Segundo o Mapa das religiões, divulgado recentemente pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), o número de pessoas que se declararam umbandistas se resume a 0,23% da população brasileira. Em 1980 já era minguado 0,6%, passando para 0,5% em 1991 e 0,3% em 2000, segundo o IBGE. Quais as consequências desse abalo demográfico na umbanda, dita a primeira religião efetivamente brasileira? “Que o catolicismo caísse cada vez mais era esperado. Mas a umbanda, a ‘religião brasileira’ por antonomásia, mestiça de índio, negro e europeu, prosopopeia consumada de nossa miscigenação constitutiva que os cientistas sociais consideraram como forma religiosa plenamente ajustada, posto que sincrética à realidade brasileira, mesmo a mais urbana e modernizada, é um fenômeno que dá o que pensar. Fico encabulado com o declínio censitário da umbanda, o ‘Brasil brasileiro’ indo para o ralo”, analisa Flávio Pierucci, sociólogo da Universidade de São Paulo (USP) e autor de A religião como solvente (2006). Nas páginas finais de As religiões africanas no Brasil (1958), Roger Bastide já alertava para “as ameaças que pairam sobre a umbanda”, sem a qual não há mais defesa segura contra as tensões e conflitos peculiares à sociedade de classes. As comunidades umbandistas não mais seriam “nichos”. Nelas, os valores de um sagrado corrompido apenas refletiriam os dilaceramentos da sociedade inclusiva. Nem tudo o que é mágico se dissolve no ar: o que estamos perdendo com a fragilização da umbanda?
“A história cultural brasileira pode ser aprendida e apreendida não apenas em livros de história, mas também em terreiros de umbanda. A umbanda reinterpreta os valores, as visões históricas e os acontecimentos nacionais, dialogando com a realidade. As classes de pertença de seus espíritos refletem também grupos que geralmente sofrem ou sofreram exclusão social, uma marca de resistência e preservação de um modo de dialogar com a realidade social de forma a articular, pelos rituais, a inclusão social”, afirma o psicólogo José Francisco Miguel Henriques Bairrão, docente de psicologia social na USP, onde coordena o Laboratório de Etnopsicologia, que estuda fenômenos ligados à umbanda, como o transe umbandista, ato enunciativo em que se condensam reminiscências pessoais e sociais. “Portadoras de vozes ancestrais inconscientes, essas memórias, uma vez resgatadas, podem distribuir benefícios psíquicos e simbólicos aos seus herdeiros”, lembra o pesquisador. Segundo Bairrão, o panteão umbandista é constituído por personagens que assinalam a necessidade no passado (memória coletiva), bem como, em muitos casos, ainda no presente, de atenção e de inclusão, visão bastante distante da “teologia da prosperidade” da Igreja Universal, que vê nela uma rival a ser dizimada como a religião do diabo e do mal.
A particularidade religiosa da umbanda, diz o autor, nem africana nem cristã, pode ser a expressão de um patrimônio cultural pujante e digno da realidade social brasileira. Ela comporta processos de inclusão social e pode ser um meio de elaboração de experiências sociais traumáticas para significativos grupos sociais brasileiros. Para Bairrão, o estudo do imaginário popular religioso da umbanda, além de permitir a obtenção de subsídios para o conhecimento da realidade social e psíquica brasileira, pode ajudar o desenvolvimento de estratégias éticas para o trabalho com comunidades e a consolidação de um método empírico de estudo da alteridade, como analisa em sua pesquisa Imagens e signos no corpo da umbanda, financiada pela FAPESP. Para o pesquisador, a umbanda é ainda uma oportunidade excelente para refletir formas sociais e alternativas de resistência étnica e cultural.
