Cinco equipes de hospitais da Alemanha, Bélgica, Hungria e França devem começar ainda este ano uma estratégia diferente para avaliar a eficácia de um tipo de células de defesa em pessoas com tumores de pele ou com Aids. Dessa vez adotarão métodos padronizados de trabalho para depois compararem os resultados a que chegarem – algo antes quase impossível, já que cada pesquisador empregava seus próprios procedimentos. Ao mesmo tempo, uma equipe em Paris estuda como essas células reagem ao encontrar tumores ou agentes infecciosos como vírus e bactérias. Em Milão, na Itália, outro grupo identifica os genes que controlam o funcionamento das chamadas células dendríticas, vistas atualmente como uma promissora possibilidade terapêutica contra uma série de doenças por controlarem a produção de anticorpos e de outras células de defesa. Os líderes de cada grupo sabem que podem pedir ajuda às outras equipes para complementar os resultados. Podem também ampliar o debate a mais participantes, já que compõem a rede européia DC-Thera, um dos raros esforços mundiais a integrar pesquisa básica e aplicada, constituída por 26 grupos de pesquisadores, 39 laboratórios associados e seis pequenas e médias empresas.
Implantada há quase três anos, a DC-Thera, abreviação de Dendritic Cells for Novel Immunotherapies, reúne destacados especialistas europeus em células dendríticas da área de genômica, proteômica, biologia molecular e celular e experimentação em modelos animais e em seres humanos com o propósito de encontrar uma alternativa aos tratamentos, em especial contra câncer. “O conhecimento de genômica pode ser usado para desenhar testes em seres humanos, que freqüentemente são muito empíricos”, diz Jonathan Austyn, professor de imunobiologia da Universidade de Oxford que criou a rede. “Queremos completar o percurso do micro ao macrocosmo.”
A pesquisa nessa área se intensificou nos últimos anos também nos Estados Unidos e no Brasil por causa dos resultados animadores dos testes clínicos preliminares e da baixa toxicidade. Os efeitos colaterais tendem a ser mínimos porque cada pessoa recebe células de seu próprio organismo, selecionadas, cultivadas e fortalecidas em laboratório.
“Daqui a dez anos possivelmente conseguiremos estimular as células dendríticas dentro do próprio organismo dos pacientes”, diz Roger Chammas, que estuda os mecanismos de diferenciação de células dendríticas na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) em conjunto com a equipe de Lewis Joel Greene, do Centro de Terapia Celular de Ribeirão Preto.
Trabalhar em rede pode ser uma forma de chegar logo a resultados mais consistentes, mas não é fácil. Em um mesmo país já seria difícil motivar médicos e biólogos a adotarem uma linguagem e formas de pensar convergentes. Austyn provocou a sorte e reuniu 61 grupos de 18 países da Europa, cada um com suas barreiras culturais, particularmente sérias em um continente historicamente dividido por guerras. Sob sua coordenação biólogos, médicos e empresários ingleses, italianos, alemães, portugueses, suíços, franceses, croatas e espanhóis se sentam à mesma mesa a cada três meses para discutir resultados científicos ou estratégias de trabalho.
Negociar com cientistas nem sempre é fácil, especialmente para quem, como Austyn, prefere respeitar as prioridades e os estilos de trabalho de cada grupo em vez de impor um comportamento padrão. Para articular o conhecimento e vencer a especialização que limita a capacidade de reflexão, ele tem também de prever e administrar conflitos gerados por diferentes visões de mundo. Muitas vezes a consciência dos limites do próprio conhecimento faz com que uns ganhem e outros percam autoridade.
Mas o diálogo muitas vezes vence e fortalece os laços de confiança. Em junho, por exemplo, em uma reunião organizada por Gerold Schuler, da Universidade de Erlangen, em Bamberg, uma cidade medieval alemã, os integrantes da rede concordaram em testar as células dendríticas com métodos comuns de preparação, controle de qualidade e aplicação.
A falta de padronização é um dos principais problemas que dificultam a análise e a comparação dos cerca de cem testes clínicos com células dendríticas já realizados no mundo. Carl Figdor, pesquisador da Universidade de Nijmegen, Holanda, e integrante da DC-Thera, ao lado de outros especialistas, alertara em 2004 na Nature Medicine sobre a necessidade de planejar, preparar e avaliar os testes clínicos com mais rigor.
