A história cronológica de Gondwana, o antigo supercontinente austral que incluía a maior parte das terras hoje situadas no hemisfério Sul, está sendo reescrita por pesquisadores brasileiros e norte-americanos. De acordo com novas datações de rochas e análises do campo magnético presente em trechos de uma cadeia montanhosa do Brasil Central, o evento final que levou à formação do supercontinente ocorreu 100 milhões de anos mais tarde do que se pensava. O desaparecimento de um oceano, Clymene, que separava a Amazônia dos demais blocos da futura América do Sul, se deu 520 milhões de anos atrás.
“Antes trabalhávamos com a ideia de que o fechamento do Clymene tivesse ocorrido há cerca de 620 milhões de anos”, afirma o geólogo Ricardo Trindade, do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG-USP), um dos autores do trabalho, publicado na edição de março da revista científica Geology. “Agora sabemos que a Amazônia passou muito tempo separada dos demais fragmentos da América do Sul e do resto de Gondwana por esse oceano.” A existência desse mar interior rasgando o coração do antigo Brasil é uma proposta desse grupo de pesquisadores. Seu nome foi retirado da mitologia grega. Clymene era a mulher do titã Iapetus. O oceano foi assim batizado para enfatizar sua conexão com outro oceano, o grande Iapetus, que banhava na mesma época o hemisfério Sul.
A junção dos fragmentos originais da América do Sul deixou marcas no relevo na forma de elevações, visíveis até hoje. O estudo pormenorizado das características de uma dessas cicatrizes geológicas, a Faixa Paraguai, levaram os pesquisadores a fixar uma nova data para o final do processo de montagem do Gondwana. A Faixa Paraguai é um grupo de elevações que marca a zona de colisão, ou sutura no jargão dos geólogos, entre o maior dos antigos blocos sul-americanos, a Amazônia, e as demais partes do continente. A rigor, ela é parte de uma enorme cadeia de montanhas que se estende desde a fronteira do Maranhão com o Pará, passando pelo Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, até o sul da Argentina. “É notável que essas montanhas apresentem uma forma curva”, comenta o geólogo norte-americano Eric Tohver, da University of Western Australia, outro responsável pelo trabalho. “Em Mato Grosso, a direção da cadeia é oeste-leste. Do Mato Grosso do Sul até o Paraguai é norte-sul.” Com financiamento da FAPESP e da National Science Foundation dos Estados Unidos, Tohver participou do estudo durante os três anos em que fez pós-doutorado na USP com a equipe de Trindade e Cláudio Riccomini.
A antiguidade das montanhas da Faixa Paraguai, da qual faz parte a serra das Araras, em Mato Grosso, foi determinada por meio da datação das argilas depositadas no fundo do antigo oceano Clymene. Usando uma variação da técnica normalmente empregada para calcular a idade de certos tipos de falhas geológicas e terremotos, o método mede a quantidade de dois isótopos do elemento argônio (40Ar e 39Ar) nas rochas. Os resultados sugerem que a formação das montanhas – e, portanto, o fechamento do oceano Clymene – ocorreu há cerca de 520 milhões, uma centena de milhões de anos depois do que se pensava.
A segunda análise usada para amparar essa conclusão diz respeito à direção e à intensidade do campo magnético da Terra armazenado nos minerais presentes nas rochas e sedimentos dessas montanhas. Esses materiais têm algo como uma bússola embutida em seu interior, um sinal que permite deduzir onde ficavam os polos magnéticos num momento da história evolutiva do planeta e fornece pistas sobre a movimentação dos continentes no passado remoto. No caso das amostras da Faixa Paraguai, os estudos indicam que a conformação não retilínea da cadeia de montes é compatível com os registros paleomagnéticos arquivados em seus minerais. “Os vetores magnéticos seguem a curva das montanhas”, diz Tohver. As análises atestam também que a cadeia, na verdade, foi um dia reta, mas, em seguida, foi dobrada por um movimento de rotação sobre um eixo vertical. Esse tipo de ajuste é comum de ocorrer em lugares onde houve o choque e a acomodação de antigos blocos de terra, como se deu no Brasil Central quando o Clymene desapareceu.
Até os anos 1980 era dominante a ideia de que o Gondwana havia adquirido seus contornos definitivos de uma só vez. Todas as peças constituintes do supercontinente austral, porções antigas e relativamente estáveis da crosta continental denominadas crátons pelos geólogos, teriam se encaixado umas nas outras mais ou menos ao mesmo tempo. Nas últimas décadas, ganhou força a hipótese de que a gênese do supercontinente foi um processo menos pontual e que seu derradeiro ato ocorreu justamente no centro do Brasil, onde nem todas as peças desse quebra-cabeça geológico tinham encontrado um ponto justo de encaixe.
Segundo esse novo modelo, ao contrário do resto do Gondwana, cujas partes já estavam unidas e acomodadas, a América do Sul ainda estava fracionada em blocos há pouco mais de meio bilhão de anos. Existiam os crátons Amazônia, São Francisco (ligado à África), Rio Apa, Paraná, Luís Alves e Rio da Prata. Com exceção dos Andes, que ainda não haviam se formado, as partes principais do nosso continente estavam próximas umas das outras, mas ainda apartadas pelo Clymene (ver quadro). O oceano teve de fechar para que os blocos de terra finalmente se encaixassem. Esse foi o derradeiro movimento na montagem do Gondwana, que incluía peças das atuais América do Sul, África, Oceania, Antártida, Índia e península Arábica.
O Projeto
Sedimentação após as glaciações do Neoproterozoico: Um estudo integrado das capas carbonáticas do Brasil e da África (nº 05/53521-1); Modalidade Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa; Coordenador Ricardo Trindade – IAG/USP; Investimento R$ 127.962,86 e US$ 13.669,00
Artigo científico
TOHVER, E. et al. Closing the Clymene ocean and bending a Brasiliano belt: Evidence for the Cambrian formation of Gondwana, southeast Amazon craton. Geology. v. 38. n. 3, p. 267-70. mar. 2010.