Imprimir PDF Republicar

Imunologia

A micose da terra

Avançam as pesquisas de uma vacina e de genes-alvo para combater fungo típico da América do Sul

Após quase 20 anos de trabalho, pesquisadores da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) chegaram a uma potencial vacina contra o fungo Paracoccidioides brasiliensis, causador de uma micose típica da América Latina, a paracoccidioidomicose, que infecta 10 milhões de indivíduos (80% deles no Brasil). Testes em camundongos e com amostras de sangue de seres humanos revelaram que uma mistura de fragmentos de uma proteína extraída do próprio fungo gera uma resposta imunológica em 75% dos casos, muito próximo do nível desejável para uma vacina. Com novos testes, que devem levar alguns anos, essa vacina deve se tornar uma alternativa efetiva para prevenir a doença e aumentar a eficiência dos tratamentos usuais – à base de medicamentos do tipo sulfa ou fungicidas -, que podem se prolongar por até cinco anos. Outra vertente de trabalho que pode resultar em novas formas de combate à doença é o estudo do genoma do P. brasiliensis.

De modo independente, mas complementar, dois grupos – um da Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP) e outro formado por pesquisa-dores da região Centro-Oeste – seqüenciaram11 mil genes do fungo. Encontraram 40 genes que representam futuros alvos para medicamentos por serem essenciais à sobrevivência do parasita no organismo humano: estão ligados à agressividade do fungo, à sua capacidade de aderir às células do organismo hospedeiro (por exemplo, as dos pulmões) ou à transformação do micélio, filamentos multicelulares que contaminam os seres vivos, em levedura, células que se espalham pelo corpo.

Essa micose causa feridas na pele, lesões na boca e pode contaminar os pulmões e se infiltrar nos ossos, nas articulações e no sistema nervoso central. Alastra-se, sobretudo, entre trabalhadores rurais de áreas de ocupação recente, como os estados de Rondônia, do Tocantins, Pará, Mato Grosso e Acre. É uma provável conseqüência do desmatamento e do preparo do solo para o plantio, que aumenta o número de partículas do fungo em suspensão no ar. Os pesquisadores da Unifesp, extraíram do próprio fungo os ingredientes do que, em experimentos com camundongos e sangue humano, mostrou-se uma possível vacina contra a paracoccidioidomicose. A equipe de Travassos coordenados por Luiz Rodolpho Travassos verificou que pequenos fragmentos de uma proteína (peptídeos) da superfície do fungo, a glicoproteína 43 ou gp43, são capazes de estimular a resposta do sistema de defesa de roedores contra o P. brasiliensis, um bom indicativo do que pode ocorrer no organismo humano.

Rosana Puccia, ainda como aluna de doutorado de Travassos, havia descoberto em 1986 que a gp43 acionava o sistema imunológico humano contra o fungo – funcionava como um antígeno, como dizem os pesquisadores. A molécula inteira, além de estimular a proliferação de linfócitos T, um tipo de célula de defesa, disparava a produção de anticorpos, o que não é eficaz no caso dessa micose. Surgiu então a idéia de buscar um trecho da gp43 que gerasse apenas o efeito benéfico: a produção dos linfócitos T.

P10, a estrela
Tempos depois, os pesquisadores verificaram que uma pequena parte da gp43 também despertava a resposta imune – era um segmento composto por apenas 15 aminoácidos (os blocos formadores das proteínas) conhecido pela sigla P10. Em testes com três linhagens de camundongos, o P10 estimulou a proliferação de linfócitos T contra o fungo em todos os animais. Após imunizar os roedores com o peptídeo, Carlos Taborda, também aluno de doutorado de Travassos, injetou na traquéia dos animais uma suspensão contendo uma forma agressiva do P. brasiliensis e viu que havia uma proteção efetiva contra a infecção: os pulmões não sofriam danos e o fungo não se disseminava pelo organismo. “O P10 é a nossa grande estrela”, diz Travassos.Ainda faltava saber se o P10 – ou outros peptídeos da gp43 – funcionaria no homem como uma chave que se encaixa em uma espécie de fechadura química, a molécula MHC de classe II (sigla em inglês para complexo principal de histocompatibilidade).

