Wilson Pedrosa/ Agência Estado/ AEJá é fato razoavelmente conhecido que a Região Metropolitana de São Paulo não é mais um grande polo de absorção de migrantes internos e externos, papel que desempenhou durante a maior parte do século XX. Na primeira década do XXI houve um expressivo saldo negativo entre os que entraram e os que saíram. Chegaram 100 mil pessoas e partiram 800 mil somente para o interior do estado. O que não é tão conhecido é o novo perfil migratório que esses números, de certa forma, escondem. O fluxo já não se explica pela dinâmica da indústria e do emprego formal que antes atraía novos moradores. A grande novidade é o fenômeno da reversibilidade – ou seja, as permanências tendem a encurtar-se e o movimento se caracteriza por idas e vindas, além dos retornos definitivos.
Descrever em detalhes essas novas configurações demográficas, suas implicações e desdobramentos é a tarefa que se atribui o Observatório das Migrações do Núcleo de Estudos da População (Nepo) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), financiado pela FAPESP e coordenado por Rosana Baeninger, professora do Departamento de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), também da Unicamp. O projeto tem uma abrangência cronológica extensa – de 1880 a 2010 – e perspectiva interdisciplinar, o que faz com que novos estudos temáticos, que atualmente totalizam 16, surjam na medida em que as pesquisas avançam.
“Nosso objetivo é que cada pesquisador consiga desvendar processos que os grandes números não mostram”, diz Rosana. “Temos o desafio de procurar novas fontes de dados – os censos não nos fornecem informações sobre as migrações internas, por exemplo.” Os produtos finais deverão ser um atlas temático e um banco de dados. Não só novas fontes são utilizadas, mas também abordagens recentes da bibliografia nacional e estrangeira que ajudem a entender o quadro mais amplo. Um dos pontos de partida do observatório é que “o entendimento dos processos migratórios só ganha significado se considerarmos as dimensões espacial e territorial”.
Assim chegou-se à constatação de que no século XXI, como já se podia entrever desde os anos 1990, a Região Metropolitana de São Paulo inseriu-se na rota das migrações internacionais. “A metrópole tem uma característica muito mais voltada para o mercado internacional, como parte de uma cadeia de cidades globais”, diz Rosana. Nesse arco amplo, enquanto os processos econômicos se multiplicam espacialmente, o tempo se globaliza. É o que o sociólogo britânico Anthony Giddens chama de “mecanismos de desencaixe”.
Hoje São Paulo é destino tanto de mão de obra altamente qualificada quanto de trabalhadores indocumentados e sem formação específica, mas que já se inserem em mecanismos de produção flexibilizados e conformados à mobilidade do capital. No primeiro caso destacam-se argentinos e chilenos que vêm trabalhar na cidade em postos de gerência, com autorização de permanência por períodos renováveis de dois anos e contabilizados pelo Ministério do Trabalho – são 20 mil, conforme os dados mais recentes. No segundo caso estão sobretudo os bolivianos, que imigram por problemas em seus locais de origem e escapam às estatísticas oficiais. Seu número total é estimado em 200 mil por entidades privadas como a Pastoral do Imigrante. Com isso, segundo a socióloga, “100 anos depois da migração europeia São Paulo voltou a ser a porta de entrada das migrações internacionais, agora não mais subsidiadas pelo governo”.
Como se sabe, num fenômeno que já tem três décadas, os bolivianos vêm principalmente para trabalhar na indústria de confecções, de propriedade de imigrantes asiáticos ou seus descendentes. A migração boliviana já se encontra na segunda geração e causou impactos urbanos sensíveis, como a conhecida mudança de perfil demográfico do bairro do Bom Retiro, tradicionalmente marcado pelo comércio e pela presença judaica e hoje sede da maioria das confecções que empregam a mão de obra latino-americana.
Essa já é uma atividade internacionalizada no princípio da cadeia de produção, uma vez que os tecidos chegam da Coreia. Nos últimos anos o setor vem maturando sistemas elaborados que permitem a muitos bolivianos trabalhar sazonalmente, sob demandas específicas de acordo com as temporadas de lançamentos de roupas (verão e inverno), o que reforça o movimento geral de vaivém entre os migrantes da cidade. Hoje muitos trabalhadores bolivianos já se originam de zonas urbanas e chegam com treinamento profissional.
Entre os migrantes internos, principalmente nordestinos, o hábito da sazonalidade também se intensificou. Como exemplo, há um bom contingente de pessoas que trabalham na venda de bilhetes de loteria nas ruas durante alguns meses, mas voltam para seus locais de origem para aproveitar as altas temporadas da indústria do turismo. Outra face da permanência curta ou mesmo do retorno de migrantes é o encarecimento do custo de vida na cidade. Antes as periferias ofereciam rotinas próprias e potencial de absorção de novos moradores, mas hoje, segundo Rosana, “o entorno não é mais desarticulado do centro; essas regiões se adensaram e se reconfiguraram”. Um traço característico do perfil migratório do século XXI na Região Metropolitana de São Paulo é a regressão. Trata-se da área do país que mais perde população por ano, especialmente no que se refere à migração interna. Por outro lado, o estado é o que mais recebe mão de obra qualificada.
