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Evolução

A longa história das abelhas

Insetos polinizadores teriam surgido há 120 milhões de anos na porção ocidental do supercontinente Gondwana, formado pelas atuais América do Sul e África

Fêmea de abelha-das-orquídeas (Exaerete smaragdina) em flor de guanhuma em Cosmópolis, São Paulo

Adriana Tiba e Julio Pupim

Há cerca de 120 milhões de anos, início do período Cretáceo, grupos de dinossauros ainda caminhavam pela Terra quando as primeiras abelhas surgiam nas atuais América do Sul e a África, então conectadas como parte do supercontinente Gondwana. “O ancestral comum das abelhas provavelmente surgiu em meio ao clima mais árido que essa região tinha. Até hoje, a maioria das mais de 20 mil espécies já catalogadas prefere áreas mais secas, onde são mais diversificadas”, contou o biólogo Eduardo Almeida, do campus de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP), enquanto se preparava para apresentar esses resultados em um workshop sobre evolução das abelhas na cidade de Portal, no Arizona, Estados Unidos, em meados de agosto.

Ao lado do colega alemão Silas Bossert, da Universidade Estadual de Washington, ele liderou o estudo publicado em agosto na revista científica Current Biology, que tornou mais nítido esse quadro esboçado em estudos anteriores. Para localizar no tempo e no espaço o processo evolutivo das principais polinizadoras do planeta, o grupo analisou sequências de DNA de diferentes partes do genoma de 216 espécies de abelhas de todas as sete famílias (Andrenidae, Apidae, Colletidae, Halictidae, Megachilidae, Melittidae e Stenotritidae) e das 28 subfamílias conhecidas hoje. As amostras vieram dos cinco continentes onde as abelhas vivem (todos exceto a Antártida), o que foi possível graças aos dados e espécimes depositados em museus de pesquisa – Almeida é curador da coleção entomológica Prof. J. M. F. Camargo, que abriga centenas de milhares de exemplares de abelhas.

Em seguida, os pesquisadores compararam estimativas genéticas de idade e dados da distribuição geográfica dessas espécies com informações provenientes de 220 fósseis e locais onde foram coletados. Todas essas informações permitiram ao grupo traçar a árvore genealógica (filogenia) das abelhas, estimando as relações de parentesco evolutivo entre as principais linhagens e as idades dos eventos evolutivos. O resultado é uma linha do tempo que indica onde e quando as primeiras abelhas teriam surgido e como os grupos se dividiram, diversificaram cores, formas, comportamentos e modos de organização, e se dispersaram pelo planeta ao longo do tempo, acompanhando a reacomodação dos continentes.

A ocupação dos continentes
Segundo os resultados do grupo de Ribeirão Preto, a partir do momento em que surgiu o ancestral comum das abelhas, por volta de 124 milhões de anos atrás, um processo contínuo de diversificação foi influenciado pela configuração dos continentes na época, a subida e descida do nível do oceano e as mudanças no clima que ocorreram nos diferentes períodos geológicos.

“A separação do supercontinente levou a uma mudança na configuração de como as abelhas se distribuíam pelo mundo”, diz Almeida. Os dados sugerem que, das sete famílias atuais, apenas Melittidae ainda não existia há cerca de 100 milhões de anos na região hoje correspondente à América do Sul.

Adriana Tiba e Julio Pupim Macho de Centris varia em flor de rainha-dos-lagos em Capão da Canoa, Rio Grande do SulAdriana Tiba e Julio Pupim

Talvez por isso as abelhas não tenham sido muito afetadas pela queda do asteroide tido como responsável pela extinção em massa dos dinossauros, no golfo do México, há cerca de 60 milhões de anos. “Elas já estavam espalhadas pelo planeta, em uma distribuição próxima da atual”, pondera Almeida. Ele lembra que, a partir desse período, alguns ambientes tropicais começaram a se expandir para latitudes mais elevadas, o que permitiu que os grupos que viviam nas regiões tropicais e subtropicais no hemisfério Sul avançassem rumo à América do Norte, Europa, Ásia e norte da África.

Grupos de abelhas provavelmente chegaram à Austrália entre 70 e 35 milhões de anos atrás, com os primeiros tendo se originado na América do Sul e percorrido uma rota atravessando a Antártida, que fazia a ligação ao sul entre os dois continentes e tinha um clima mais ameno que o atual. Tempos depois, outras abelhas que já estavam no continente asiático também teriam colonizado a Austrália. Já na Índia, elas devem ter chegado por volta de 50 milhões de anos atrás, depois que o território do atual país indiano, que havia se desprendido da Gondwana antes da origem das abelhas, se chocou com o continente asiático e encontrou a fauna local.

A aparência da abelha ancestral ainda é uma incógnita: seria grande ou pequena, vivia em sociedades organizadas em colmeias ou era solitária? Almeida arrisca um palpite: provavelmente seria uma abelha solitária, já que hoje 85% das espécies têm esse tipo de hábito, com seus integrantes vivendo em tocas individuais. E, como a maioria das solitárias, construiria ninhos no chão. Almeida vem investigando também meios de reconstruir a morfologia ancestral desses insetos.

