Nelson ProvaziCom capacidade de produzir 20 milhões de doses, a fábrica de vacinas contra gripe do Instituto Butantan começou a funcionar integralmente em março e deve garantir ao Brasil autossuficiência na prevenção contra o vírus influenza para pessoas idosas já em 2012. Num horizonte de três a cinco anos, o país poderá tornar–se até um exportador de vacinas contra gripe. Duas tecnologias desenvolvidas pelos pesquisadores do Butantan prometem ampliar a produção. Isso, sem a necessidade de expandir a planta, que havia sido inaugurada em 2007 mas só recentemente teve seus processos validados, ou de adquirir mais matéria-prima – cada dose requer o uso de um ovo de galinha fecundado para a reprodução dos vírus, o que torna a fábrica consumidora de 20 milhões de ovos por ano. Uma das tecnologias permite isolar o vírus inteiro, com todas as proteínas do seu interior. Hoje a vacina contra influenza aproveita do vírus uma proteína, a hemoaglutinina A. As demais proteínas são descartadas, embora também deem proteção e sofram menos mutações que a hemoaglutinina A. “Quando produzimos essa nova vacina, descobrimos que a produção por ovo aumentava, conforme o sorotipo do vírus, de duas até sete vezes”, diz Isaias Raw, pesquisador do Instituto Butantan.
A segunda tecnologia, já patenteada pelo instituto, obteve o isolamento de uma substância adjuvante, o monofosforil lipídeo (MPLA), que intensifica a reação imunológica do organismo ao estimular a produção adequada de anticorpos ou linfócitos. Já foram criadas outras substâncias desse tipo, mas elas custam caro ou não são acessíveis. O MPLA, curiosamente, é um subproduto de outra linha de pesquisa do Butantan, que foi o desenvolvimento de um novo tipo de vacina contra coqueluche, considerada mais segura graças à remoção de lipopolissacarídeos (LPS) da bactéria que causavam reações inflamatórias e tóxicas. “Convertemos quilos de LPS em MPLA, que em pequenas quantidades permite aumentar a resposta de várias vacinas fazendo com que possam ser usadas em dosagens menores”, diz Isaias Raw. Testes em camundongos mostraram que o MPLA permite proteger contra influenza usando um quarto da dose atual. O efeito já foi demonstrado também em seres humanos.
A substância está sendo testada contra várias doenças. O Butantan comprovou que o MPLA tem potencial para uso em vacinas contra leishmaniose para cães, quebrando um elo da transmissão da doença que pode ser mortal para os homens. Também é objeto de pesquisas pelo Instituto Ludwig, em Nova York, para potencializar o efeito de uma vacina contra câncer de ovário, e por um grupo de pesquisadores de Ribeirão Preto, numa vacina contra tuberculose. “Em breve será avaliada também com uma vacina contra hepatite B que hoje é ineficaz em pessoas acima de 50 anos que aguardam transplante de fígado ou rins”, diz Isaias Raw. Ao ampliar a resposta imunológica, o MPLA também a torna menos específica – já foram detectados casos em que uma vacina contra gripe também imunizou contra outros sorotipos. O MPLA é barato. “Podemos produzir com um custo de centavos MPLA para 1 bilhão de doses. Isso torna o Brasil protegido da pressão das grandes empresas, que não querem vender o adjuvante, mas a vacina pronta”, afirma o pesquisador. Os resultados, que dependem de novos ensaios clínicos para chegar à linha de produção, foram publicados na revista Vaccine em artigo assinado por Raw, Cosue Miyaki, Wagner Quintilio e Eliane Miyaji, entre outros pesquisadores do Butantan. “As pesquisas do laboratório não terminam com a publicação do artigo, mas com a produção de vacinas para atender à população”, diz Isaias Raw.
O Butantan acredita que as duas tecnologias têm potencial para aumentar a capacidade de produção da planta do influenza de 20 milhões para 160 milhões de doses da vacina. Tal crescimento, além da realização de ensaios clínicos, dependerá naturalmente das condições de mercado, que têm variado bastante nos últimos anos. A fábrica foi idealizada em 2004, quando havia a ameaça da gripe aviária. Causada pelo vírus H5N1, a doença teve surtos em 2005 que dizimaram milhares de aves e chegaram a infectar algumas pessoas no Vietnã, Tailândia, Indonésia e Camboja. Naquela época, um antigo prédio do Instituto Butantan foi convertido em laboratório piloto para iniciar a produção em pequena escala da vacina. Simultaneamente, foi obtido financiamento do estado de São Paulo para a construção da fábrica e do Ministério da Saúde para importar equipamentos. A tecnologia para a produção da vacina foi transferida pelo laboratório Charles Merieux, hoje Sanofi-Pasteur, e se baseia na reprodução do vírus em ovos galados.
