“Se Deus existe e tem sexo, certamente é mulher”, diz o biólogo Rodrigo Marques Lima dos Santos, entusiasmado ao ver o que os lagartos – ou melhor, os lagartos fêmeas – conseguem fazer.
Várias espécies de lagartos exibem formas surpreendentes de se reproduzirem. As fêmeas geram filhotes de modo assexuado, sem a participação de qualquer macho. São independentes, mas não são radicais: em algumas espécies, se um macho passa por perto, permitem a cópula e podem ser fecundadas. A autonomia reprodutiva chega a tal ponto que em algumas espécies só existem fêmeas, que se reproduzem de um modo assexuado conhecido como partenogênese, que parece ser mais flexível do que se pensava.
Biólogos da Universidade de São Paulo (USP), da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e do Laboratório Nacional de Biociências (LNBio), estudando diferentes aspectos da partenogênese, concluíram que alterações em um gene conhecido como c-mos poderiam permitir a transformação das células reprodutoras femininas (óvulos) em embrião, mesmo sem um espermatozoide.
Rodrigo Santos entrou na pista desse mecanismo em seu doutorado, enquanto estudava os lagartos teídeos, grupo que inclui espécies de 10 centímetros de comprimento até os teiús, de até um metro e meio de comprimento. Sem esperar, ele começou a ver mutações no gene c-mos em grupos com espécies partenogenéticas. Em 2008 ele começou a trabalhar com Andréa Balan, do LNBio, para modelar as formas da proteína produzida pelo c-mos nos lagartos e em cobras e, em conjunto, identificaram mutações em um dos quatro sítios ativos (pontos de interação) da proteína, reforçando as hipóteses iniciais.
O gene c-mos produz uma proteína que bloqueia o final da divisão celular do óvulo até a chegada do espermatozoide. A célula sexual masculina, ao fertilizar o óvulo, desativa a proteína, a divisão celular termina e um embrião se forma. A hipótese dos pesquisadores é que, quando sofre alterações, o c-mos não funciona direito e pode fazer com que o óvulo continue a se dividir, mesmo sem o espermatozoide. Eles acreditam que defeitos nesse gene poderiam atenuar o bloqueio da divisão do óvulo e permitir que outros estímulos, como hormônios, reativem a divisão celular.
Se avançar, esse trabalho poderá elucidar um dos mecanismos da partenogênese. Hoje mal se sabe como surgiram as espécies de lagartos capazes de se reproduzirem de modo assexuado – e menos ainda como elas adquiriram e mantêm essa habilidade. De acordo com a hipótese mais aceita, cobras e lagartos partenogenéticos podem ser resultado do cruzamento entre espécies próximas.
O Leposoma percarinatum, uma das espécies encontradas no Brasil, está mostrando o alcance desse labirinto genético. Os lagartos dessa espécie, reconhecida como partenogenética em 1952, têm no máximo cinco centímetros de comprimento e vivem entre folhas nas matas de uma região ampla – da Venezuela até o norte do estado de Mato Grosso, dos Andes até o leste do Pará. Uma hipótese apresentada nos anos 1970 sugere que o L. percarinatum seria o resultado do cruzamento entre duas espécies diferentes, Leposoma guianense e L. parietale, encontradas em florestas úmidas da América do Sul.
Katia Pellegrino, da Unifesp, e Miguel Rodrigues, da USP, encontraram uma situação inusitada: as fêmeas de Leposoma percarinatum eram praticamente iguais por fora, mas apresentavam uma espantosa diferença do ponto de vista genético. Algumas fêmeas, as diploides, tinham 44 cromossomos (dois conjuntos iguais de 22 cromossomos) em cada célula, enquanto as triploides tinham 66 cromossomos (três conjuntos de 22).
“Dentro do que se supunha ser uma mesma espécie existem duas linhagens diferentes, que nos permitirão reconstruir sua história e seus mecanismos de origem”, Katia concluiu. Para ela, a variedade triploide deve ter surgido de outro evento de hibridização entre a forma diploide de L. percarinatum e L. osvaldoi, já que L. guianense não ocorre tão ao sul do país.
Às vezes surgem bichos que desfazem as explicações que estavam se formando. De uma viagem ao arquipélago de Anavilhanas, no rio Negro, Rodrigues trouxe exemplares de Leposoma guianense, e alguns indivíduos que se revelaram pertencer a um novo clone de Leposoma percarinatum e outros diferentes a ponto de representarem uma nova espécie, que ganhou o nome de Leposoma ferrerai – todos diploides, vivendo no mesmo espaço.
O calango da restinga, ou Cnemidophorus nativo, uma das poucas espécies exclusivamente partenogenéticas de lagartos brasileiros – e ameaçada de extinção –, é apenas diploide, de acordo com as análises de Santos. Encontrados nas matas do norte do Espírito Santo e do sul da Bahia, esses animais pertencem a uma família irmã à dos Leposoma, mas podem chegar a 30 centímetros de comprimento. Segundo Santos, outras espécies partenogenéticas que vivem na Amazônia, como Cnemidophorus lemniscatus e Gymnophthalmus underwoodi, parecem mesclar populações diploides e triploides.
Os biólogos trabalham com a possibilidade de a partenogênese não formar apenas clones da mãe, mas também permitir alguma variabilidade genética, embora menor que a da reprodução sexuada, por meio da recombinação entre os cromossomos do óvulo. “Um estudo recente mostrou que uma cobra, por partenogênese, gerou um filhote albino, indicando que há, sim, recombinação genética mesmo na reprodução assexuada”, argumenta Santos. “A origem espontânea da partenogênese, uma hipótese alternativa à teoria híbrida, não pode ser descartada em Leposoma e Cnemidophorus, uma vez que esse mecanismo já foi sugerido para exemplares de Gymnophthalmus underwoodi de Roraima”, acrescenta Katia.
