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OBITUÁRIO

60 anos de ensino e pesquisa dedicados à física nuclear

Thereza Borello-Lewin se destacou pelo trabalho no acelerador de partículas Pelletron, da USP

Márcia Dias RodriguesBorello: rigor na pesquisa e incentivo aos alunosMárcia Dias Rodrigues

“Se son fiori, fioriranno.” A frase em italiano, repetida pela física Thereza Borello-Lewin, ajuda a resumir sua trajetória na física nuclear brasileira. “Se forem flores, florescerão” traduz a confiança de que, com rigor e dedicação, seus estudos e dos alunos, treinados desde a iniciação científica, alcançariam êxito. Após 60 anos de dedicação à pesquisa e ensino da física, principalmente no espectrógrafo magnético do acelerador de partículas Pelletron, a professora sênior aposentada do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (IF-USP) morreu no dia 28 de maio, aos 82 anos, vítima de infarto.

A atração pela física chegou para Borello como herança familiar. O pai, Luiz Borello, emigrou da Itália em meados da década de 1920 e radicou-se em São Paulo, onde trabalhou como professor de física no colégio Dante Alighieri. Sua irmã, Ottavia Borello Filisetti (1931-2015), formou-se em física primeiro, na então Faculdade de Filosofia Ciências e Letras (FFCL, atual FFCHL) da USP em 1952, onde foi professora e pesquisadora – o IF só seria instalado em 1969. “Thereza tinha admiração profunda e se inspirava muito nos dois. Citava frases em italiano que aprendeu com o pai, sempre no sentido de levantar a cabeça e superar as dificuldades”, lembra o físico Cleber Lima Rodrigues, da USP.

Concluiu a graduação em 1963 no mesmo Departamento de Física Experimental que, mais de uma década antes, se formara a sua irmã. “Ela sempre foi diplomática, não tinha muitas inimizades, mas certamente encontrou dificuldades, pois, naquela época, havia muita discriminação com as mulheres no meio da física”, conta a física Alinka Lepine Szily, caloura de Borello, formada em 1964. “Estávamos dispostas a fazer carreira, trabalhar seriamente, mas os homens dificilmente aceitavam isso, não queriam essa competição.”

Foi lá que Borello encontrou um antigo aluno de seu pai do Dante Alighieri, o físico César Lattes (1924-2005). Na época, ele já havia conquistado reconhecimento internacional pela descoberta da partícula subatômica méson pi, depois denominada píon, entre 1946 e 1948, primeiro na natureza e posteriormente no interior de um acelerador de partículas. Após a graduação, Borello tornou-se professora na FFCL, integrou o grupo de Lattes como pesquisadora e desenvolveu estudos sobre raios cósmicos, partículas superenergéticas vindas do espaço. No entanto, foi após a mudança de Lattes para a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em 1967, que se iniciou a etapa mais marcante da produção cientifica de Borello.

No mesmo ano, o físico nuclear Ernst Hamburger (1933-2018) voltou para a USP após seu doutorado na Universidade de Pittsburgh, nos Estados Unidos, onde trabalhou com um acelerador de partículas semelhante ao que se planejava instalar em São Paulo. Com interesse e já alguma experiência em física nuclear, Borello percorreu o caminho contrário, e seguiu para a instituição norte-americana, onde colheu dados para seu doutorado com um espectrógrafo magnético ligado ao equipamento, além de acumular aprendizado para a iniciativa nacional. Ela defendeu a tese, orientada por Hamburger, em 1971.

Em 1972, o acelerador eletrostático Pelletron foi inaugurado no IF, que exigiu a construção de um prédio de nove andares para sua instalação. O aparelho impulsiona átomos energizados (íons) a cerca de 20% da velocidade da luz para colidir com núcleos atômicos e revelar detalhes sobre a estrutura das partículas e suas interações. Um espectrógrafo magnético tipo Enge foi instalado junto ao Pelletron para separar os átomos emergentes das colisões por massa e energia e, dessa forma, estudar o efeito do bombardeamento de partículas subatômicas sobre materiais.

“Meu papel foi importante na instalação do Enge. Um equipamento de grande porte, com 30 toneladas, que exigia instalação dentro de condições extremamente restritivas e, para garantir o melhor funcionamento, a procura de soluções originais e criativas”, relatou Borello no livro 50 anos do acelerador de partícula Pelletron – Vozes de uma história (IF-USP, 2022). “Os primeiros anos foram muito duros, tínhamos que nos esforçar muito. Lembro que os feixes eram muito pouco intensos. Foi um trabalho de equipe bastante extenso, mas inteiramente compensador pela qualidade atingida.”

Desde o pós-doutorado, em 1973, na Escola Superior de Estudos Avançados de Trieste, na Itália, Borello liderou o grupo de pesquisa em Espectroscopia Nuclear com Íons Leves, responsável pelo Laboratório de Emulsões Nucleares e Outras Técnicas e chefe do Departamento de Física Experimental da USP. Manteve-se ativa até 2022, quando um acidente vascular cerebral (AVC) a afastou de suas atividades.

“Eu comecei fazendo iniciação cientifica com a Thereza no segundo ano de graduação. Depois fiz mestrado, doutorado com ela. Foram quase 30 anos de convivência e a vejo como uma mentora”, afirma a física Márcia Regina Dias Rodrigues, da Universidade Texas A&M, nos Estados Unidos. “Ela era uma pesquisadora bem rigorosa, que se importava muito com o aluno. Se tínhamos alguma dificuldade, vinha sempre com uma frase para nos fazer persistir. Ela se entregava com muito orgulho e paixão ao trabalho e isso me atraiu e atraía muita gente.”

Borello sabia que era preciso cuidado e paciência para formar pesquisadores. “Sempre procurei acompanhar os estudantes desde a iniciação científica e não começar diretamente em um programa de mestrado”, afirmou no depoimento sobre os 50 anos do Pelletron. Para ela, a atividade, além de contribuir para uma inserção continuada na área, propicia ao estudante um período em que testa suas tendências e habilidades. “Algumas orientações em iniciação científica deram origem a projetos de mestrado e doutorado que se concretizaram de forma muito compensadora.”

Por iniciativa de Borello, a USP mantém uma parceria com o Instituto de Física Nuclear de Catânia, na Itália, para que os pesquisadores das duas instituições conduzam pesquisas no espectrógrafo do acelerador um do outro. Em 2018, a física Marcilei Aparecida Guazzelli, do Centro Universitário FEI, esteve presente na última visita cientifica de Borello à Itália. A pesquisadora conta que os experimentos com o equipamento acontecem de forma contínua, ao longo de dias, e os pesquisadores se revezam em turnos de oito horas para a coleta de dados. “Thereza estava em plena atividade mental, mas a parte motora já estava limitada. Fazia questão de cumprir todo seu turno e, às vezes, ainda ficava no dos outros.”

Segundo Guazzelli, Borello tinha uma característica típica de sua geração de mulheres físicas: “São pessoas com uma capacidade incrível de criar, e, mesmo quando o corpo começa a falhar, são teimosas e insistem em continuar”. Para ela, isso ocorre porque são pesquisadoras que lutaram muito para conquistar reconhecimento como cientistas e se mantêm lutando até o fim. “As pessoas não têm noção de como, ainda hoje, é complicado ser uma mulher em uma área predominantemente masculina como a física nuclear. Ela é um exemplo para mim e para qualquer mulher nas ciências”, completa.

Thereza Borello-Lewin deixa o marido, o empresário Fernando Herbert Lewin.

A reportagem acima foi publicada com o título “Flores da física” na edição impressa de agosto de 2024.

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