Redes
Fator importante na estrutura social que permite a circulação de migrantes, tanto internos como externos, são as redes sociais – grupos articulados de apoio à permanência temporária, formados principalmente por parentes. Graças a elas, é possível aos migrantes muitas vezes deixarem por algum tempo seus filhos no local de origem enquanto se dedicam ao trabalho sazonal. As redes sociais operam nas duas extremidades da migração e não constituem um fenômeno novo (às vezes são redes que perduram há 60 anos), mas ganharam importância-chave na sustentação da temporalidade das migrações entre espaços tão longínquos. Isso fez surgir sistemas organizados e dinâmicos de transporte como os ônibus que saem da região de São Miguel Paulista, na Zona Leste de São Paulo.
Hoje o grande eixo migratório do país tem sido o estado de Goiás. “É o grande polo de absorção”, diz Rosana. A agroindústria vem atraindo inclusive mão de obra qualificada paulista. Além disso, um centro produtor de cereais como a cidade de Rio Verde oferece cursos de gestores públicos que atraem profissionais de fora do estado.
A expansão da agroindústria no interior paulista também continua atraindo migrantes de outras regiões, da capital, de núcleos internos vizinhos e, em menor escala, do exterior. Soma-se à agroindústria a robustez de nichos econômicos voltados para o mercado externo que as várias regiões conseguiram consolidar: os calçados na área de Franca, as joias em Limeira, os móveis em Votuporanga, o setor hoteleiro sustentado pelo circuito do peão em Barretos etc. A malha viária é suficientemente eficaz para que muitos profissionais morem numa cidade e trabalhem em outra, provocando “o adensamento de pequenas cidades antes marcadas pela evasão”.
Um retorno ao campo? “Não”, diz Rosana. “Mesmo que o trabalho se volte para a área rural, as pessoas vivem nas cidades ou no que chamamos de zonas de extensão urbana não catalogadas, ou seja, áreas com características urbanas sem serem oficialmente consideradas assim.” Com essa uniformização, aumentou muito a migração de curta distância e o vaivém regional, a ponto de se criar um questionamento teórico: será que as pessoas que perfazem esses deslocamentos podem ser consideradas migrantes? Pela concepção em vigor nos anos 1960, informa a professora, a adaptação de um migrante da zona rural tradicional para o ambiente urbano moderno demorava cerca de 10 anos. Mas no interior paulista, hoje, os padrões de urbanização e consumo são praticamente idênticos entre as regiões.
Impacto
O modo de funcionamento das pesquisas do Observatório de Migrações, com peso na interdisciplinaridade e na cooperação com outras instituições acadêmicas brasileiras e estrangeiras, faz surgir estudos de fenômenos sem grande volume numérico, mas importantes dos pontos de vista sociológico e antropológico. Planeja-se, por exemplo, um estudo inédito sobre o impacto social das transferências de presídios para cidades do interior do estado de São Paulo, com a movimentação de grupos que isso acarretou.
Um estudo em andamento ilumina a migração de refugiados na região metropolitana neste século. Há uma expressiva presença de colombianos (e alguns cubanos) que foram pressionados a sair de seus lugares de origem pelos conflitos internos. “O Brasil tem uma das legislações mais abertas da América Latina para refugiados, o que provoca esse fluxo”, diz Rosana. Calcula-se que haja 1.800 refugiados na cidade de São Paulo. Entre eles, os mais recentes são os colombianos, que em geral têm família, muitas vezes sendo o cônjuge ou os filhos brasileiros, em geral com qualificação profissional mas dificuldade de inserção, porque não têm o diploma validado. A título de comparação, a maioria dos refugiados na cidade do Rio é composta por africanos solteiros, que costumam chegar como estudantes e posteriormente pedem refúgio. Tanto os refugiados como os imigrantes indocumentados, segundo Rosana, criaram situações que demandam políticas sociais em favor de seus direitos e de proteção contra a discriminação, que ainda não foram instituídas.
Um estudo particularmente interessante do Observatório de Migrações está a cargo da socióloga Marta Maria do Amaral Azevedo, também da Unicamp, sobre a presença guarani em São Paulo. Atualmente há na região leste do estado 20 comunidades, quatro delas na capital. O processo migratório, oriundo do Paraguai, do atual Mato Grosso do Sul e da Argentina, começou na segunda metade do século XIX. Observou-se, no entanto, que ele se mantém, “criando muitas vezes impasses para as políticas públicas e para a questão das terras”. O estudo procura, entre outras coisas, quantificar essa população e traçar sua genealogia. “As pesquisas existentes apontam motivações religiosas e econômicas, como a busca da terra sem males, um lugar onde seria possível viver do jeito guarani, ou de acordo com o guarani reko, a maneira de ser desse povo”, diz Marta. “Hoje há extensas redes sociais estruturadas a partir de parentesco e relações de religiosidade, trocas econômicas e a prática do conceito oguatá: caminhar, o que pode significar uma visita a um parente ou uma viagem para consultar um pajé, ou mesmo para uma reunião de famílias.”
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