O médico e virologista Maurício Lacerda Nogueira conhece bem a dengue. Há quase 20 anos ele estuda a evolução do vírus causador dessa doença que, de tempos em tempos, causa epidemias no país e, em cada uma delas, deixa centenas de milhares de pessoas prostradas e com dores pelo corpo por vários dias. Ele próprio já foi infectado algumas vezes e, em pelo menos três ocasiões, desenvolveu a doença. “Me sentia miserável”, conta.
Nascido em Jaboticabal, no interior de São Paulo, Nogueira formou-se em medicina na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), onde fez mestrado e doutorado. No retorno de um estágio de pós-doutorado nos Institutos Nacionais de Saúde (NIH) dos Estados Unidos em 2004, instalou-se em São José do Rio Preto, cidade do interior paulista onde a dengue e outras doenças transmitidas pelo mosquito Aedes aegypti, como a chikungunya, são endêmicas. Sua missão era implantar na Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto (Famerp) um dos laboratórios da Rede de Diversidade Genética de Vírus, financiada pela FAPESP.
Em um estudo que acompanhou parte da população da cidade ao longo de cinco anos, ele e seu grupo investigaram os fatores que levam ao desenvolvimento de quadros graves de dengue e como a imunidade evolui após a infecção. Também analisaram como ter tido dengue previamente influencia o quadro das enfermidades causadas pelos vírus das febres zika e chikungunya.
Mais recentemente, ele coordenou na Famerp um dos centros que avaliou o desempenho da formulação candidata a vacina contra a dengue desenvolvida pelo Instituto Butantan, a Butantan-DV, que apresentou resultados animadores em um estudo publicado no início de fevereiro (ver “Vacina do Butantan contra a dengue reduz em 80% o risco de adoecer”). “Os dados disponíveis até o momento sugerem que a vacina do Butantan é superior às outras”, afirma.
Em uma entrevista concedida por videochamada em 31 de janeiro, Nogueira falou do desempenho das diferentes vacinas disponíveis contra a dengue e chamou a atenção para o risco de a epidemia atual ser a maior já vivida pelo país e para a necessidade de o sistema de saúde se preparar para atender os doentes, uma vez que, com os recursos disponíveis, não é possível frear uma epidemia em curso. A seguir, leia os principais trechos.
Em janeiro, foram registrados 232 mil casos suspeitos de dengue, 2,5 vezes o total de janeiro de 2023. O que se deve esperar para os próximos meses?
A expectativa é que os casos subam de modo significativo até abril. Nos últimos 20 anos, o pico de casos ocorre entre o final de março e meados de maio. Em seguida, eles caem abruptamente com a primeira frente fria. Talvez 2024 se torne o ano com o maior número de casos suspeitos, e provavelmente confirmados, da história do Brasil.
No primeiro mês do ano, houve 15 mortes confirmadas por dengue. Em janeiro de 2023 foram 61. A dengue está menos letal este ano?
É difícil saber. Temos a tendência de olhar os dados como se a epidemia ocorresse de modo homogêneo no país. O comportamento da dengue no Brasil é diferente, por exemplo, daquele observado em Singapura, uma ilha. Lá uma epidemia se manifesta de modo mais homogêneo. No Brasil, vemos fenômenos distintos ocorrendo ao mesmo tempo. Em Belo Horizonte, há uma circulação intensa dos sorotipos 1 e 2 do vírus da dengue. No interior de São Paulo, uma região muito populosa, além dos sorotipos 1 e 2, temos muitos casos de chikungunya, que causa sintomas clínicos semelhantes aos da dengue e contribui para deixar os dados confusos. Em algumas regiões do país, o vírus do sorotipo 2 em circulação é de uma linhagem cosmopolita, enquanto em São Paulo a variedade é asiática-americana. Temos ainda notícias da introdução do sorotipo 3 em alguns locais. Além dessa complexidade, preocupa o fato de que alguns estados da região Nordeste historicamente muito afetados por dengue estejam relativamente silenciosos. Se o surto que está ocorrendo em parte do país chegar a esses estados, teremos a tempestade perfeita.
É possível distinguir os sintomas da dengue dos da chikungunya?
