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Física

A Gênese do DNA

Modelo matemático descreve a competição entre moléculas que permitiu o surgimento dos seres vivos na Terra

Miguel BoyananO caminho sem volta da catraca de Müller: uma forma de entender como as mutações se acumulam em um organismoMiguel Boyanan

Ícone da ciência moderna, a molécula de DNA é a única sobrevivente de uma luta que durou milhões de anos. Inconfundível em seu formato de dois cordões enrolados entre si, emergiu de uma intensa competição com outras estruturas químicas capazes de copiarem a si mesmas. Só triunfou porque, entre elas, houve cooperação – ou altruísmo, usando um termo emprestado da antropologia. As moléculas mais refinadas, que conseguiam ganhar tempo copiando-se por meio de enzimas, um tipo de proteína, auxiliavam, provavelmente de modo involuntário, as mais primitivas, que geravam réplicas de si mesmas por métodos mais demorados. As inteiramente egoístas, por alguma razão incapazes de prestar ajuda, simplesmente desapareceram. Só depois de encerrado o processo de seleção entre os participantes cada vez mais aptos é que começaram a se formar os primeiros organismos na Terra, há prováveis 4,5 bilhões de anos.

A reconstituição dos bastidores da vida no planeta com este novo ingrediente, a cooperação entre moléculas, resulta do trabalho realizado não por um químico ou biólogo, como se poderia esperar, mas por um físico, o gaúcho José Fernando Fontanari, do Instituto de Física de São Carlos (IFSC) da Universidade de São Paulo (USP). Há sete anos, ele suspeitou que as fórmulas que apresentava a seus alunos de mecânica estatística não serviriam apenas para descrever os modos pelos quais os átomos reagem uns com os outros. Se vistas como um modelo de interação entre partículas, talvez solucionassem problemas mais abrangentes, que os biólogos tratavam apenas de modo conceitual, provavelmente por se sentirem pouco à vontade com equações e modelos matemáticos.

A intuição estava certa. Em dois artigos recentes, publicados em outubro e novembro de 2002 na Physical Review Letters, Fontanari descreve matematicamente como começou e transcorreu o processo de seleção que levou a uma única molécula vencedora, o DNA, cuja elegante estrutura foi descoberta há exatos 50 anos, como resultado de um trabalho conjunto entre físicos e biólogos, e hoje é conhecida a ponto de nem mais ser preciso lembrar que se trata da sigla do ácido desoxirribonucléico.

Ao aproximar a física da biologia, Fontanari resolveu alguns paradoxos lançados há 30 anos pelo químico alemão Manfred Eigen (Nobel de Química de 1967). Eigen havia criado a teoria dos replicadores, moléculas que conseguem copiar a si próprias e hoje, em sua versão mais refinada, o DNA, guardam informações que iniciam o processo de produção de proteínas, indispensáveis para a formação de todas as partes dos seres vivos. Capaz de atrair fragmentos menores que, unidos, resultariam numa cópia dele mesmo, o primeiro replicador surgiu casualmente. “Foi um acidente histórico”, diz Fontanari. Mas bastou para mudar o padrão de produção de moléculas, antes formadas por simples agregação de blocos, como se fossem peças de Lego se juntando ao acaso.

Se dependesse desse primeiro replicador, a vida não teria futuro na Terra. Por ser pequeno, não podia guardar informação suficiente para iniciar a fabricação de proteínas. Conseguia copiar-se, atuando como molde para si próprio, mas o processo ainda era lento e sujeito a erros, que se tornavam mais freqüentes à medida que crescia. “Quanto maior a molécula, mais difícil e demorado é fazer uma cópia dela mesma”, diz o físico, apoiado em comprovações experimentais. “A probabilidade de o primeiro replicador fazer uma cópia perfeita dele mesmo era praticamente nula.”

Salto estratégico
Houve outro acidente histórico algum tempo depois. Inaugurando o terceiro padrão de confecção de moléculas, que persiste até hoje, os descendentes do primeiro replicador, já diferentes em relação ao original por causa dos erros acumulados, conseguem criar moldes intermediários – eis as enzimas, um tipo de proteína que acelera as reações químicas. Com elas, o replicador ganha tempo, evita erros e gera mais cópias dele mesmo. Está também mais protegido dos ataques de outras moléculas, uma situação próxima à encontrada em alguns tipos de vírus, nos quais uma molécula atua como capa para o material genético.

