DIVULGAÇÃOO som ao redor, filme de custo modesto, realizado fora do eixo Rio-São Paulo e sem atores que frequentam os horários nobres da TV, conseguiu duas façanhas: levar 100 mil espectadores aos cinemas e mobilizar de forma notável o pensamento crítico brasileiro, gerando significativa fortuna crítica.
O cineasta pernambucano Kleber Mendonça, que assina a direção do filme e escreveu seu complexo (e lacunar) roteiro, é filho de uma historiadora e professora universitária. Enquanto a mãe desenvolvia pesquisas acadêmicas e aprofundava-se nos estudos de Casa grande & senzala, ele assistia a filmes e mais filmes. Graduou-se em comunicação, na Universidade Federal de Pernambuco, e tornou-se crítico de cinema.
O som ao redor vem gerando uma notável fortuna crítica, comparável às verificadas quando do lançamento de Terra em transe (Glauber Rocha, 1967), Cronicamente inviável (Sérgio Bianchi, 2000), Cidade de Deus (Fernando Meirelles, 2002) e Tropa de elite 1 e 2 (José Padilha, 2007 e 2010). O filme de Kleber saiu do gueto cinematográfico e enfrenta questões como a luta de classes, a fúria predatória da especulação imobiliária, o racismo à brasileira e a presença de milícias na prestação de serviços a cidadãos acuados pelo medo.
A narrativa tem seu início num dia comum, numa rua de classe média da capital pernambucana. “Seria mais um dia como outros”, lembra Kleber, “se uma milícia não chegasse ao local para oferecer a paz de espírito apregoada por seguranças particulares”. Só que a presença dos milicianos, “se traz tranquilidade para uns, traz também tensão para outros, numa comunidade que parece temer muita coisa”.
Ismail Xavier, professor de cinema da Universidade de São Paulo (USP), entusiasmou-se com o primeiro longa ficcional de Kleber Mendonça. Para ele, “o filme trabalha motivo reiterado no cinema pernambucano recente, que é a relação entre passado e presente, ou as camadas de tempo que se acumulam na experiência contemporânea em nossa modernização incompleta, conduzindo de forma extraordinária a encenação da vida de um bairro de classe média alta do Recife”.
Xavier, autor de Alegorias do subdesenvolvimento: Cinema Novo, Tropicalismo e Cinema Marginal, ressalta que “falar em permanência do passado no presente, em O som ao redor, é também cotejar o rural e o urbano ou a presença das tradições patriarcais de mando e coronelismo na vida da cidade atual, com aquele painel de personagens e situações que, de início, parecem compor fragmentos, flagrantes de uma vida de bairro que se acumulam sem forte conexão narrativa, mas a partir de um domínio da mise-en-scène e de notável trilha sonora”.
Para o professor da USP, “o essencial é que a rarefação, o escoamento do tempo, em O som ao redor, permeia o percurso e otimiza a relação entre fragmentação, abertura e movimento rumo a um desfecho. Num momento em que finais abertos, com interrogações, já viraram uma convenção, o gesto de Kleber é contracorrente, atando o prólogo e a última cena como um retorno do reprimido”.
O pesquisador se pergunta por que o filme gerou fortuna crítica tão significativa. “De um lado”, fala Ismail, “visto dentro da produção brasileira, O som ao redor desloca a tônica do debate sobre a violência e as mazelas urbanas, em geral associadas à crise da família e focalizando uma juventude “sem pai” cuja condição social induz à entrada no crime organizado (e aqui, com certeza, é preciso que nos lembremos de filmes como Cidade de Deus, entre outros)”.
Ao contrário do filme de Fernando Meirelles, “o de Kleber devolve a questão da violência ao autoritarismo da tradição patriarcal, de modo que não se trata de ‘culpar’ a urbanização selvagem porque dissolve a família, mas dar ênfase a outro ângulo do problema: mostrar que ele está na tradição familiar dos de cima, que sobrevive”.
Xavier lembra que o filme de Kleber traz síntese em que o passado no presente, o campo na cidade, o paradigma patriarcal e as questões de classe se articulam de modo a nos animar a uma recapitulação do percurso desse cinema nesses quase 20 anos. “Uma das forças de O som ao redor é, justamente, gerar este movimento retrospectivo, coisa que só obras notáveis são capazes de fazer”, afirma o pesquisador.
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