Clinicamente, é quase impossível [o médico não consegue saber qual é a doença a partir dos sinais que o paciente apresenta]. Um estudo feito anos atrás pela médica Maria Paula Mourão, pesquisadora da Fundação de Medicina Tropical Doutor Heitor Vieira Dourado, em Manaus, mostrou que a infecção por alguns desses vírus nem sempre despertava os sintomas clínicos classicamente atribuídos a elas. É tão difícil distinguir uma da outra que a Organização Mundial da Saúde, a OMS, recomenda que tanto os casos suspeitos de dengue e quanto os de chikungunya sejam tratados como dengue.
Por quê?
Porque dengue mata. E mata rápido. Já a chikungunya evolui lentamente e raramente é letal. A mortalidade por dengue cai muito se os casos forem identificados no início e tratados. E o Brasil tem tradição em fazer isso bem. Uma consequência é que se acaba notificando tudo como dengue, principalmente em uma epidemia, quando nem sempre o diagnóstico laboratorial é feito. Tenho certeza de que um número significativo de casos de chikungunya estão sendo contabilizados como dengue neste ano.
O que a circulação simultânea de quatro sorotipos da dengue pode significar em termos de saúde pública? Podem ocorrer mais casos de dengue grave?
Caminha-se para um quadro de hiperendemicidade, que é a circulação simultânea dos quatro sorotipos do vírus. Vivemos isso de 2007 a 2010, mas não de forma agressiva, com cada um dos sorotipos predominando em uma região diferente e no máximo dois circulando ao mesmo tempo. A exceção foi Manaus, onde houve uma epidemia em 2010 ou 2011 com os quatro sorotipos.
Quais as consequências de um quadro hiperendêmico?
Infecções sucessivas por sorotipos diferentes favorecem a ocorrência da dengue grave, antigamente chamada de hemorrágica. Nos primeiros seis meses após a infecção por um sorotipo, o organismo fica protegido contra todos, por causa de anticorpos inespecíficos que permanecem no sangue. De nove meses a dois anos após a infecção, o nível desses anticorpos cai e facilita infecções por outros sorotipos. Esse fenômeno é chamado de facilitação mediada por anticorpos, ou antibody dependent enhancement, a ADE, e contribui para a ocorrência de dengue grave. Após dois anos, a infecção prévia nem protege nem agrava a seguinte. As consequências da circulação simultânea dos quatro sorotipos dependem de como será a dinâmica. Em São José do Rio Preto, tivemos em 2019 uma epidemia de dengue 2. Em 2022 e 2023, de dengue 1. Se o sorotipo 3 chegar este ano, haverá um grande risco de ocorrerem mais casos de dengue hemorrágica. Nos projetos com a prefeitura, financiados pela FAPESP, monitoramos os vírus circulantes na cidade. No passado, conseguimos prever um ano em que havia mais risco de uma epidemia com casos graves. Comunicamos à prefeitura e, em conjunto, fizemos um planejamento.
O que foi feito?
Quando entra um vírus contra o qual a população não tem imunidade, não há como evitar uma epidemia. A prefeitura intensificou as atividades de limpeza e controle do mosquito e fomos transparentes com a população, avisamos que haveria epidemia. A Secretaria de Saúde treinou as equipes médicas, comprou suprimentos e preparou áreas para atendimento de emergência. Quando a epidemia explodiu, foi a maior que tivemos em Rio Preto, com muitos casos graves, o impacto sobre o sistema de saúde não foi grande. Nós, da universidade, podemos ajudar os órgãos públicos a fazer a vigilância e a passar a informação para o Estado, que é quem tem de agir e se preparar para enfrentar a situação.
O tratamento da dengue é paliativo, com hidratação e medicamentos para dor e febre. Por que é importante hidratar?
Por causa do extravasamento vascular. Com o aumento da permeabilidade dos vasos sanguíneos, parte do líquido escapa do sistema circulatório e se acumula nos tecidos. Isso pode levar ao chamado choque hipovolêmico. Como o volume de sangue é menor, o coração não consegue bombeá-lo em quantidade suficiente para os órgãos, que entram em falência.
Por isso a hidratação diminui a mortalidade.