Abraço indispensável
Santos cogita que o Cnemidophorus nativo possa ter um comportamento similar ao dos lagartos do gênero Aspidoscelis. Encontrados em regiões desérticas da Ásia e América do Norte, os Aspidoscelis só começam a formar embriões depois de um abraço, que os biólogos chamam de pseudocópula. Uma delas, detectando o toque ou o raspão da outra, deve ativar a liberação de hormônios que desbloqueiam o c-mos, acreditam os biólogos da USP.
“Para algumas espécies partenogenéticas do gênero Aspidosceles se reproduzirem”, comenta Santos, “a cópula entre as fêmeas é obrigatória”. David Crews e Jon Sakata, da Universidade do Texas, Estados Unidos, mostraram em 2000 que as fêmeas abraçadas apresentavam um ciclo hormonal inverso, uma com altos níveis de estrógeno, hormônio mais abundante nas fêmeas, e outra com altos níveis de testosterona, produzida mais intensamente pelos machos.
Em 2011, pesquisadores da Universidade de Kansas, Estados Unidos, conseguiram induzir a hibridação e confirmar que a reprodução sexuada pode formar uma espécie partenogenética ao cruzarem duas espécies de Aspidosceles. Fazer uma fêmea partenogenética se reproduzir em laboratório, sozinha ou sob o aconchego de outra fêmea, porém, permanece um dos sonhos dos biólogos.
Entre as 5.634 espécies de lagartos já identificadas, cerca de 40 são partenogenéticas – e geralmente vivem em regiões de florestas tropicais ou de climas desérticos da Ásia ou Oceania. “A reprodução por partenogênese resulta em uma variabilidade genética menor que a reprodução sexual, mas pode ser uma resposta adaptativa de sobrevivência a ambientes extremos”, comenta Yatiyo Yassuda, geneticista especializada em genética de lagartos que acompanha o estudo sobre as possíveis origens da partenogênese.
Na década de 1980, Yatiyo enfrentou um problema semelhante e, a muito custo, conseguiu convencer outros geneticistas de que os lagartos do gênero Tropidurus apresentavam diferenciação sexual – os machos tinham um cromossomo diferente do das fêmeas, mas, de tão pequeno, era quase imperceptível. Muitas espécies de lagartos apresentam o mesmo conjunto de cromossomos e se diferenciam sexualmente por meio de genes desconhecidos ou da variação de temperatura enquanto se desenvolvem – se mais alta, pode favorecer o desenvolvimento de embriões machos em algumas espécies ou fêmeas, em outras.
A sala de Yatiyo, onde Santos conta de seu trabalho, exibe algumas pinturas de flores, algumas figurativas, outras abstratas. “Esse foi o começo. Já pintei mais de 300 quadros depois que me aposentei”, diz ela, imaginando o sol que pretendia pintar no dia seguinte, um sábado. “Mas ainda venho para cá todos os dias.”
Clonagem induzida
“A partenogênese meiótica é uma forma de clonagem natural com algumas semelhanças à clonagem induzida para reprodução de animais de interesse comercial”, observa. Em 2004, pesquisadores da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Jaboticabal indicaram que o etanol e o elemento químico estrôncio podem induzir os óvulos de vacas a seguir a divisão celular, funcionando como um estímulo externo análogo à célula sexual masculina.
Do mesmo modo, os óvulos de animais experimentais como a ovelha Dolly só se desenvolveram depois de terem recebido um choque elétrico, que deve desativar o c-mos. Santos acredita que a partenogênese, se puder ser regulada, poderia ajudar na pecuária ou na conservação de espécies silvestres em risco de extinção. “Os mamíferos têm mecanismos que evitam a partenogênese, como o imprinting”, observa. Outra aplicação seria médica, já que mutações nesse gene poderiam fazer os óvulos se dividir sem controle, originando tumores.
Se avançarem, os biólogos talvez encontrem respostas novas para duas perguntas básicas da biologia. A primeira: para que serve o sexo? A outra: qual a vantagem da reprodução sexuada? Segundo Santos, a reprodução sexuada exige que dois organismos se encontrem para formar filhotes, enquanto na partenogênese apenas um organismo já é o bastante para gerar outro. E nem sempre a variabilidade genética trazida pela reprodução sexuada é benéfica para as espécies, argumentam os biólogos.
“A reprodução sexuada é melhor para ambientes em transformação, com alto risco de predação e doenças, mas é ruim em ambientes estáveis e populações saudáveis, pois um indivíduo bem adaptado pode formar filhotes mal adaptados”, diz ele. “Em ambientes estáveis, a reprodução clonal, como se faz com animais de criação e plantas, resultando em filhotes com rendimento ótimo, é a mais indicada.”
Os Projetos
1. Sistemática e evolução da herpetofauna neotropical (nº 2003/10335-8); Modalidade Projeto Temático; Coordenador Miguel Trefaut Rodrigues – USP; Investimento R$ 975.589,35.
2. Diversidade genética em espécies unissexuais e bissexuais de Cnemidophorus do grupo Ocellifer (Teiinae) e caracterização estrutural da proteína Mos nos Squamata (nº 2008/56444-6); Modalidade Bolsa de Pós-doutorado; Coordenador Rodrigo Marques Lima dos Santos – USP; Investimento R$ 277.872,66.
3. Estudos citogenéticos e moleculares em lagartos microteídeos (Squamata, Gymnophthalmidae) com ênfase em espécies do gênero Leposoma das florestas amazônica e atlântica (nº 1998/05289-7); Modalidade Bolsa de Pós-doutorado; Coordenador Katia Cristina Machado Pellegrino – Unifesp; Investimento R$ 37.720,00.