“Ela oferece uma ocasião ímpar para aprender com os setores populares a relativizar o psicologismo e o individualismo, consagra o humano, pondo no seu panteão a totalidade de suas sutilezas, agradáveis ou não, um testemunho de uma ética singular, de vocação universal que propõe um sentido de inclusão psicológica e social, politicamente indócil a tentativas históricas e teóricas de manipulação”, avalia. Por todas essas características, a umbanda seria um lugar de excelência para abrigar as minorias despossuídas, em especial os negros, ainda que, como observa Pierucci, “afirmativamente afro e marcantemente popular, ela não se fechava etnicamente em sua negritude, mas se oferecia brasileiramente a todos os brasileiros”. Os números provam o oposto: os negros convertidos ao pentecostalismo se mostram em proporção muito maior (14,2%) do que os que se dizem adeptos das religiões dos orixás (3%). Já o Censo 2000 revelava que havia no Brasil cerca de 2 milhões de negros evangélicos diante de menos de 100 mil negros declarando-se adeptos dos cultos afro-brasileiros (66.398 na umbanda e 29.123 no candomblé). Estudar a umbanda e entender esses mecanismos torna-se, então, uma necessidade. “O crescimento aparentemente irrefreável das conversões às igrejas pentecostais e neopentecostais de raiz protestante está aí para mostrar que hoje no Brasil vivenciar uma religião implica romper com o próprio passado religioso. Nessas rupturas com mundos religiosos que antes pareciam bastar, mas de repente não mais, os adeuses são muitos. Entre eles, o adeus ao sincretismo umbandista que se supunha aderido com homóloga perfeição à identidade cultural brasileira”, avalia Pierucci. “Essa demonização dos orixás funciona, porque as pessoas têm medo. Com pastores sistematicamente na televisão ou no rádio dizendo que aquilo é o demônio, realmente as pessoas começam a achar que existem religiões demoníacas no Brasil.”
Do apogeu à queda, passaram-se poucos anos para a umbanda. Para os seguidores da religião, a primeira manifestação da umbanda sem vínculos com o kardecismo ou com o candomblé ocorreu em São Gonçalo, no Rio, em 15 de novembro de 1908. Nesse dia, na Tenda Nossa Senhora da Piedade, o médium Zélio Fernandino de Moraes, então com 17 anos, recebeu o Caboclo Sete Encruzilhadas. Estava fundada a religião e o primeiro terreiro de umbanda, oficialmente reconhecidos dali em diante. Religião recente desenvolveu-se nos anos 1920, quando kardecistas de classe média, atraídos pelos espíritos de caboclos e pretos-velhos que se incorporavam nos terreiros de macumba cariocas, assumiram a liderança. Imediatamente extirparam dos cultos os rituais mais “primitivos” capazes de mexer com os pruridos das classes médias, moralizaram os “guias”, educando-os nos princípios da caridade cristã em leitura kardecista, racionalizaram as crenças e organizaram as primeiras federações que associaram terreiros até então fragmentados.
Já nas décadas de 1930 e 1940 começava a se disseminar pelo tecido urbano mais moderno do país, o das cidades grandes da região mais desenvolvida, o Sudeste. A perspectiva da construção de uma identidade nacional esteve sempre à mão entre os intelectuais, pelo menos desde a República, o que desde logo favoreceu toda uma boa vontade com a umbanda. Em 1941 chegaram a realizar o Primeiro Congresso Nacional de Umbanda, para afastar de vez o estigma da “macumba”. Nos anos 1960, os esforços foram recompensados e a religião foi reconhecida oficialmente no censo nacional. Festivais de umbanda começaram a ser incluídos nos calendários oficiais e nos anos 1970 era a fé de maior crescimento com uma população estimada em 20 milhões de fiéis. O refluxo iniciou-se na década de 1980 e não parou mais, em sintonia com o crescimento das seitas pentecostais. Essas se desenvolveram na esteira da crise metropolitana das últimas décadas, ocupando o espaço dos terreiros nas periferias. “Com o aumento da pobreza, as pessoas ou se apegam a religiões de práticas mais intensas, como as pentecostais, ou perdem a esperança e viram sem religião”, explica o antropólogo Ronaldo de Almeida, pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).
A “teologia da prosperidade” da Igreja Universal fez do pobre um ator econômico e o tornou responsável por sua salvação. A umbanda, por sua vez, trabalha em registros mais “engajados” socialmente. “A justiça, vista pela ótica dos subalternos, dos despossuídos, marginalizados ou precariamente dispostos nos lugares sociais, aparece como um fundamento moral da prática mágica umbandista”, observa o sociólogo Lísias Nogueira Negrão, autor de Umbanda: entre a cruz e a encruzilhada (1998).