A hidratação inibe uma série de cascatas que levam à piora do extravasamento vascular. Mantendo o volume sanguíneo e o sistema circulatório funcionando, dá-se tempo para o organismo gerar anticorpos e células de defesa que controlam a infecção. Há duas situações nas quais o organismo nem sempre dá conta do problema. Uma é causada por uma resposta exacerbada do sistema imune, quando os anticorpos de uma infecção prévia, em vez de proteger, facilitam uma próxima infecção, levando a uma doença inflamatória grave [a ADE descrita acima]. A outra, que também é fatal e mais frequente no Brasil, são é a ocorrência de comorbidades, como diabetes, obesidade, cardiopatias. As alterações causadas pela dengue agravam a doença de base.
Os sorotipos causam doença com gravidade diferente?
Sim, historicamente sabemos que a linhagem asiática-americana do sorotipo 2, que circula no Brasil, é muito mais agressiva do que a linhagem americana, que existiu aqui no passado. Sabemos também que, normalmente, o sorotipo 4 é menos agressivo. Esse é um quadro geral. Agora, se um indivíduo é infectado pelo vírus 4 logo depois de uma infecção por dengue 2, pode ocorrer ADE e o caso ser grave. Uma infecção pelo sorotipo 4 em uma pessoa obesa ou com diabetes também pode ser grave. Do ponto de vista da saúde pública, é importante saber qual linhagem está circulando. Agora, em termos de cuidado com o paciente, dengue é dengue. O médico não deve ficar preocupado com o sorotipo, mas em atender o paciente seguindo os protocolos de tratamento.
O aumento dos casos de dengue deve afetar a circulação dos vírus da zika e chikungunya?
Em geral esses vírus competem entre si. Há registro de um mosquito transmitir dois vírus ao mesmo tempo. É frequente? Raríssimo. Existe um fenômeno chamado fitness epidemiológico, que é a capacidade de um vírus sobreviver em um nicho ecológico. No caso desses vírus, o nicho envolve dois organismos: o do mosquito e o humano. O vírus tem de estar bem adaptado à população de ambos. Há ainda fenômenos ecológicos que modulam esse fitness. Se chove muito e a temperatura está mais elevada, a população de mosquitos cresce e aumenta a chance de um vírus ou outro predominar. Se o vírus da dengue do sorotipo 1 for reintroduzido hoje em São José do Rio Preto, a chance de ele prosperar é pequena porque a maioria da população tem anticorpos. O fitness epidemiológico é complexo e envolve muitas variáveis. No primeiro ano do estudo clínico da vacina do Butantan quase não houve casos de dengue no Brasil. Havíamos acabado de vir de uma epidemia de zika, um vírus muito parecido com o da dengue. Como a circulação de zika foi grande, uma parte da população fico protegida contra a dengue.
A candidata a vacina Butantan-DV protege contra os sorotipos 1 e 2, mas não sabemos como funciona contra o 3 e o 4, que não circularam nos últimos anos. Ainda é possível tentar medir a eficácia contra esses dois sorotipos antes do fim do estudo?
Acredito que não. O número de pessoas em seguimento hoje é muito pequeno. Como pesquisador, não vejo problema com os sorotipos 3 e 4. A vacina do Butantan foi formulada com vírus vivos atenuados. Os vírus dos sorotipos 1, 3 e 4 usados nela sofreram deleções genéticas que prejudicam a capacidade de reprodução. Como a deleção não prejudicou a capacidade de reprodução do sorotipo 2, recorreu-se a outra estratégia: genes do sorotipo 2 foram introduzidos no vírus do sorotipo 4, com baixa capacidade de reprodução. Quando se olham os dados dos estudos em animais e em seres humanos, vê-se que os quatro componentes se multiplicam no organismo, estimulando o acionamento do sistema imunológico. Isso não ocorre nas outras duas vacinas aprovadas para uso no país. Na vacina da Sanofi, a Dengvaxia, apenas o componente da dengue 4 se multiplica. Na vacina da Takeda, a Qdenga, só componente da dengue 2 e, talvez, o da 1. O imunizante da Sanofi não protege contra os sorotipos 1 e 2, assim como a da Takeda não protege as crianças contra o sorotipo 3 [Isso provavelmente ocorre porque cada vacina usa uma tecnologia distinta. A Dengvaxia é elaborada com o vírus da febre amarela atenuado e modificado para apresentar as proteínas dos quatro sorotipos da dengue; a Qdenga é produzida a partir do vírus da dengue do sorotipo 2, modificado para apresentar as proteínas de superfície dos quatro sorotipos]. Voltando à Butantan-DV, o componente mais fraco seria o da dengue 2. Mesmo assim, houve uma proteção excelente contra esse sorotipo 2. Não existem motivos para esperar que a proteção contra a dengue 3 e 4 seja pior. Espero que eles se comportem de modo mais parecido com o sorotipo 1. Isso é uma hipótese. Se as agências reguladoras vão aceitar os resultados, é uma questão que o Butantan terá de enfrentar.