Austyn e a gerente de projetos, a bióloga brasileira Miriam Mendes, descobriram aos poucos como fazer com que equipes que antes mal se viam começassem a compartilhar equipamentos, dúvidas, esperanças e descobertas. Uma das estratégias é valorizar o conhecimento tácito – detalhes das técnicas de trabalho que não entram nos estudos publicados em revistas científicas, mas que economizam tempo e evitam erros. Os pesquisadores viram que era melhor aprender em uma semana em outro laboratório uma técnica a que chegariam sozinhos em meses.
Austyn e Miriam investem em muita conversa, já que o dinheiro é curto. Financiada pela Comunidade Européia, a rede conta com um orçamento de € 7,6 milhões por cinco anos – ou € 1,5 milhão (cerca de R$ 4,5 milhões) por ano. Cada grupo recebe o suficiente apenas para cobrir despesas de viagens e parte dos reagentes usados nos experimentos.
“Não damos dinheiro para pesquisa, mas tentamos reduzir os custos da pesquisa aproximando os grupos e fazendo a informação fluir mais facilmente”, diz Miriam. Formada pela USP, ela trabalhara no Projeto Genoma Humano na Inglaterra e à frente de um levantamento sobre as razões de sucesso ou fracasso na transferência de tecnologia entre universidades e empresas farmacêuticas norte-americanas e britânicas. Chegou então à conclusão de que muitas vezes é a falta de comunicação – e não de dinheiro – o maior gargalo da produção científica.
Tim Evans, diretor-geral assistente para informação, evidência e pesquisa da Organização Mundial da Saúde, concorda. Segundo ele, já existe informação suficiente para enfrentar as doenças infecciosas em países em desenvolvimento: “As pessoas estão se afogando em dados”. A seu ver, as doenças se propagam, entre outras razões, porque a informação sobe para os níveis mais altos da hierarquia, mas raramente desce para os formuladores de políticas públicas e os cidadãos comuns.
“Se as perguntas de cada grupo fossem mais complementares talvez a eficiência das redes fosse maior, pois os resultados se somariam mais facilmente”, diz Lyris Godoy, bióloga brasileira que fez o doutorado no Centro de Terapia Celular em Ribeirão Preto e desde julho de 2005 estuda proteínas no Instituto Max Planck de Bioquímica, em Martinsried, na Alemanha.
Em julho de 2006 Lyris foi a St. Moritz, uma estação de esqui na Suíça, para esquiar e para contar sobre seu trabalho a pesquisadores mais experientes, que ofereceram a ela e a outros pós-graduandos sugestões sobre como avançar mais rapidamente. Era o segundo encontro anual da Escola de Pós-Graduandos (Graduate School), uma espécie de curso de inverno criado por Mark Suter, pesquisador da Universidade de Zurique e parceiro da DC-Thera. “É muito útil”, avalia Lyris, que saiu de St. Moritz com o plano de um experimento a ser realizado com colegas da Inglaterra. “Os vínculos pessoais que fortalecem a rede são mais consistentes quando nascem de problemas reais, de baixo para cima”, observa Miriam.
Outra forma de aproximar os grupos são as quatro plataformas tecnológicas – equipes ou instalações que podem atender outros grupos com serviços, palpites ou cursos em genômica, imagens de células, informática e produção de células para os testes em seres humanos. Em uma dessas plataformas, no Instituto Curie, em Paris, o biólogo argentino Sebastian Amigorena registrou os movimentos das células dendríticas em tecidos de camundongos ao vivo e em tempo real, por meio de microscopia e de ressonância magnética nuclear.
Ver como as células se deslocam pelo organismo ajuda a interpretar os resultados dos experimentos em animais, principalmente quando os resultados se somam: um dos grupos da Itália, por exemplo, deve listar os milhares de genes associados à diferenciação e regulação das células dendríticas até o final do ano. “Podemos agora trabalhar para associar os genes com as respostas das células”, diz Austyn. Dessas pesquisas emergem também estratégias de ação, para, por exemplo, bloquear um gene cuja ação atrapalhe o funcionamento das células dendríticas.