Segundo o pesquisador, esta moralidade particular, que legitima a punição dos maus por suas vítimas, está distante da moralidade vigente burguesa. “Antes, é uma moral baseada no sentimento de justiça daqueles que vivem num meio competitivo, sem meios materiais necessários para enfrentar a luta cotidiana e superar os problemas. É uma ética pragmática, que não opõe valores abstratos às relações concretas restritivas, mas que as reconhecem e aceitam como são: cobranças e demandas.” Uma forma de ver o mundo que dá armas para seus “rivais”, colocando a religião em risco pela sua “demonização”.
Sem dúvida, nota Bairrão, em compromissos com estratégias de disfarce perante o dominante, os Exus e Pombagiras associam-se às trevas, não apenas de forma metafísica, mas, acima de tudo, nas facetas sociais e políticas. Os Exus comportam a função de dar cidadania ao recalcado, de simbolizá-lo miticamente, do ponto de vista psicológico e social. Assim, se o reino da “esquerda” da umbanda (dos espíritos “sem luz”) guarda o escondido, é igualmente indócil às tentativas de dominação. Para o pesquisador, a umbanda, ao fazer seus adeptos lidarem com lados mais obscuros, reforça sua força libertária de ensinar o funcionamento dos aspectos sociais e coletivos menos exibíveis e, por isso, mais verdadeiros. “A ‘esquerda’ umbandista não é o mal metafísico, mas o pessoal e socialmente ‘mal dito’: a sensualidade, a revolta, a crítica mordaz, as falas inconvenientes, a falta de hipocrisia e o prazer sem mordaças. É a guardiã de um bem precioso: a liberdade, encarnando um sentido social de resistência e vitalidade”, explica. Nesse contexto, os Exus não são maus, embora possam ser (mal) vistos, a resposta ao mal como expropriação de si em prol de um bem do outro.
Esse incentivo à “ação” está presente no cotidiano dos adeptos, mesmo em suas relações amorosas, como revela a pesquisa da antropóloga Kelly Hayes, da Universidade de Indiana, que acaba de lançar nos EUA Holy harlots: femininity, sexuality, and black magic in Brazil (University of California Press), um estudo sobre Pombagiras. “Elas são a corporificação da feminilidade transgressora, que é ao mesmo tempo desejável e mortal, o ‘lado negro’ do feminino. Talvez em nenhum outro lugar além do Brasil essa figura foi imbuída com o poder de vingar e cuidar”, diz Kelly. Segundo ela, a entidade é venerada pela população das classes trabalhadoras dos centros urbanos, em particular por mulheres e homossexuais. “Aqueles que recebem a Pombagira na possessão de um transe, sejam homens ou mulheres, são transformados por um tempo em rainhas ultrafemininas, sedutoras e prostitutas desbocadas. Sob o ‘disfarce’ da Pombagira, os possuídos ganham o poder das demandas sobre amantes e marido, alterando eventos sobre os quais, sem a entidade, teriam pouco ou nenhum controle”, conta.
“Acredita-se que a Pombagira tenha uma experiência de vida muito rica e seus conselhos são valorizados pela compreensão de desejos e fantasias”, analisa o sociólogo Reginaldo Prandi, autor de Pombagira e as faces inconfessas do Brasil (1996). “Ela abre acesso aos instintos e desejos inconfessos e seu culto revela o lado ‘menos nobre’ da concepção popular de mundo, uma negação do estereótipo do brasileiro cordial. Com a Pombagira é guerra.” Não se trata, porém, de “coisa do diabo”. “A umbanda reconhece o mal como parte da natureza humana e o descaracteriza como maldade, pois é uma religião de liberação, e não do acobertamento das paixões humanas como os pentecostais”, analisa. Por isso, a pesquisadora acredita que o Exu feminino se adaptou muito bem ao país. “As brasileiras sofrem a pressão de ser, ao mesmo tempo, sexualmente atrativas e castas. Muitas mulheres internalizam esse conflito e sofrem por não saber como dar conta dele”, diz Kelly. Segundo a americana, esse dilema leva tanto à obsessão nacional pela cirurgia plástica, como à devoção da Pombagi-ra pelos populares. “Para quem não pode pagar um analista, a Pombagira permite que se possa conviver com impulsos e desejos não socialmente aceitáveis em seu meio.”