Como avaliar a eficácia contra os sorotipos 3 e 4?
Há duas saídas. A MerckSharp&Dohme, que tem uma vacina quase idêntica à do Butantan, está fazendo um estudo clínico de fase 3 na Ásia, onde circulam os subtipos 3 e 4. Isso pode demorar. Outra saída são os experimentos de desafio humano. Neles, a pessoa, depois de tomar a vacina, é exposta ao vírus. O grupo da Anna Durbin, da Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos, está fazendo esse tipo de teste. Se as agências regulatórias aceitarem os dados, a vacina do Butantan pode caminhar para um processo de licenciamento rápido.
A Butantan-DV vai complementar o papel das duas vacinas em uso no país, a da Sanofi e a da Takeda, ou competir com elas?
Acho que não competem. Os dados disponíveis até o momento sugerem que a vacina do Butantan é superior às outras. O Brasil é um país de 200 milhões de habitantes. Não se produz essa quantidade de vacinas em um ano. A própria Takeda não teria condições de suprir. Seriam necessários 400 milhões de doses para vacinar toda a população, uma vez que a imunização com a Qdenga é em duas doses. São necessárias estratégias inteligentes para imunizar o máximo de pessoas em um prazo adequado e com os recursos disponíveis.
Este ano devem chegar 5 milhões de doses da Qdenga, o que daria para imunizar 2,5 milhões de pessoas. Qual seria o impacto na epidemia?
Há o impacto pessoal, que é inegável. Os 2,5 milhões que receberem a vacina devem ficar protegidos. Em termos de saúde pública, no entanto, isso é 1% da população brasileira e não deve causar impacto na epidemia em curso. Até porque, com a imunização em duas doses, quando for aplicada a segunda, a epidemia estará no fim. Me preocupa a falta de proteção da vacina da Takeda contra a dengue 3. Eventualmente, podemos ter uma situação semelhante à da Sanofi.
O que pode ocorrer?
A Dengvaxia, da Sanofi, funcionava como primeira infecção em crianças que nunca haviam tido dengue. Quando, em seguida, elas eram infectadas pelo sorotipo 2, desenvolviam dengue grave. Por isso seu uso foi recomendado só para quem já teve dengue. Nesse caso, ela é eficiente e funciona como reforço. A Qdenga mostrou sinais preocupantes na presença de dengue 3, com falta de eficácia e aumento do número de casos. Um comitê de especialistas da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical [SBMT], do qual fiz parte, não recomendou o uso da Qdenga no Sistema Único de Saúde [SUS] naquele momento. Quando a SBMT fez a recomendação de que não fosse usada, não sabíamos qual seria a estratégia de vacinação. O Ministério da Saúde [MS] optou por aplicar a vacina em adolescentes, uma faixa que não apresenta maiores problemas. É uma estratégia inteligente. O problema ocorre com crianças. Um estudo publicado em 2022 sugere que, nelas, a vacina não protege contra a infecção pelo vírus do sorotipo 3. Mas, nesse estudo, o número de casos provocados pelo sorotipo 3 foi muito pequeno, assim como a proporção de pessoas que não tinham tido dengue previamente. Isso diminui a confiabilidade estatística do resultado com relação a esse sorotipo. O grupo de experts da OMS que avaliou a vacina não considerou isso um problema e recomendou o seu uso em uma faixa etária mais alta, os adolescentes, que é a faixa para a qual o MS indica o uso. A Qdenga é uma vacina boa, com um potencial de uso no sistema de saúde. A vacina da Sanofi também teria um potencial de uso.
