Podcast: Carola Chinellato
“Esse resultado indica fortemente a natureza extragaláctica dos raios cósmicos ultraenergéticos”, comenta a física Carola Dobrigkeit Chinellato, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), líder da participação brasileira no Pierre Auger, que reúne pouco mais de 400 pesquisadores de 18 países. “A chance de essa conclusão ser fruto do acaso é de duas em 100 milhões e equivale à de uma pessoa acertar os seis números da Mega-Sena.” Em nota divulgada com o artigo, o físico britânico Alan Watson, da Universidade de Leeds, no Reino Unido, porta-voz emérito do observatório, disse que o resultado do estudo é “um dos mais excitantes que obtivemos e que resolve um problema perseguido desde que o observatório foi concebido por Jim Cronin [norte-americano prêmio Nobel de Física de 1980 morto em 2016] e por mim mais de 25 anos atrás”.
O Pierre Auger foi projetado e começou a ser construído na década de 1990 para detectar raios cósmicos de alta energia, cuja existência foi comprovada na década de 1960. Suas atividades tiveram início em 2004 e a construção terminou em 2008 ao custo de US$ 54 milhões (valores de então). A chuva de raios cósmicos é registrada por 1.660 detectores de superfície, os chamados tanques Cherenkov, que operam ininterruptamente e estão espalhados por uma área plana, ao lado dos Andes argentinos, de 3 mil quilômetros quadrados, correspondente a duas vezes a da cidade de São Paulo. Os sensores detectam a luz ultravioleta emitida na água quando as partículas energéticas que compõem os chuveiros passam pelos tanques. Em noites de bom tempo e sem luar, as medições são complementadas pelos dados obtidos por 27 telescópios de fluorescência, que registram a luz ultravioleta emitida pelas moléculas de nitrogênio da alta atmosfera quando excitadas pelo chuveiro de partículas.
Partículas raras
Diferentemente dos raios cósmicos de menor energia, que são abundantes na atmosfera terrestre (chega uma dessas partículas por metro quadrado no topo da atmosfera por segundo), as partículas de altas energias são bem mais raras. A cada ano, um raio cósmico atinge a atmosfera por quilômetro quadrado. Para o físico Ronald Cintra Shellard, diretor do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), um dos 30 brasileiros que integram a colaboração internacional, o principal mérito do trabalho reside na precisão com que determinaram a origem extragaláctica desses raios cósmicos ultraenergéticos. “Eles não viajam grandes distâncias na escala cósmica. Então, devem vir de galáxias vizinhas, distantes no máximo 200 megaparsecs, cerca de 250 vezes a distância de Andrômeda, a galáxia mais próxima da nossa”, explica Shellard. Inicialmente, os pesquisadores do Auger chegaram a cogitar a possibilidade de que os raios cósmicos altamente energéticos viessem das proximidades do centro da Via Láctea, onde há possíveis fontes desse tipo de fenômeno. A região de Sagittarius A, por exemplo, abriga um desses candidatos, um buraco negro supermassivo. “Mas os nossos resultados evidenciam que os raios cósmicos ultraenergéticos vêm de uma direção bem distante do centro da Via Láctea, vêm de outras galáxias”, esclarece Carola. Os pesquisadores mediram o padrão de anisotropia dos raios cósmicos, ou seja, como sua incidência varia em diferentes regiões do espaço, e constataram que o fenômeno ocorre preferencialmente em uma região de alta concentração de galáxias (ver quadro).
Apesar das evidências de que o fenômeno se origine fora da Via Láctea, muitos enigmas persistem. Ainda não é possível afirmar de quais galáxias surgem os raios cósmicos. Também não se conhece com precisão a natureza dessas partículas nem os fenômenos que as produzem. Em um estudo de 2007, feito a partir da observação de apenas 27 raios cósmicos de energia ainda mais alta do que a relatada no trabalho atual, os pesquisadores do Auger haviam sugerido que esse fenômeno se originaria no núcleo de galáxias ativas vizinhas à Via Láctea. Essa observação, no entanto, não se confirmou com o avanço dos trabalhos no observatório.
Até o final de 2018, a colaboração internacional pretende fazer melhorias no sistema de detectores de superfície do observatório. O funcionamento do Auger custa US$ 1,9 milhão por ano. O Brasil contribui anualmente com US$ 120 mil, pagos pela FAPESP, pelo Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC) e pela Financiadora de Estudos e Projetos (Finep). A previsão é de que o observatório continue a coletar dados, pelo menos, até 2025.
Projeto
Estudo dos raios cósmicos de mais altas energias com o Observatório Pierre Auger (nº 10/07359-6); Modalidade Projeto Temático; Pesquisadora responsável Carola Dobrigkeit Chinellato (Unicamp); Investimento R$ 5.122.504,57.
Artigo científico
The Pierre Auger collaboration. Observation of a large-scale anisotropy in the arrival directions of cosmic rays above 8×1018 eV. Science. 22 set. 2017.