Eigen, ao formular essa tese, notou que havia algo estranho, que mais tarde ficou conhecido como paradoxo do altruísmo. Ao criar uma enzima, em vez de simplesmente continuar se copiando, a molécula mutante, que inicia essa nova geração de replicadores, faz algo que não seria usado só por ela, mas beneficiaria também os replicadores que ainda se copiavam por molde. “Eigen resolveu os problemas de complexidade química da origem da vida, mas não percebeu que, desse modo, haveria altruísmo entre as primeiras moléculas mais evoluídas da Terra”, comenta Fontanari. O biólogo inglês John Maynard Smith, da Universidade de Sussex, Inglaterra, repudiou essa idéia por achar que seria impossível haver altruísmo entre moléculas.

Examinando o impasse, Fontanari concluiu que esse novo replicador tinha um preço a pagar por sua nova habilidade: não poderia se copiar enquanto criasse a enzima. É a mesma situação pela qual passa um operário que ganha de acordo com o número de tampinhas de garrafas que ele fecha manualmente. Poderá pôr as tampinhas mais rapidamente se construir uma máquina, mas, enquanto a constrói, não consegue cumprir a meta de produção e ganha menos que seus companheiros, para quem o trabalho manual é inevitável.

Diante das moléculas egoístas, que não haviam parado de gerar cópias delas próprias nem tinham perdido tempo criando enzimas, a molécula replicadora via-se em desvantagem e, portanto, corria risco de extinção. Só não estaria em maus lençóis se a enzima agisse somente para ela – algo improvável com a bioquímica da época. Desse modo, a proteína vai auxiliar outros replicadores, que usufruem de suas vantagens sem custo algum.

Isolamento e mistura
Surgiu, porém, um impasse. “O estudo matemático da dinâmica de evolução desses dois tipos de replicadores competindo pelos seus blocos formadores mostra que os replicadores enzimáticos não podem invadir nem tampouco co-existir com a população de replicadores tipo molde”, comenta o físico. “Mas sabemos que a invasão deve ter ocorrido, pois os replicadores atuais são do tipo enzimático.” Como sair dessa e explicar o altruísmo, uma aparente desvantagem? Fontanari resolveu a charada ao mostrar, matematicamente, que o replicador enzimático consegue sobreviver, ainda que sendo generoso com os companheiros e lhes emprestando sua preciosa enzima, desde que esteja confinado num espaço restrito ou não possa se mover muito, de modo que a enzima se mantenha próxima à molécula-mãe.

As equações conferem com uma hipótese de aceitação crescente entre os biólogos, segundo a qual a vida teria surgido em fendas de rochas, partículas de lama ou gotas d’água, que beneficiam o confinamento das moléculas. Outro ponto que reforçou a tese é que agora não se fala mais que os primeiros replicadores teriam surgido numa mistura, a sopa primordial, mas em espaço plano, semelhante a uma pizza – algo como a superfície de uma pirita, mineral à base de óxido de ferro, o mais cotado para abrigar as formas antigas de vida. Passando de um espaço de três para um de duas dimensões, as reações químicas ocorreriam mais facilmente.

Ainda não era o bastante. Se ficassem isolados, os replicadores enzimáticos, por serem altruístas, seriam eliminados pelos outros, os egoístas. Por essa razão, Fontanari argumenta que, além do confinamento, é preciso que ocorra mistura entre os grupos de moléculas. “Devido às marés ou ao vento, os grupos se misturam periodicamente e se redistribuem de forma aleatória nos compartimentos”, diz.

“Nessa redistribuição, clones dos replicadores enzimáticos, mais numerosos por conseguirem se copiar mais rapidamente, têm maiores chances de voltar aos compartimentos, enquanto os que não conseguirem seriam literalmente levados pelo vento.” É esse o momento em que os replicadores enzimáticos recuperam a desvantagem inicial, já que a mistura possibilita a saída dos egoístas de grupos abundantes em enzimas devido à presença dos altruístas. Caindo em grupos pobres em enzimas, os egoístas perdem poder de replicação e permitem o isolamento dos altruístas. “Matematicamente, mostra-se que esse processo repetido termina por levar ao predomínio do altruísmo”, assegura o físico.

Mas por que só restou uma molécula, o DNA? “É um resultado matemático, uma conseqüência da dinâmica de replicadores”, diz Fontanari. Ele acredita que tenha surgido, primeiro, outro tipo de replicador: o RNA ou ácido ribonucléico, uma molécula mais simples (é uma fita simples, enquanto o DNA é uma fita dupla, como dois fios enrolados entre si). A idéia ganha força com a comprovação de que o RNA consegue agir como replicador, gerando cópias de si mesmo, e como enzima de outra molécula. “O DNA foi uma invenção do RNA e dos outros replicadores mais complexos”, sugere o físico. Mas a invenção mais recente é que tomou as rédeas da evolução e, na maioria dos organismos – salvo alguns vírus que armazenam o material genético na forma de RNA -, hoje é o DNA que faz o RNA, no processo inicial de produção de proteínas.