Mas não foi aceita.
Não foi. Ela foi aprovada para uso individual por pessoas que já tiveram dengue. Uma complicação adicional é que ela é administrada em três doses. Todas essas vacinas têm potencial de uso no SUS. Agora, o uso tem de ocorrer de forma inteligente, que não exponha as pessoas a um eventual risco. Não podemos aceitar risco de forma nenhuma em vacina. Gostaria de enfatizar que a forma como o MS recomenda o uso da Qdenga não nos causa maior preocupação.
Quantas pessoas teriam de ser vacinadas para se observar um efeito protetor em uma epidemia?
Falta muita informação para saber. Há um impacto fundamental que é o individual. As pessoas vacinadas terão risco 80% menor de adoecer. Isso é maravilhoso. Já tive dengue três vezes. É uma doença terrível. Não tive a forma grave, nem fui internado. Mas me sentia miserável. Se pudesse ter tomado vacina na época, teria sido bom. Evitaria uma doença que causa um impacto pessoal muito grande e tem um custo econômico indireto que não costumamos mensurar no Brasil. No mundo todo, são milhões de pessoas afastadas do trabalho por até cinco dias todos os anos. Os norte-americanos costumam medir o chamado custo-efetividade. Há o custo individual, que é a pessoa sofrendo e é imensurável; o custo-efetividade, que é quanto o governo vai gastar comprando vacina, por um lado, e economizar evitando tratamentos e internações, por outro. Tudo deve chegar à casa dos bilhões de reais por ano.
A despesa hospitalar é alta no caso da dengue?
O último dado a que tive acesso mostra que passa da casa de centena de milhões de reais por ano no país.
Não há vacina para todos no SUS, mas tem disponível no setor privado. Quem pode pagar deve tomar?
É uma decisão individual, que deve ser tomada consultando o médico. No Brasil, faltam médicos de família, aquele clínico geral que atua na atenção primária à saúde e é com quem se deveria discutir o assunto. Aqui as pessoas vão direto ao especialista, o endocrinologista, o cardiologista. Aliás, vacinação de adulto é um problema no país. A adesão é muito baixa. O Brasil é bom em vacinação infantil, apesar dos problemas recentes nessa área, e estruturou um bom programa de vacinação do idoso. Mas falha no atendimento primário ao adulto. Talvez as camadas menos privilegiadas da sociedade tenham acesso melhor à vacinação porque em alguns lugares há o Programa de Saúde da Família, o PSF, no qual o médico ou a enfermeira vai à casa da família e leva essa discussão. As pessoas de classe média alta e alta, que têm plano de saúde, acabam procurando um especialista para resolver problemas específicos. É uma medicina fragmentada que não permite ter uma visão global da saúde.
Um artigo de revisão publicado em 2022 na revista BioDrugs enumerava sete compostos candidatos a vacina contra a dengue. Os três mais promissores eram os da Sanofi, da Takeda e do Butantan. Há outras no horizonte?
Há várias, ainda em estágios anteriores dos testes. As vacinas de RNA devem caminhar rapidamente. Mas, nesse momento, a grande mudança de paradigma deve ocorrer se houver o licenciamento da vacina do Butantan, por ela ser, aparentemente, muito superior às outras. Uma questão importante é, no futuro, inserir uma vacina contra a zika nesse pacote.
Sem vacina para todos, a saída é controlar o vetor. O Brasil fez isso até meados do século passado. É possível fazer de novo?
Hoje é impossível repetir a forma como ocorreu a erradicação do vetor no passado. Dois processos que ocorreram até meados do século XX não seriam aceitos. O primeiro foi a estratégia do “pé na porta”, adotada em muitas campanhas para erradicar os focos do Aedes aegypti. O agente de saúde entrava na casa com você, sem você ou apesar de você. Era algo até militarizado. Pode-se discutir o mérito disso na saúde pública, mas não seria aceito hoje pela sociedade. O segundo era a utilização de inseticidas piretroides e outros produtos muitos tóxicos, o que também não seria mais aceito. Desde que retornaram as epidemias de dengue em 1986 no Brasil, falamos de controle do vetor. Criamos várias estratégias, mas não conseguimos controlar vetor nenhum até hoje. Porém há algo que parece ter potencial: controlar a capacidade vetorial.
