André Martins / Plos OneNos filmes de cinema sobre o personagem Highlander, um guerreiro escocês que se tornou imortal no início do século XVI, o protagonista Connor MacLeod atravessa as eras combatendo malfeitores e fazendo justiça sem sentir o peso da passagem do tempo. O herói não envelhece nunca, seu corpo simplesmente não degenera. A única forma de morrer é ser decapitado por um inimigo. Diante desse enredo fictício, o senso comum leva a pensar que um exército formado exclusivamente de Highlanders seria praticamente imbatível diante de uma armada equivalente de mortais.
Mas uma série de simulações computacionais feitas por um pesquisador brasileiro sugere que tornar-se senil pode ser uma vantagem evolutiva para uma população se o processo de seleção natural ocorrer num ambiente permeado por mudanças. Nessa situação, o grupo cujos membros podem ficar mais velhos tende a ganhar a luta pela sobrevivência e provocar a extinção do bando dos imortais. A explicação para a vitória da população que envelhece estaria em sua capacidade maior de se moldar a alterações no hábitat e gerar mais rapidamente linhagens adaptadas ao ambiente do que os competidores dotados de uma biologia imune aos efeitos da senescência.
O trabalho, cujos resultados são aparentemente paradoxais ou ao menos contraintuitivos, foi feito pelo físico teórico André Martins, da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH-USP). “Embora seja prejudicial aos indivíduos e tenha um custo evolutivo, o envelhecimento pode ser um benefício em si”, afirma Martins, que publicou o estudo, feito apenas por ele mesmo, sem colaboradores, em 16 de setembro do ano passado na revista científica PLoS ONE. “Ele permite que as novas linhagens se adaptem mais rapidamente a mudanças nas condições de vida.”
Nas simulações em que os indivíduos dos dois exércitos estavam expostos a alterações ambientais e mutações genéticas, o time dos mortais ganhou 39 de 50 batalhas contra os imortais. Essa supremacia não se manteve, no entanto, quando o cenário virtual em que ocorria a disputa era diametralmente oposto. Num ambiente estático e em que os grupos de indivíduos não sofriam alterações em seu DNA, os Highlanders venceram todas as contendas, em geral após disputas que se estenderam ao longo de 220 gerações. “Foram testadas diferentes intensidades de mutação e de mudança ambienal e também alteramos a idade da morte por senescência”, diz o físico da USP. “A vitória dos que envelheciam foi observada numa grande faixa de variação desses parâmetros, enquanto a dos imortais ocorreu em ambientes com mudança muito lenta ou inexistente.”
Na natureza, as condições em que as distintas populações ou espécies competem costumam mudar de tempos em tempos. Por isso, segundo Martins, os resultados de suas simulações favorecem a interpretação de que ficar mais velho pode ter sido uma vantagem adaptativa naturalmente selecionada pelo processo evolutivo. “Acredito que isso seja verdadeiro, embora contrarie a teoria estabelecida”, comenta o pesquisador americano Joshua Mitteldorf, teórico especializado em evolução e modelos computacionais da Temple University, da Filadélfia. “Nos últimos 50 anos, vários experimentos mostram que envelhecer é uma adaptação enquanto as teorias dizem que não pode ser.”
Genes ligados ao processo de envelhecimento parecem ser bem preservados em muitas espécies de animais. Em 2008, pesquisadores da Universidade de Arkansas aumentaram em 10 vezes o tempo de vida do verme C. elegans, um dos organismos-modelo da biologia, introduzindo uma mutação num único gene. Em vez de morrer após duas semanas, exemplares do nematódeo viveram seis meses, alguns até nove meses. Dietas à base de restrições calóricas também têm se mostrado úteis para aumentar a vida de algumas espécies em estudos laboratoriais. Essas evidências, mais o fato de existirem nos organismos mecanismos de morte celular programada, como a apoptose, costumam ser citadas pelos defensores da ideia de que a capacidade de se tornar senil foi uma característica escolhida pela seleção natural.
