nova estratégia. Além disso, segundo ela, foi possível atender mais pacientes, já que a duração do procedimento era menor.
Outra mudança: em vez de parar a troca de plasma após três dias, as equipes médicas passaram a cessar o procedimento gradativamente, “até o fígado restaurar suas funções”, comenta a médica. Como resultado, diz Ho, “conseguimos cortar a evolução da doença e reduzir a letalidade”. Um dos sinais de que essa estratégia havia funcionado foi a normalização dos níveis da enzima lipase, evitando o agravamento da pancreatite, inflamação do pâncreas, uma das consequências da febre amarela. “Neste ano não tivemos nenhum caso fatal de pancreatite grave em pacientes com febre amarela.”
Essa abordagem se mostrou eficiente no Instituto de Infectologia Emílio Ribas (IIER), vizinho ao HC. No início deste ano, com sua equipe, o médico intensivista Jaques Sztajnbok empregou a troca de plasma para tratar um homem de 43 anos, morador do Vale do Ribeira. As medidas anteriores, que incluíram hemodiálise e transfusão de células vermelhas do sangue, não conseguiram deter o sangramento contínuo e disfunção múltipla de órgãos. A troca de plasma uma vez por dia funcionou: após o terceiro dia, o sangramento cessou e o paciente se recuperou, como detalhado em um artigo de julho na American Journal of Tropical Medicine and Hygiene. Nos dois hospitais, a troca de plasma se mostrou uma técnica de custos menores, mais simples e com menos efeitos colaterais que o transplante de fígado, realizado em sete pessoas no HC de janeiro a junho de 2018, com uma taxa de sucesso de 43%: quatro morreram por causa de hemorragias intensas e três sobreviveram.
No HC, juntamente com a troca de plasma, foi empregada também a hemodiálise – filtragem do sangue – intermitente ou contínua, para compensar os danos do vírus no rim. As equipes médicas concluíram que esse procedimento deve ser iniciado quando se nota um excesso de acidez no sangue, a chamada acidose metabólica, detectada pelos níveis abaixo do normal de bicarbonato no sangue. Pelo protocolo tradicional, a hemodiálise era empregada somente quando era verificado um nível de ureia acima do normal.
Como medida complementar, adotou-se o uso de três tipos de medicamentos: anticonvulsivantes para evitar o agravamento dos eventuais danos causados pelo vírus no cérebro, indicados quando a amônia, eliminada pelo fígado atingido, começa a subir para níveis acima do normal; antibióticos, para combater outras infecções; e redutores da acidez gástrica. “Todos os pacientes que passaram por esses procedimentos se recuperaram bem”, observa Ho. Segundo ela, por se tratar de uma doença de evolução rápida, a febre amarela distingue-se de outras hepatites virais fulminantes e exige acompanhamento contínuo: “Fazer exames laboratoriais duas vezes por dia é fundamental para planejar o tratamento.”
Ho atribui a redução da mortalidade por febre amarela neste ano também a outra mudança: os moradores do Vale do Ribeira atendidos no hospital regional de Pariquera-Açu, a 220 quilômetros da capital, eram enviados para o HC e começavam a ser tratados quando apresentavam os primeiros sinais da doença – febre, dores no corpo, náusea e icterícia –, sem esperar que os sintomas se agravassem.
Segundo Ho, médicos de São Paulo, do Rio e de Minas Gerais que participaram do atendimento a pacientes com febre amarela discutiram as novas estratégias de tratamento no início deste ano, com base na experiência dos dois hospitais paulistas que receberam o maior número de casos. Em seguida, a pedido da Organização Pan-americana de Saúde (Opas), enviaram ao Ministério da Saúde uma proposta de tratamento que, se aprovada, poderá ser aplicada em todo o país.
Indicadores de risco
“A epidemia foi uma oportunidade única de entender melhor uma doença que conhecíamos apenas por relatos de casos esparsos”, diz a médica epidemiologista Ana Freitas Ribeiro, coordenadora do Serviço de Epidemiologia do IIER e professora da pós-graduação da Universidade Nove de Julho (Uninove). De janeiro a abril de 2018, o IIER recebeu 76 pessoas com o diagnóstico confirmado de febre amarela e o HC, 97. Os pacientes moravam em Mairiporã, Atibaia, Cotia, Nazaré Paulista, Guarulhos, cidades da Baixada Santista, Registro e São Bernardo do Campo.