O avô acadêmico, as vespas e as flores
A proposta de que as abelhas surgiram na porção ocidental da Gondwana, que incluía América do Sul e África, não é nova. Ela foi aventada pelo entomólogo norte-americano Charles Michener (1918-2015) ainda em 1979 em um artigo publicado na revista Annals of the Missouri Botanical Garden.

Michener, “avô” acadêmico de Almeida, é uma referência no estudo da evolução das abelhas e chegou a passar um ano no Brasil em 1956, trabalhando com o entomologista brasileiro Jesus Santiago Moure (1912-2010), conhecido como padre Moure, na UFPR em Curitiba. “Quarenta anos depois, o avanço nas análises genéticas e computacionais, além da descoberta de muitos fósseis de abelhas, permitiu que trouxéssemos mais evidências e novos dados para sua hipótese”, observa o pesquisador de Ribeirão Preto.

Bryan Danforth / Universidade Cornell Eduardo Almeida coleta abelhas usando puçá durante expedição no Novo México (EUA)Bryan Danforth / Universidade Cornell

A bióloga Vera Lucia Imperatriz Fonseca, do campus paulistano da USP, que não participou do estudo, observa que a pesquisa é a mais ampla filogenia de abelhas feita até então. “Antigamente estudávamos as abelhas do nosso quintal. Hoje podemos estudar as abelhas do mundo”, diz ela, que ressalta a importância da preservação e expansão das coleções de insetos do país, inclusive de abelhas, para que esse tipo de pesquisa seja ampliado.

“A associação entre as abelhas e as flores ao longo dos milhões de anos é outro ponto que o trabalho ajuda a pensar”, diz o biólogo Guilherme Cunha Ribeiro, da Universidade Federal do ABC (UFABC), que também não participou do estudo. Em artigo publicado em 2022 na revista Cretaceous Research, Ribeiro e colegas descrevem na família Crabronidae uma nova espécie de vespa extinta, batizada de Exallopterus spectabilis, cujo fóssil foi localizado na formação Crato, em Nova Olinda, no Ceará. Sua idade foi estimada entre 125 e 115 milhões de anos.

“Argumentamos que, se a família Crabronidae, considerada por alguns estudos como irmã das abelhas, já existia nesse intervalo, então as abelhas também teriam que existir”, diz Ribeiro. Como ainda não foram encontrados fósseis de abelhas na região, apesar da grande abundância de insetos já coletados, ele sugere que uma das explicações pode ser que elas tenham se diversificado mais ao sul da Gondwana.

As plantas com flores, ou angiospermas, são do início do Cretáceo (cerca de 145 milhões de anos atrás). Antes das abelhas, existiam outros insetos, incluindo vespas, que se alimentavam do néctar e do pólen das flores e, por consequência, faziam sua polinização. “As abelhas assumiram esse protagonismo”, diz o pesquisador da UFABC.

Almeida explica que, em algum momento, vespas carnívoras se tornaram vegetarianas, passaram a se alimentar de pólen e, depois disso, surgiram as abelhas. “Elas se tornaram dependentes das flores e o principal grupo responsável pela polinização. Os dois organismos têm uma história paralela: as abelhas tinham que estar onde as flores estavam.” Por isso, uma das conclusões do trabalho coordenado por ele é de que a rica biodiversidade de plantas da América do Sul está relacionada com o fato de ser o continente onde as abelhas estão há mais tempo.

E se elas levaram milhões de anos para se estabelecer, se adaptar e se diversificar, qualquer mudança drástica em um curto espaço de tempo representa um grande risco. “Se as mudanças climáticas transformarem os ambientes de maneira radical, não sabemos se elas vão conseguir se adaptar tão rapidamente”, alerta Almeida.

Projetos
1. Sistemática filogenômica, morfologia comparada e biogeografia de abelhas (Hymenoptera: Anthophila) (nº 18/09666-5); Modalidade Auxílio à Pesquisa ‒ Regular; Pesquisador responsável Eduardo Andrade Botelho de Almeida (USP); Investimento R$ 144.943,60.
2. A paleoentomofauna da formação Crato (Cretáceo inferior; bacia do Araripe): sistemática e paleoecologia (nº 20/02844-5); Modalidade Auxílio à Pesquisa ‒ Regular; Pesquisador responsável Guilherme Cunha Ribeiro (UFABC); Investimento R$ 63.301,40.

Artigos científicos
ALMEIDA, E. A. B. et al. The evolutionary history of bees in time and space. Current Biology. v. 33. p. 1-14. 21 ago. 2023.
ROSA, B. B. et. al. The first crabronid wasps (Hymenoptera, Apoidea) from the Crato formation (Northeastern Brazil) and implications for the evolution of apoid wasps and bees during the Early Cretaceous. Cretaceous Research, v. 137, 105248. set. 2022.

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