andré martins / plos oneAs principais teorias evolutivas sobre o envelhecimento das últimas décadas, no entanto, caminham no sentido oposto. Grosso modo, defendem a ideia de que a senilidade é uma espécie de efeito colateral, de custo a ser cobrado a longo prazo, em razão de ganhos obtidos durante a juventude. Por essa linha de raciocínio, os primeiros anos de vida seriam o momento crucial de uma espécie, quando ela está mais apta a se reproduzir e perpetuar seus descendentes. Como poucos indivíduos na natureza atingiriam a idade avançada em razão das pressões do meio, a seleção natural não teria privilegiado traços benéficos para a velhice.
Concebida em fins da década de 1950, a teoria da pleitropia antagonista sustenta, por exemplo, que genes benéficos na juventude, como os que aumentam a fertilidade, acabam sendo prejudiciais na idade mais avançada. Nesse caso, a senilidade seria uma dívida contraída em função de um benefício usufruído nos primeiros anos de vida. Mais recentemente, na segunda metade dos anos 1970, o biólogo inglês Tom Kirkwood, atualmente professor na Universidade de Newcastle, propõs outra teoria sobre o envelhecimento, a do soma descartável. Segundo esse ponto de vista, o organismo regula sua quantidade de energia e a canaliza prioritariamente para as funções primordiais das primeiras décadas de vida, como a reprodução. Reparar o organismo para que ele possa se manter por um longo período ficaria em segundo plano, pois a tarefa teria um custo muito elevado para o sistema metabólico. Dessa forma, haveria uma deterioração progressiva do indivíduo, levando ao envelhecimento.
Para testar a hipótese de que o envelhecimento pode ser uma vantagem adaptativa em si mesma, o físico André Martins construiu um modelo computacional com o software NetLog, que trabalha com uma linguagem de programação capaz de criar ambientes virtuais. As simulações são alimentadas por uma equação com variáveis que, de forma esquemática, regem uma disputa entre duas populações muito parecidas num cenário bidimensional fechado. Há apenas uma diferença entre os dois lados: num grupo, o dos imortais, os indivíduos não envelhecem nunca (portanto, não morrem por senilidade) e só podem ser eliminados por meio da competição interna ou por membros da população rival; no outro grupo, os indivíduos morrem em razão da competição e os que sobrevivem muito tempo a essa disputa vão tombar, mais dia, menos dia, pelo processo de envelhecimento.
A representação gráfica do cenário da disputa evolutiva é um quadrado composto por 2.600 pixels numa versão menor da simulação e 10.200 numa variação expandida. Os pontos são pintados de verde quando vagos, se não se encontram ocupados por nenhuma das duas populações. Ganham a cor azul se dominados pelo exército dos que envelhecem e adquirem tons vermelhos quando em poder do time dos Highlanders. Em cada pixel só há espaço para um membro, seja de uma ou de outra população. “Sempre que houver dois ou mais indivíduos num ponto, seja da mesma população ou do grupo adversário, apenas um deles vai sobreviver”, explica Martins. É literalmente uma luta de vida ou morte.
No início do jogo, as condições entre os dois lados são idênticas. Ambos começam com igual número de participantes, distribuídos aleatoriamente pelo campo de combate. As duas populações iniciam com a mesma capacidade de se adaptar ao ambiente, sofrem a mesma taxa de mutação entre as gerações e, ao longo do experimento virtual, vão se reproduzir no mesmo instante e a uma taxa idêntica. Cada indivíduo vivo vai gerar um descendente, que herda de seus pais a característica de ser mortal ou imortal. No time dos que envelhecem há ainda uma variável na equação responsável por provocar a morte dos indivíduos sempre que, por acaso, atingirem uma certa idade. No entanto, a maioria, mas não todos, sucumbe ao ambiente competitivo antes de ficar idoso e ter a chance de perecer por velhice.