Formado por duas proteínas acopladas, esse complexo reconhece moléculas estranhas ao organismo e dispara o alarme do sistema de defesa. A fim de gerar a proteção desejada em populações geneticamente distintas, o P10 teria de ser o que os pesquisadores chamam de antígeno promíscuo – promíscuo, aqui, significa se ligar ao maior número possível dos cerca de 300 tipos de moléculas de MHC de classe II identificados do ser humano. Para verificar se isso ocorria, Travassos trabalhou com pesquisadores da Faculdade de Medicina da USP e um programa de computador que analisou a compatibilidade entre as estruturas do P10 e as de 25 dos 300 tipos de MHC classe II. Deu certo: o P10 se encaixava com alta afinidade em 22 dos 25 tipos de MHC de classe II analisados – outros quatro fragmentos da gp43 mostraram potencialsimilar. Pode parecer pouco, mas esses 25 são os complexos de histocompatibilidade apresentados por 90% da população caucasóide, a maior divisão étnica da espécie humana, que inclui os povos nativos da Europa, norte da África, sudoeste da Ásia, inclusive a Índia, com características como cor da pele, que varia de clara a morena, e cabelos, de lisos a ondulados e crespos.

Faltava saber como as cinco moléculas identificadas se comportariam em contato com células do sistema de defesa humano. Desta vez, foi Leo Kei Iwai, da USP, quem testou os peptídeos em amostras de sangue retiradas de 29 pessoas que já haviam recebido tratamento contra infecção pelo P. brasiliensis e ainda apresentavam reação imunológica contra o fungo. Surgiu um quadro complexo: embora ainda fosse o antígeno mais eficaz, o P10 acionou linfócitos T específicos para o antígeno em cerca de metade das amostras examinadas – uma taxa de sucesso aquém da exigida para a produção de uma vacina com um único peptídeo.

A boa notícia é que os outros peptídeos funcionaram quando o P10 falhou. De acordo com os resultados mais recentes, os cinco antígenos misturados exibem um desempenho de 75%. “Esse nível já é eticamente adequado para se pensar em uma vacina”, diz Travassos. Mesmo assim, ainda é necessário superar outras etapas antes de obter uma vacina viável para os primeiros testes em seres humanos. A primeira delas é produzir os peptídeos em quantidade e com grau de pureza elevados, além de descobrir qual a formulação mais eficiente para imunização.

Outros alvos
Em paralelo, a equipe de Gustavo Goldman, da USP de Ribeirão Preto, seqüenciou quase 5 mil genes do P. brasiliensis. Ao mesmo tempo, a rede regional do Genoma Centro-Oeste, consórcio formado por 13 instituições de Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e do Distrito Federal, decifrou quase 6 mil genes e na edição de fevereiro da Yeast publicou uma relação de 18 genes mais ativos do fungo. Segundo a coordenadora desse grupo, Maria Sueli Soares Felipe, da UnB, descontados os possíveis genes repetidos, a equipe paulista e a do Centro-Oeste mapearam quase todo o genoma do fungo, estimado em até 15 mil genes. Goldman comparou as seqüências do P. brasiliensis com 60 genes associados à capacidade de provocar doença – ou patogenicidade – do Candida albicans, fungo causador da candidíase, uma micose comum que origina feridas esbranquiçadas na boca e manchas avermelhadas na pele. Resultado: o P. brasiliensis apresenta 26 genes semelhantes aos do C. albicans, como atesta um artigo publicado na Eukaryotic Cell de fevereiro. “Esses são possíveis alvos a serem combatidos.”

A equipe do Centro-Oeste conseguiu alterar geneticamente leveduras do P. brasiliensis, acrescentando um gene ao seu material genético por meio de uma técnica chamada eletroporação, que abre poros na parede celular do fungo e permite a entrada do material genético estrangeiro – procedimento essencial para desativar genes. O grupo chegou à transformação genética de cinco a dez fungos por micrograma de DNA e trabalha para aumentar esse rendimento, de modo a facilitar os experimentos. “O que já conseguimos é um bom começo”, diz Maria Sueli. “É um sinal de que é possível alterar geneticamente o fungo.”

Os Projetos
1.
Biologia Molecular e Imunobiologia de Componentes Exocelulares Purificados de Paracoccidioides brasiliensis (nº 95/00559-8); Modalidade Projeto temático; Coordenador Luiz Rodolpho Travassos – Unifesp; Investimento R$ 284.832,98 (FAPESP)
2. Caracterização Molecular de Genes Envolvidos no Processo de Patogenicidade e Virulência do Paracoccidioides brasiliensis (nº02/08711-9); Modalidade Projeto temático; Coordenador Gustavo Henrique Goldman – USP; Investimento R$ 554.380,00 (FAPESP)
3. Genoma Funcional e Diferencial do Paracoccidioides brasiliensis; Modalidade Rede Genoma Centro-Oeste; Coordenadora Maria Sueli Soares Felipe – IB/UnB; Investimento R$ 1.430.000,00 (MCT/CNPq)

Republicar