Assim, o transe daria “licença” para donas de casa fazerem coisas impensáveis em seu cotidiano, além de dar forças para desafiar maridos infiéis e violentos. Seria a Pombagira que exerceria a vingança. “A umbanda legitima para a mulher um mundo que rompe com as normas dominantes e dá uma linguagem moral e um repertório ritual que facilita para ela articular esses significados alternativos”, diz Kelly. Forma-se um “triângulo” entre mulher, Pombagira e marido, que se submete em face da nova força da esposa, redefinindo relacionamentos. “Isso permite às mulheres negociarem convenções patriarcais de gênero e sexualidade que as relegam a um lugar subordinado ao homem, limitando o poder feminino à esfera doméstica e estigmatizando a sexualidade da mulher, enquanto ao homem tudo se permite.” A figura da Pombagira mexeu com a cabeça dos homens, mesmo os intelectuais. “Foi a etnóloga Ruth Landes, em 1940, que assinalou pela primeira vez a presença de relações de gênero transgressoras nos cultos de possessão, com a formação de ‘matriarcados’ e uma maior exibição de homossexuais masculinos nos terreiros”, conta a antropóloga da Unicamp Patricia Birman, autora de Transas e transes: sexo e gênero nos cultos afro-brasileiros (2005). Até então, as casas de santo eram cuidadosamente preservadas por pesquisadores como Bastide e Arthur Ramos, vistas como uma harmonia social e moral que precisava ser defendida, uma visão politicamente correta que pretendia rebater o estigma dessas comunidades, que deveriam ser elevadas a um padrão que não assustasse os “brancos” e suas famílias.
O projeto |
Imagens e signos no corpo da umbanda – nº 2007/04368-1 |
Modalidade |
Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa |
Coordenador |
José Francisco Bairrão – USP |
Investimento |
R$ 55.670,00 (fapesp) |
“O horizonte moral orientava os estudiosos a valorizar a face reprodutiva das identidades femininas e a excluir os aspectos desviantes. O ideal da maternidade e a adequação às relações de gênero faziam das mulheres desses terreiros um tanto assexuadas, subordinadas à vida em família e à hierarquia patriarcal”, nota Patricia. Mulheres poderosas e homossexuais masculinos e femininos construíam famílias de santo, que seus defensores, intelectuais da elite brasileira, olhavam repetidamente com candura e romantismo, apagando diligentemente as marcas (em grande medida corporais), bem evidentes, em que sexo, gênero e poder tão facilmente se reuniam.” O quadro analítico só se modificou a partir de 1968. Mas nesse meio-tempo as Pombagiras continuavam a remexer o imaginário feminino. “Elas mudaram as relações de poder nas relações afetivas e sexuais. Afinal, o aliado invisível dá proteção e poder ao ‘cavalo’, cujo homem não tem as mesmas mediações espirituais. Ele se submete e se vê obrigado a um pacto com o ser invisível”, analisa a antropóloga Stefania Capone, autora de A busca da África no candomblé: tradição e poder no Brasil (Pallas). Reitera-se a marca “ativa” da umbanda e, ao mesmo tempo, sua faceta mais frágil diante dos ataques.
“No Brasil atual, um dos aspectos mais salientes da ‘força social’ que ainda tem um tipo determinado de religião está justamente na sua capacidade estatisticamente comprovada de dissolver antigas pertenças e dilapidar linhagens religiosas estabelecidas. Um bye, bye, Brasil!”, analisa Pierucci. Uma religião que, afirma, é destrutiva, predatória e que, de salvação individual, só cresce ao extrair membros das outras coletividades, que, uma vez individualizados, são engajados na criação de uma comunidade que só oferece laços religiosos. “Quer um solvente cultural universal? Pegue uma religião de tipo congregacional, receita Weber. ‘Pegue e pague’, hão de acrescentar nossos neopentecostais.”
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