Morte de velho acelera adaptação
Num ambiente não estático, em que as condições naturais mudam e as sucessivas gerações de uma população sofrem mutações genéticas, a dinâmica da disputa virtual criada por Martins tende a ser a mesma. Formam-se rapidamente dois tipos de bloco nas simulações, opondo batalhões de soldados vermelhos, os Highlanders, contra os combatentes azuis, o time dos que podem envelhecer. Nos primeiros estágios do jogo, a população vermelha se torna mais numerosa, com quase o dobro de membros, e parece sinalizar claramente que vai vencer a disputa. A vantagem dos Highlanders tem uma razão evidente: eles só morrem devido à competição, enquanto o outro lado perece pela pressão do meio e também por velhice.
Porém em quase 80% das simulações o time dos azuis conseguia virar o jogo e levar a outra população à extinção. A morte por velhice dos indivíduos mais antigos dessa equipe, sobretudo dos que estavam longe de zonas ocupadas pelo grupo adversário, abria mais espaços vagos no interior do território ocupado pelos azuis. O fenômeno parece favorecer o desenvolvimento de levas de indivíduos mais bem adaptados ao ambiente entre a população dos que podem envelhecer. “As novas gerações dos dois grupos adversários se adaptam às mudanças ambientais, mas esse efeito é mais rápido entre a população que pode envelhecer”, comenta Martins. É esse detalhe que a faria vencer a maioria das disputas, criando um paradoxo: envelhecer é ruim para o indivíduo, mas benéfico para um grupo.
No modelo computacional, a variável numérica que mede a taxa de adaptação média das duas populações tende a disparar entre os azuis num certo momento, deixando os vermelhos para trás. O programa pinta os agentes de cada exército em tonalidades proporcionais ao seu grau individual de adaptação ao meio. Quanto mais escura for a cor de um membro das duas populações, maior é o seu nível de adaptação ao ambiente. Para se certificar de que os mais aptos a vencer a luta pela vida se concentravam do lado dos mortais, Martins mandou ainda o programa colorir os membros dos dois grupos com a mesma cor, no caso verde. Dessa forma era possível ver que os soldados em tons mais escuros de verde, ou seja, os mais bem adaptados, eram indivíduos da população que envelhecia.
Interpretações de simulações devem ser feitas com cautela. Para o biólogo Diogo Meyer, da USP, especialista em evolução, é importante que os modelos tenham “liberdade” para explorar cenários diversos, mas também é crucial que estejam ancorados na realidade. “A variação de longevidade que existe entre as populações e quanto a seleção natural pode alterá-la são compatíveis com os parâmetros usados nas simulações?”, indaga Meyer. “Talvez tenhamos poucos dados disponíveis sobre isso, mas essa questão é um desdobramento natural dos resultados obtidos em modelagens.”
O físico teórico Roberto Kraenkel, especialista no uso de modelos matemáticos em biologia de populações da Univerdade Estadual Paulista (Unesp), faz uma ressalva técnica ao trabalho do colega Martins. Segundo ele, há uma variável na equação que rege a competição entre as duas populações, denominada d, cujo conceito lhe parece um pouco misterioso e vago. “Não ficou claro para mim que conceito biológico essa variável representa”, afirma Kraenkel. “Mas ela é fundamental para garantir o resultado final do modelo.” Martins admite que qualquer modelo não é perfeito e, claro, será sempre uma simplificação da luta pela sobrevivência das espécies. “A questão que eu queria responder era se o envelhecimento poderia ser uma vantagem adaptativa”, diz ele. “A simulação mostra que, em alguns casos, é possível que tenha sido assim.” Talvez seja por isso que ninguém nunca viu uma espécie parecida com o Highlander, que não envelhece nunca.
O Projeto
Bases teóricas para dinâmica de opiniões e aplicações em processos sociais da ciência (nº 2009/08186-0); Modalidade Bolsa no Exterior; Coordenador André Martins – EACH-USP; Investimento R$ 75.222,99 (FAPESP)
Artigo científico
MARTINS, A.C.R. Change and aging senescence as an adaptation. PLoS ONE. 16 set. 2011.