O que é isso?
É a capacidade de o mosquito transmitir a doença. Não é erradicar o mosquito, mas diminuir sua capacidade de transmitir o vírus. Isso tem sido tentando com a liberação na natureza de mosquitos infectados propositalmente com uma bactéria do gênero Wolbachia. Essa bactéria coloniza o trato digestório do mosquito e impede que os vírus da dengue, zika, chikungunya e febre amarela infectem as células dos intestinos e se multipliquem. Como os vírus não conseguem se multiplicar, eles não chegam em grande quantidade às glândulas salivares do inseto, de onde são injetados durante a picada. Com isso, a transmissão é interrompida. Uma vantagem é que, quando o mosquito se reproduz na natureza, ele transmite a bactéria para a prole. Há um investimento grande do World Mosquito Program, um programa mundial que tem tentado utilizar o mosquito infectado com Wolbachia. A Fiocruz [Fundação Oswaldo Cruz] e o MS têm também investido bastante. Há alguns dados de estudos preliminares mostrando uma boa efetividade, mas ainda não temos os resultados de um grande estudo controlado que está em desenvolvimento em Belo Horizonte, Contagem e Betim. Na Famerp, temos participado desse projeto, o Evita Dengue, fazendo análise dos casos. É um programa financiado pelos NIH e pelas universidades Emory, da Flórida e Yale, dos Estados Unidos, além da UFMG e da Famerp.
Como é o estudo?
Estamos fazendo um ensaio de cluster randomizado. Dividimos os municípios de Belo Horizonte, Contagem e Betim em 36 clusters [conglomerados de pessoas] e em alguns deles estamos liberando mosquitos com Wolbachia e fazendo também o controle usual do vetor. Em outros, fazemos apenas a intervenção de controle de vetor usual. Estamos indo para o quarto ano de acompanhamento dessa estratégia, mas só liberaremos os resultados ao final do experimento.
É uma estratégia a mais.
Não existe bala de prata. Se alguém me perguntasse há oito anos se a dengue teria controle, obteria uma resposta pessimista. Hoje estou extremamente otimista.
O que mudou?
Há hoje um tripé para combater a dengue. Existem duas vacinas licenciadas que, apesar de suas limitações, se bem utilizadas, são excelentes ferramentas. Temos uma terceira, talvez melhor, a caminho. A segunda perna do tripé é o uso de mosquitos infectados com Wolbachia, que cumpre o papel de diminuir de forma significativa a transmissão. A terceira parte é que há ao menos três medicamentos antivirais específicos para a dengue que estão em testes clínicos de fase 2 e 3. Por isso estou otimista. Se não der para controlar, ao menos será possível mitigar de forma significativa os impactos da dengue.
Há capacidade de produzir em grande escala mosquitos infectados com Wolbachia?
Tem uma fábrica sendo construída em Belo Horizonte para isso. Não sei a capacidade.
Também se tentou combater os mosquitos com a liberação de machos estéreis na natureza. O que pensa sobre isso?
Não tenho detalhes. Nunca vi o ensaio da Oxitec [a empresa que produzia os mosquitos estéreis]. Pode ser deficiência minha. Não quero dizer que não existam. Como a dengue é cíclica, os estudos têm de ser desenhados com muito cuidado, senão facilmente indicarão que diminuiu a ocorrência da doença.
O que mais dá para fazer?
A dengue é uma doença que se pega em casa. O mosquito não voa longe. É papel nosso cuidar da nossa casa. Não adianta esperar que o Estado vá tomar conta do nosso quintal. Temos de cuidar da própria casa e da vizinhança para diminuir os focos de mosquito. Não resolve tudo, mas diminui. Como não é possível controlar uma epidemia de dengue, o que temos de fazer agora que os casos estão subindo é preparar o sistema de saúde para receber os doentes e conscientizar a população sobre como evitar criadouro de mosquito.
Íntegra do texto publicado em versão reduzida na edição impressa, representada no pdf.
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