Encontradas em quase todos os tecidos, as células dendríticas atuam como apresentadoras de antígenos. Encontram e digerem partes de tumores, de microorganismos pequenos, como vírus e bactérias, ou maiores, como vermes. Depois algumas proteínas que permanecem aderidas na superfície das células dendríticas servem para ativar outras células de defesa, como os linfócitos T e B. Os tumores bloqueiam essa comunicação inibindo o amadurecimento das células dendríticas. Não só os tumores. O protozoário causador da malária também bloqueia o desenvolvimento dessas células, de acordo com um estudo de Austyn e de outros pesquisadores da Universidade de Oxford publicado em 1999 na Nature.
O trabalho nos hospitais procura justamente evitar essas perdas de células essenciais para a defesa do organismo. Um aparelho semelhante ao que filtra o sangue de quem tem rins deficientes retira as células do sangue conhecidas como monócitos das pessoas com câncer ou doenças infecciosas como Aids. Em uma solução com proteínas e estimuladores de crescimento, os monócitos originam as células dendríticas. Cinco ou seis dias depois, essa solução recebe partes de tumores, também extraídos das próprias pessoas a serem tratadas, e outros agentes que fazem as células dendríticas amadurecerem e se tonarem eficazes para estimular o sistema imune. Por fim, já maduras e capazes de reconhecer os tumores, as células dendríticas voltam ao organismo dos pacientes para coordenar a luta contra o câncer ou doenças infecciosas.
Essa estratégia é trabalhosa, mas promissora. Frank Nestlé, pesquisador da Universidade de Zurique e parceiro associado da DC-Thera, relatou em 1998 na Nature Medicine os resultados de um estudo piloto com 16 portadores de câncer de pele em estágio avançado; cinco apresentaram regressão de metástases após receberem injeções de células dendríticas retiradas do próprio sangue. Outros estudos não terminaram com resultados tão positivos, mas essa técnica, chamada de vacina autóloga por ser feita a partir do sangue da própria pessoa tratada, firmou-se com um enfoque promissor e seguro em 1999. Foi quando o grupo de Schuler, que atualmente coordena os testes clínicos, publicou resultados mais animadores, também em câncer de pele.
Incertezas
Pode estar aí uma alternativa para tratar outros tipos de câncer, doenças auto-imunes, alergias ou rejeição de transplante, mas ainda há muitos desafios. “Como faltam procedimentos de trabalho padronizados”, afirma Chammas, “ainda não temos como avaliar a eficácia do uso de modo independente”. Austyn encoraja os grupos a usar os mesmos critérios nos testes em seres humanos não só para poderem comparar os resultados obtidos em diferentes países. Essa é também uma forma de a entidade que aprova novos tratamentos na Europa, a Emea, liberar mais rapidamente uma licença válida para todos os países europeus.
Outro problema é que, por ser individualizado, esse tratamento ainda é caro. Mesmo assim, ainda é mais barato que a quimioterapia e a internação em unidades de tratamento intensivo, assegura o médico José Alexandre Barbuto, pesquisador do Instituto de Ciências Biomédicas da USP.
À frente de um dos poucos núcleos de pesquisa básica e clínica em células dendríticas no Brasil (há outros em São Paulo, no Rio de Janeiro e no Rio Grande do Sul), Barbuto foi um dos coordenadores de um dos únicos estudos clínicos com células dendríticas no país. De acordo com os resultados, publicados em 2004 na Cancer Immunology and Immunotherapy, os tumores pararam de crescer em 71% das 35 pessoas tratadas (com tumores de pele ou de rim em estágio avançado). “Estamos no mesmo pé que outros países”, diz ele.
Também por aqui faltam métodos de trabalho padronizados e sobram incertezas sobre os mecanismos de aprovação pelas autoridades do governo. Não falta, porém, ousadia. Nos testes que resultaram no artigo de 2004, Barbuto deixou de lado alguns preceitos da imunologia e fundiu células dendríticas retiradas de doadores saudáveis com células de tumores das pessoas a serem tratadas – normalmente células e tumores são extraídos da mesma pessoa. A eventual rejeição, ele imaginou, poderia servir para estimular ainda mais as outras células de defesa. Os resultados o animaram a trabalhar para iniciar o mais breve possível testes em mais pessoas e mais doenças. Por enquanto, reina o otimismo.
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