de Madri* e Brasília

Depois de dois dias e meio de debates intensos levados a cabo por quase meia centena de jornalistas, professores, pesquisadores e produtores culturais da Espanha e de vários países da América Latina – o Brasil entre eles –, essa recomendação, assim como a de procurar as conexões entre cultura, ciência e tecnologia no jornalismo, a de se adaptar o trabalho jornalístico aos novos formatos que a internet oferece e a de formar uma ampla rede de cooperação de jornalistas de ciência e de cultura na web, tinha o respaldo das instituições por trás do seminário. Eram elas a Organização dos Estados Ibero-americanos para a Educação, a Ciência e a Cultura (OEI), por quem falou seu secretário-geral, Alvaro Marchesi, e a Fundação Novo Jornalismo Ibero-americano (FNPI), representada por seu diretor-geral, Jaime Abello, com o apoio da Agência Espanhola de Cooperação para o Desenvolvimento (Aecid), da Agência Efe e Escola de Jornalismo UAM-El País.
Vale dizer que essas recomendações consensuais foram construídas a despeito de toda a diferença entre as experiências de jornalismo científico e cultural apresentadas e mesmo das divergências conceituais profundas que se explicitaram. Assim, se para alguns jornalistas a internet e a democratização da produção de conteúdos via web representam uma ameaça à própria existência de sua profissão, para outros, como o diretor adjunto do respeitado jornal espanhol El País, Gumersindo Lafuente, constituem um belo desafio à quase reinvenção do jornalista. “Nossa narrativa foi sempre conectada com a realidade e hoje a realidade está nas ruas e está na rede. Como jornalistas, temos que contar o que se passa também na rede”, disse ele. Observou que não estamos mais em tempo de esperar que as pessoas vão em busca dos meios de comunicação, e sim em tempo “de irmos com nossas histórias aos lugares em que se está falando dos temas que tratamos na internet”. Lafuente destacou que mais que nunca é fundamental o papel do jornalista independente, capaz de filtrar o que tem valor e de contrastar a informação no mar fervilhante da internet. E ainda apostou que, como num ambiente darwiniano, “as plataformas da internet que tenham qualidade, sejam blogs ou twitters, se converterão em marcas, enquanto os meios que já são marcas só vão sobreviver se conservarem sua qualidade”.
Divergências também se levantaram em torno da propriedade ou impropriedade de um caráter mais literário nas narrativas do jornalismo científico. Se para María Ángeles Erazo, diretora do Centro de Estudos sobre Ciência, Tecnologia, Sociedade e Inovação de Otovalo, no Equador, e Liliana Chávez, jornalista da revista mexicana Día Siete, é necessário hoje experimentar novos gêneros para contar de forma atraente e mais literária fatos do campo da ciência, a jornalista Milagros Pérez Oliva, professora da Escola de Jornalismo UAM-El País e ombudsman de El País, vê nessas tentativas “um perigo para o jornalismo e seus profissionais, além de uma contaminação narrativa”, uma vez que “a linguagem jornalística é objetiva”.
A propósito, Milagros, ao participar no dia anterior da mesa-redonda sobre “divulgação do conhecimento científico e as indústrias da ciência” (que incluiu a apresentação sobre a experiência de Pesquisa FAPESP), observara que “a notícia científica tem um grande valor quando bem elaborada, porque gera opinião e conhecimento, mas é a mais arriscada quando malfeita e tendenciosa porque pode provocar danos sociais pelos quais vamos todos pagar”. Em sua visão as portas do jornalismo estão cada dia mais abertas para a pseudociência, o que exige, em especial na informação digital, contenção e comprovação.
No meio das discussões pairava alguma coisa da fala do professor José Manuel Sánchez Ron, catedrático de história da ciência na Universidade Autônoma de Madri, na conferência inaugural do encontro. “Cultura e ciência são parte da vida intelectual, mas entre elas existe uma mútua incompreensão, hostilidade e antipatia.” Os meios de comunicação, além de informar, em sua visão, devem educar ao tratar da ciência – com o que dificilmente algum jornalista concordará em termos estritos. “O jornalista, além de crítico e rigoroso no desempenho de sua função, não deve renunciar à imaginação e à boa escrita, para fazer da ciência precisamente algo interessante e oportuno”, disse ele. E ainda: “É importante escrever bem, com graça e originalidade quando se fala de ciência”.
Silêncio e ruídos
Se no front dos jornalistas e dos cursos de comunicação há visível preocupação com a qualidade do jornalismo científico, há indícios de que dentro do sistema nacional de ciência e tecnologia a ideia de parceria com os meios de comunicação para difundir a cultura científica na sociedade, que parecia vicejar no começo da década, experimenta hoje retrocesso. Assim, na IV Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação, realizada de 26 a 28 de maio em Brasília (ver reportagem na página 26), evento em que se procurou ressaltar ao máximo as parcerias entre a comunidade científica, o Estado, os empresários e os chamados setores sociais, para o desenvolvimento de uma verdadeira sociedade do conhecimento no país, o papel da mídia foi ignorado, mesmo quando se falava em popularização da ciência. Entre todos os debates, reservaram-se apenas 15 minutos à fala de um jornalista, aliás, uma jornalista, a presidente da Associação Brasileira de Jornalismo Científico (ABJC), Cilene Victor, dentro da sessão “Construção da cultura científica”. Vale lembrar que na II Conferência Nacional, em 2001, sob o comando do ministro Ronaldo Sardenberg e organização do professor Cylon Gonçalves, foram várias as mesas que debateram a questão da comunicação pública da ciência com mediação do jornalismo.
Dessa forma, parece voltar à cena, de certa maneira, uma velha visão meramente instrumental do jornalismo ante a ciência, o primeiro submetido à segunda, em vez de uma visão mais contemporânea de parceria para a difusão social do conhecimento.
* A jornalista viajou a convite da Organização dos Estados Ibero-americanos (OEI).
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