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Neurociência

A razão de tantas curvas

Dobras e espessura da camada externa do cérebro não estão relacionadas ao número de neurônios

A relação matemática entre o córtex e as bolinhas de papel: quanto menor a espessura mais a superfície se dobra sob pressão

Léo RamosA relação matemática entre o córtex e as bolinhas de papel: quanto menor a espessura mais a superfície se dobra sob pressãoLéo Ramos

Com uma folha de papel amassada em forma de bola é possível explicar como o cérebro dos mamíferos se dobra sobre si mesmo para formar as depressões e saliências que lhe dão o aspecto enrugado de uma noz. A formação dessas dobras, com sulcos e giros, responde a um mecanismo físico universal que depende de como variam a espessura e a extensão do córtex cerebral à medida que esse órgão se desenvolve, sugerem a neurocientista Suzana Herculano-Houzel e o físico Bruno Mota, ambos da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em estudo publicado em 2 de julho na revista Science.

Por muito tempo acreditou-se que o grau de dobras do córtex, a camada mais superficial do cérebro, estaria associado a sua capacidade de abrigar mais neurônios. Segundo o que se pensava, essas dobras seriam consequência do aumento do número de neurônios distribuídos nessa região ao longo da evolução dos mamíferos. Assim, um cérebro com mais depressões e saliências deveria comportar mais dessas células do que os córtices com superfície mais lisa. Isso acontece, por exemplo, quando se comparam cérebros grandes, como os do ser humano, que têm mais dobras do que cérebros pequenos, como os dos camundongos. Por essa lógica, o córtex de animais como baleias e elefantes, sendo maior e tendo mais dobras que o humano, deveria ter mais neurônios e capacidade cognitiva mais complexa. No entanto, o córtex humano tem três vezes mais neurônios do que o dos paquidermes e dos cetáceos.

Para elucidar esse paradoxo, os pesquisadores analisaram informações sobre o córtex de 74 espécies. Foram avaliados o grau das dobras, a espessura, o volume e a quantidade de neurônios que abrigavam. Eles verificaram que todos os cérebros se dobravam de acordo com uma relação matemática existente entre a área total da superfície do córtex cerebral e sua espessura. “O cérebro de seres humanos e de outros mamíferos começa a se dobrar durante o desenvolvimento embrionário”, explica Suzana. “Nesse processo, o córtex assume a configuração mais estável conforme sua superfície se dobra em resposta às forças às quais ele está sujeito durante seu desenvolvimento, como a pressão do fluido cérebro-espinhal, que o empurra para fora, e as fibras nervosas, que o puxam para dentro.”

A mesma relação matemática explicaria o grau de dobras de uma bolinha de papel. Uma única folha de tamanho A4, se amassada, terá mais dobras do que quatro ou cinco  folhas amassadas juntas. Quanto menor a espessura da superfície — e quanto maior sua área —, mais ela se dobrará sob pressão. “Isso vale para o córtex cerebral e também para as bolinhas de papel”, afirma Suzana. Segundo ela, esse mecanismo físico explicaria o grau de dobragem de todos os córtices, lisos e enrugados, incluindo o córtex humano e o de outras espécies de mamíferos, como o peixe-boi, que tem um córtex grande e pouco dobrado, e os cetáceos, cujo córtex é grande e mais dobrado do que o humano. “O grau de dobras do córtex não tem nada a ver com a quantidade de neurônios ou com o modo como estão distribuídos nessa região, mas respeita um princípio físico”, conclui.

Dobras em formação
A vantagem de ter um córtex mais dobrado, segundo ela, seria uma comunicação mais eficaz entre os neurônios. “Córtices mais espessos e, portanto, de superfície mais lisa resultariam em neurônios mais distantes uns dos outros. Isso poderia comprometer a troca de informações entre eles”, diz.

O córtex cerebral é o principal responsável por funções cognitivas como atenção, memória e linguagem. Apesar de o dobramento ser uma de suas principais características, ele nunca foi devidamente explicado. Muitos estudos tentaram entender os mecanismos relacionados à formação dessas depressões e saliências e, com eles, muitas hipóteses foram propostas nos últimos anos. Em artigo publicado em 2014 na Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS), um grupo de pesquisadores de diversas instituições da Europa e Estados Unidos explicava como conseguiu reproduzir em laboratório o desenvolvimento cerebral e a formação de suas dobras corticais. No estudo, eles verificaram que as dobras seriam resultado da interação entre a massa branca e a cinzenta do cérebro. De acordo com essa interpretação, a matéria cinzenta cresceria mais rápido do que a substância branca, desencadeando a formação dessas dobras no córtex.

Em outro estudo, publicado em 2013 na Physical Biology, pesquisadores da Inglaterra e dos Estados Unidos propuseram um modelo matemático em que o grau de dobras do córtex estaria relacionado à sua expansão tangencial, enquanto as camadas mais profundas se desenvolveriam em resposta ao estresse causado por esse processo. Se o córtex se expande mais rápido, o comprimento das circunvoluções cerebrais, chamadas giros, seria mais curto e com mais dobras, dizem eles. Em contrapartida, se esse processo for mais lento, o comprimento dessas circunvoluções seria maior e sua superfície seria mais lisa.

Entender melhor o desenvolvimento do cérebro é importante para compreender como ele funciona e quais as estratégias adotadas pela natureza para construir um órgão tão complexo que, no caso humano, permitiu que surgisse a consciência. O mecanismo físico proposto pela equipe da UFRJ oferece uma possível explicação para a lisencefalia, um transtorno pouco comum da formação do cérebro caracterizado pela ausência de dobras no córtex cerebral. Ainda que o cérebro tenha um tamanho normal, a falta de dobras pode causar perda de funções cognitivas. A lisencefalia humana está associada a mutações genéticas que perturbam a migração de neurônios durante o desenvolvimento cerebral. Como resultado, o córtex se torna mais espesso, o que, segundo Suzana, seria suficiente para que se formem menos dobras.

Para Martín Cammarota, neurocientista do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), o estudo da UFRJ poderia abrir novas perspectivas para a pesquisa nessa área. “O estudo é interessante, mas precisa ser testado experimentalmente.” Esse é o próximo passo almejado pela equipe do Rio. “Pretendemos testar essa hipótese analisando a formação das dobras no cérebro de diferentes espécies durante o desenvolvimento”, diz Suzana. “A partir desses estudos, esperamos poder compreender melhor como os neurônios se distribuem pelo córtex e que fatores são mais determinantes para o ganho ou a perda de espessura e volume.”

Artigos científicos
HERCULANO-HOUZEL, S. e MOTA, B. Cortical folding scales universally with surface area and thickness, not number of neurons. Science. v. 349, n. 6243, p. 74-7. jul. 2015.
TALLINEN, T. et al. Gyrification from constrained cortical expansion. PNAS. v. 111, n. 35, p. 12667–72. abr. 2014.
BAYLY, P. V. et al. A cortical folding model incorporating stress-dependent growth explains gyral wavelengths and stress patterns in the developing brain. Physical Biology. v. 10, n. 1. fev. 2013.

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