O panorama transformou-se radicalmente em 2009, com o surgimento do vírus H1N1, causador da chamada gripe suína. Ele apareceu nos Estados Unidos, infectou milhares de mexicanos e rapidamente se tornou uma pandemia. As cepas eram parecidas com as do influenza de 1918, causador da chamada gripe espanhola, que matou 40 milhões de pessoas. Em comum, os dois vírus atingiam principalmente jovens, crianças e mulheres grávidas, um público que até então não era alvo de campanhas de vacinação. De repente, a demanda por imunização cresceu 10 vezes. Hoje a Organização Mundial da Saúde (OMS) avalia que o alarme em relação à letalidade do H1N1 foi superdimensionado, mas na época disparou uma articulação para oferecer vacinas. “A OMS mandou preparar uma vacina e a cedeu aos produtores, incluindo o Butantan. Não haveria vacina para todos, mas o acordo entre o Butantan e a Sanofi garantiu a prioridade para adquirir as vacinas fabricadas no exterior e permitiu imunizar cerca de 80 milhões de pessoas”, diz Isaias Raw.
Mesmo antes da aplicação das novas tecnologias, o Butantan vislumbra a chance de exportar vacinas contra gripe para países do hemisfério Norte. Hoje a produção da fábrica tem uma forte sazonalidade. A fabricação começa por volta de setembro, quando a OMS define quais são os três tipos de vírus da gripe mais prevalentes naquele período e repassa amostras aos fabricantes. No caso do Butantan, a produção se concentra até o mês de abril, quando começa a vacinação – e a planta fica parada no restante do ano. “Nesse período poderíamos produzir a combinação de vacinas do hemisfério Norte e fornecê-la para a população que vive acima do equador, tanto no Brasil quanto em países como Venezuela, Colômbia e Guianas”, diz Isaias Raw. “Hoje a imunização chega atrasada a essas regiões e não é realmente eficaz.”
Vírus e embrião
A fábrica demorou sete anos para ficar pronta porque foi preciso superar uma série de etapas e obstáculos. Além de questões burocráticas relacionadas à escolha da construtora e à importação de equipamentos especiais como ultracentrífugas, também foi necessário desenvolver uma máquina que destrói o que sobra dos ovos, depois de separar o líquido repleto de vírus que banha o embrião. Esse material precisa ser reduzido a um pó para ser transportado com segurança e incinerado, evitando que sirva de alimento para aves e outros animais – bastariam alguns vírus vivos para disseminar a doença. “Trata-se de um processo bastante complexo, que tem uma técnica específica para injetar a cepa do vírus em cada ovo, separar o suco do vírus, purificá-lo e repurificá-lo e dar um tratamento ecologicamente correto ao material descartado”, diz Hernan Chaimovich, superintendente da Fundação Butantan. Como a vacina imuniza contra três tipos de influenza, a produção se concentra em uma cepa de cada vez. Antes de passar para o próximo vírus, a planta precisa parar por alguns dias e sofrer um processo rigoroso de desinfecção. Só neste ano a Sanofi, ao acompanhar a produção dos primeiros lotes, atestou que a fábrica foi validada dentro das regras da Comunidade Europeia. Os investimentos para a execução do projeto ultrapassaram os R$ 100 milhões, com verbas do governo do estado de São Paulo, do Ministério da Saúde e da Fundação Butantan. “Essas cifras se tornam irrelevantes diante dos milhões de reais de economia que o Brasil faz ao não precisar comprar o produto de laboratórios internacionais”, afirmou Jorge Kalil, diretor-geral do Instituto Butantan, em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo.
Aliança global
A capacidade de produção de vacinas por instituições públicas brasileiras chamou a atenção da Fundação Bill e Melinda Gates, que também tem feito contato com instituições de outros países. No ano passado, o Butantan recebeu a visita de Tachi Yamada, presidente do Programa de Saúde Global da fundação, interessado em conhecer a capacidade de produção da instituição paulista. A entidade filantrópica do dono da Microsoft procura parceiros para produzir vacinas a baixo custo que seriam repassadas a países em desenvolvimento. Recentemente foi formalizada uma proposta de colaboração com o Butantan, a Serum Institute, da Índia, e o Bio-Manguinhos, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), no Rio. A parceria tem como meta a produção de cerca de 30 milhões de doses de uma vacina pentavalente, contra difteria, tétano, coqueluche, hepatite B e hemófilo B (causador de meningite e outras doenças). O Butantan entregou uma proposta para fornecer 100 milhões de doses a US$ 1,50 cada uma, para entrega em 2014, e aguarda a resposta. Já produziu efeitos notáveis a articulação da Fundação Bill e Melinda Gates e da Aliança Global por Vacinas e Imunização (Gavi, na sigla em inglês) em busca de novos fornecedores. No mês passado, quatro gigantes farmacêuticas, a GSK, a Merck, a Johnson & Johnson e a Sanofi-Aventis, concordaram em vender à Gavi vacinas contra diarreia e rotavírus a preço de custo. A redução de preço chega a 70%. E duas empresas da Índia, a Serum Institute e a Panacea Biotec, comprometeram-se com o fornecimento da pentavalente cobrando US$ 1,75 a dose.