Ao analisar os casos tratados no IIER, Ribeiro, com sua equipe, verificou que as pessoas com febre amarela poderiam piorar mais facilmente se tivessem outras doenças ou hábitos prejudiciais à saúde. “Muitos eram usuários ou ex-usuários de drogas”, ela observou. Pouco mais da metade (52%) dos pacientes que morreram no IIER em 2018 e 27,5% dos que sobreviveram consumiam álcool ou drogas com frequência. A maioria (80,6%) era homem, com idade média de 42 anos e mais de oito anos de escolaridade (55,9%). “Quanto menor a idade e melhor o estado geral de saúde, maior a chance de sobreviver à febre amarela”, diz Ribeiro. No HC, os pacientes que também tinham diabetes apresentaram uma mortalidade de 80%, como relatado no artigo da Journal of Travel Medicine.
Com base na análise dos pacientes tratados no ano passado e neste, as equipes do HC e do IIER definiram seis indicadores da gravidade da febre amarela: os níveis de uma enzima do fígado, a aspartato aminotransferase, e de outra do pâncreas, a lipase; dos neutrófilos, um tipo de células brancas do sangue; da carga viral; da creatinina, resíduo do metabolismo muscular filtrado pelos rins) e de uma proteína, o fator de coagulação V. A partir da análise desses parâmetros, é possível fazer a triagem dos pacientes com mais precisão, encaminhando os que merecem mais atenção para internação e para as UTIs. Essa abordagem foi detalhada em artigos científicos publicados em maio na Lancet Infectious Diseases, na American Journal of Tropical Medicine and Hygiene e na Memórias do Instituto Oswaldo Cruz.
“Esses preditores de prognóstico, associados a outros, constituem poderosos indicadores para guiar as equipes das UTIs”, comenta o virologista Pedro Vasconcelos, pesquisador do Instituto Evandro Chagas (IEC), de Belém, e professor na Universidade do Estado do Pará, que não participou desses trabalhos. O patologista Juarez Quaresma, professor da Universidade Federal do Pará (UFPA) e pesquisador do IEC, que também não assinou os artigos mais recentes sobre febre amarela, reconhece a importância dos novos indicadores e acrescenta: “No futuro, os protocolos de atendimento a pacientes em estado grave deveriam incluir marcadores inflamatórios, como a interleucina 10 e o TNF-α [fator de necrose tumoral alfa], que podem induzir lesões nos vasos sanguíneos e contribuir para a hemorragia observada nos pacientes graves”.
Os trabalhos mais recentes indicam que os danos do vírus no organismo são mais amplos do que se imaginava. Além dos danos diretos no fígado, baço, linfonodos, medula óssea, cérebro e coração, como já havia sido descrito nos últimos anos, a infecção viral, agora ficou claro, favorece a ação de bactérias e a liberação de toxinas que causam danos aos pulmões, ao intestino e ao pâncreas. “O vírus da febre amarela induz sepse [infecção generalizada]”, afirma o patologista Amaro Nunes Duarte-Neto, médico assistente da USP. Ele coordenou as 78 autópsias de pacientes com febre amarela realizadas no Serviço de Verificação de Óbitos da USP.
As autópsias registraram uma intensa desorganização do sistema de defesas do organismo. Ao se instalar no baço e nos gânglios linfáticos, o vírus causa uma redução das populações de linfócitos, um tipo de célula branca do sangue; na medula óssea, o agente causador da febre amarela retarda a maturação das células de defesa. No fígado, um dos órgãos-alvo, “o vírus manipula o sistema imune e induz produção de citocinas anti-inflamatórias que suprimem as defesas do organismo”, diz Duarte-Neto.
Os exames das quatro pessoas que morreram depois do transplante de fígado indicaram que o vírus migrou de outras partes do corpo e se instalou no órgão implantado, como descrito em um artigo publicado em maio na revista Histopathology. “O fígado novo não resolveu a infecção viral em outros órgãos”, relata.
Segundo ele, a destruição do fígado cessa a filtração de bactérias e toxinas que vêm do intestino pelo sangue. Desse modo, esses agentes agressores caem diretamente na corrente sanguínea e se espalham pelo organismo. A amônia, um dos resíduos do metabolismo bacteriano, que deixa de ser retida pelo fígado, pode atacar os neurônios e outras células do sistema nervoso central.
“A alteração da microcirculação sanguínea leva à lesão pulmonar e pode ser induzida tanto por citocinas quanto por infecções bacterianas secundárias”, comenta Quaresma, com base em estudos feitos por ele na USP e no IEC desde 2003. “Os danos nos pulmões são possivelmente a causa imediata da morte dos pacientes em estado grave.”