Esse conjunto de idéias, que ajuda também a entender por que há uma receita única para a produção de proteínas, o chamado código genético, em qualquer organismo, contesta a tese do individualismo biológico, propagada desde 1976 pelo livro O Gene Egoísta, do biólogo inglês Richard Dawkins. Por outro lado, em momento algum contraria o princípio da seleção natural de Charles Darwin. “A natureza não precisa de outro princípio organizador além da seleção natural”, diz.

As vantagens do sexo
Fontanari resolveu outros impasses que os biólogos já conheciam, mas não conseguiam explicar com precisão como surgiam e se desenvolviam. Um deles é a reprodução sexuada. Os cientistas sempre se perguntaram por que o sexo pode ser uma vantagem evolutiva, principalmente para os organismos que contam com as duas alternativas – há protozoários que podem se duplicar com autonomia, sem precisar de um parceiro, assegurando a continuidade de todo seu material genético, contido no DNA, mas optam pela reprodução sexuada, por meio da qual transmitem apenas metade de seus genes. “Há uma pressão seletiva em favor da recombinação de DNA”, diz Fontanari, que nessa área trabalha com biólogos evolucionistas da Middle Tennessee State Univeristy, Estados Unidos.

Quem levantou o problema foi o geneticista norte-americano Hermann Joseph Müller (1890-1967), ao descobrir que os raios X podem causar mutações em moscas-de-fruta (Drosophila melanogaster), um achado que lhe valeu o Prêmio Nobel de Medicina de 1946. Anos depois, sentenciou: as mutações (mudanças no DNA) fazem mais mal do que bem e se acumulam mais rapidamente em espécies que se reproduzem apenas de modo assexuado, num caminho sem volta, que ficou conhecido como catraca de Müller. O próprio Müller sugeriu que a reprodução sexuada, por permitir a mistura de material genético, conseguiria reverter a catraca e evitar o efeito prejudicial das mutações, hoje vistas como fonte de diversidade dos seres vivos, mas que, se não corrigidas, ao menos em parte, ameaçam a sobrevivência, por reduzirem continuamente a adaptação dos animais e das plantas ao ambiente em que vivem.

Mas faltava explicar o movimento da catraca de Müller, associado a fenômenos bastante estudados, como a degeneração do cromossomo sexual Y. Foi o que fez Fontanari em artigo publicado em dezembro de 2001 na Physical Review Letters : a catraca avança e a trava corre, passando de um dente a outro, quando todos os organismos de uma população adquirem a mesma mutação. Já se sabia que é mais provável que ocorram poucas do que muitas mutações – em um vírus, a cada replicação surge pelo menos uma mutação por genoma.

O pesquisador de São Carlos fecha o artigo com duas fórmulas, que, segundo ele, “têm grande potencial para uso prático” por determinarem a taxa de mutação por genoma e a intensidade da seleção natural, desde que conhecida a distribuição da adaptabilidade de uma espécie, medida por meio da freqüência de indivíduos com diferentes capacidades de sobrevivência em um mesmo ambiente. “Se não houvesse um mecanismo como a catraca de Müller que indicasse que os microrganismos com reprodução assexuada estariam em desvantagem por não conseguir anular a mutação, as formas assexuadas é que prevaleceriam”, diz. O mesmo trabalho mostra por que a catraca não pára, ainda que seu movimento seja lento. Quão lento? “Depende do tempo de geração do organismo envolvido”, responde Fontanari. Para as bactérias, que criam uma nova geração a cada 20 minutos, a catraca vai correr um dente a cada 40 anos, que correspondem a 1 milhão de gerações.

A eliminação de mutações que incessantemente alteram o DNA, por meio da produção contínua de novos seres, pode ser entendida também por meio da analogia com a Teoria da Rainha Vermelha, que se refere a um personagem do escritor britânico Lewis Carroll em Alice Através do Espelho. A Rainha Vermelha não deixava ninguém parar de correralegando: “Temos de continuar correndo para permanecer no mesmo lugar”.

O Projeto
Evolução Molecular Teórica (nº 99/09644-9); Modalidade Projeto temático; Coordenador José Fernando Fontanari – Instituto de Física de São Carlos – USP; Investimento R$ 148.000,00

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