Febre amarela atinge profissionais da saúde desde 1685
Logo no início do primeiro surto de febre amarela que se tem notícia no Brasil, o único médico do Recife, cujo nome não foi registrado, morreu acometido pelos efeitos do vírus em seu organismo. Ocorrida na capital pernambucana no final de 1685, a epidemia causou a morte de cerca de 600 pessoas nas duas primeiras semanas. O vírus do Recife veio provavelmente transportado por marinheiros de um barco que partira de São Tomé, na África, com escala em São Domingos, nas Antilhas, onde a doença já tinha se espalhado.
Em 1899, durante um surto que matou 5 mil dos 15 mil moradores de Campinas, morreu João Guilherme da Costa Aguiar, aos 42 anos. Ele foi um dos quatro médicos que permaneceram na cidade para atender os doentes; outros 22 foram embora com os moradores ricos que fugiam da cidade.
O oncologista paulistano Drauzio Varella contraiu febre amarela em 2004, durante uma viagem de pesquisa ao rio Negro, na Amazônia. Três dias depois, um domingo, de volta à cidade de São Paulo, começou a sentir febre, calafrios e dor nas costas. Os colegas médicos o internaram no hospital e os sucessivos exames de sangue indicaram uma hepatite severa e o diagnóstico de febre amarela. Naquele ano, o Ministério da Saúde registrou apenas cinco casos de febre amarela, com três mortes.
“Ele teve coma hepático, estava muito mal e achava que ia morrer”, rememora Kallas, coordenador da equipe de médicos, ao lado do hepatologista Flair Carrilho, professor da FM-USP, que cuidou do colega. Então com 61 anos, Varella teve pneumonia nos dois pulmões, insuficiência renal e queda dos fatores de coagulação, exceto hemorragia.
Os exames de sangue registraram uma lenta recuperação, que demorou meses para se completar. Kallas atribuiu o resultado, primeiramente, à sorte: “Além disso, todos que trataram dele se dedicaram muito e trocavam ideias a todo momento”. Pesaram a favor de Varella seus hábitos de vida saudáveis, que incluíam corridas constantes – no domingo anterior à internação tinha corrido 18 quilômetros e subido pela escada os 14 andares do prédio em que morava. “Se tivesse outras doenças”, diz Kallas, “certamente a recuperação teria sido bem mais difícil”.
Varella reconheceu que foi um erro não ter tomado uma dose de reforço da vacina contra a febre amarela ao viajar para a Amazônia, área de risco de transmissão do vírus. Ele descreveu esse episódio no livro O médico doente (Companhia das Letras, 2007).
Projetos
1. Metagenômica viral de dengue, chikungunya e zika vírus: Acompanhar, explicar e prever a transmissão e distribuição espaço-temporal no Brasil (nº 16/01735-2); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisadora responsável Ester Cerdeira Sabino (USP); Investimento R$ 445.187,99.
2. Diversidade genética e filodinâmica dos arbovírus emergentes e reemergentes (DENV, ZIKV e CHIKV) nas regiões Nordeste e Sudeste do Brasil, 2014-2016 (nº 16/08204-2); Modalidade Bolsa de Doutorado; Pesquisador responsável Paolo Marinho de Andrade Zanotto (USP); Bolsista Marielton dos Passos Cunha; Investimento R$ 148.954,26.
Artigos científicos
KALLAS, E. G. et al. Predictors of mortality in patients with yellow fever: an observational cohort study. Lancet Infectious Diseases. 16 mai. 2019.
RIBEIRO, A. F. et al. Yellow Fever: Factors Associated with Death in a Hospital of Reference in Infectious Diseases, São Paulo, Brazil, 2018. American Journal ou Tropical Medicine and Hygiene. 28 mai. 2019.
DUARTE-NETO, A. N. et al. Yellow Fever and Orthotopic Liver Transplantation: new insights from the autopsy room for an old but reemerging disease. Histopathology. 14 mai. 2019.
CASADIO, L. V. B. et al. Lipase and factor V (but not viral load) are prognostic factors for the evolution of severe yellow fever cases. Memórias do Instituto Oswaldo Cruz. v. 114, e190033. 20 mai. 2019.
HO Y.L. et al. Severe yellow fever in Brazil: clinical characteristics and management. Journal of Travel Medicine. (on-line). 31 mai. 2019.
SZTAJNBOK, J. et al. Severe Yellow Fever and Extreme Hyperferritinemia Managed with Therapeutic Plasma Exchange. The American Journal of Tropical Medicine and Hygiene (on line). 15 jul. 2019.