Um aparelho de observação de estrelas que lembra um canhão antigo, de quase 3 metros de comprimento, é uma das razões de orgulho do Museu de Astronomia e Ciências Afins (Mast), do Rio de Janeiro. Construído na França, o círculo meridiano de Gautier, como é chamado, foi instalado em 1900 em um abrigo provisório de madeira na antiga sede do Observatório Nacional, no morro do Castelo. Depois foi transferido para a sede atual, no morro do São Cristóvão, ganhou uma cúpula de madeira com estrutura metálica e funcionou durante décadas para determinar a posição das estrelas e a hora exata, fundamentais para a observação astronômica. Por falta de uso, foi desmontado em 1962, e a cúpula e o prédio que o abrigavam foram abandonados e, tempos depois, estavam em ruínas. Quando se decidiu restaurar o equipamento, em 2000, em vista de sua raridade e antiguidade, a primeira dificuldade foi encontrar as peças, dispersas pelo museu, e os parafusos, também perdidos. Com peças limpas, restauradas e polidas, o equipamento foi montado e, depois de três anos de trabalho, reinaugurado em 2004 em uma sala refeita.
Com equipe especializada, um inventário e um catálogo da coleção, planejamento e método de trabalho, o Mast é uma exceção nessa área. “Pelo Brasil, o que mais temos visto é uma quantidade imensa de objetos científicos antigos abandonados”, observa Marcus Granato, coordenador da equipe de museologia. Com sua equipe, ele tem visitado institutos de pesquisa, museus, universidades e escolas de ensino médio e encontrado objetos de valor histórico muitas vezes jogados em salas com móveis quebrados. Em um laboratório que servia de depósito de velharias de um instituto de uma universidade paulista, a equipe do museu encontrou um relógio de precisão chamado pêndula que tinha sido emprestado pelo Observatório Nacional, pelo menos quatro décadas antes. Em 2014, o Mast conseguiu trazer de volta o aparelho, hoje exposto em uma das salas de exposição do acervo. Os caçadores de tesouros científicos sabem que há muito mais em armários ou gavetas de professores, principalmente os mais antigos, que protegem os aparelhos com que trabalharam há décadas e dos quais muitas vezes não querem abrir mão.
No final de 2014, a equipe de museologia do Mast e especialistas em museologia de universidades de Pernambuco, Bahia, Rio Grande do Sul e Minas Gerais concluíram um levantamento nacional sobre objetos científicos fabricados até 1960 e não mais em uso, indicando que ainda há muito a ser identificado e valorizado – e, por outro lado, que muita coisa provavelmente já se perdeu. Das 1.486 instituições consultadas (834 universidades, 470 museus, 161 institutos de pesquisa científica e/ou tecnológica e 21 escolas de ensino médio), 1.021 relataram não possuir qualquer objeto antigo de pesquisa ou ensino de física, química, geociências e engenharias.
Uma minoria, 337 instituições (160 universidades, 139 museus, 27 institutos de ciência e tecnologia e 11 escolas), o equivalente a 32% do total, mantinha instrumentos antigos de pesquisa ou ensino, que, por lei, deveriam ser preservados: a Constituição de 1988 reconhece os objetos científicos como uma das formas do patrimônio cultural. “Não é preciso guardar tudo”, tranquiliza Granato, imaginando os protestos sobre falta de espaço para preservar as lembranças do passado, “mas deve-se guardar aqueles instrumentos, com os respectivos catálogos, que documentem a atividade científica de uma época”.
Algumas conclusões causam alívio e outras, inquietação. Mapeamentos anteriores registraram coleções de objetos antigos em bom estado expostos em museus de universidades do Rio de Janeiro, Ouro Preto, São Paulo e Porto Alegre. Mesmo nesses lugares sempre podem aparecer coisas novas. Em 2006, em uma visita ao Museu Nacional, pesquisadores encontraram 39 instrumentos científicos usados em geologia e paleontologia que ainda não haviam sido catalogados. Por outro lado, apenas algumas universidades em São Paulo, Rio e Minas Gerais mantêm ou estão criando diretrizes e abrem editais para promover a preservação de instrumentos científicos usados no ensino ou em pesquisa.
Há também iniciativas particulares bem-sucedidas, como um museu de aviões antigos mantido pela TAM no interior paulista. Há muitos museus ferroviários pelo país – um levantamento preliminar indicou mais de 60 –, embora alguns fechados por falta de equipes e recursos para manter as coleções de objetos, livros, móveis e edificações dos tempos em que o transporte ferroviário era pujante no país. Quanto menor o museu, maior a dificuldade em manter as coleções e conhecer seu valor. Em Pirapora do Bom Jesus, interior paulista, o museu de um antigo colégio religioso exibe instrumentos científicos ao lado de animais empalhados, móveis antigos e objetos históricos, como um capacete da Primeira Guerra Mundial, todos com pouca informação sobre suas histórias ou ex-donos.
O levantamento nacional mostrou também que os museus mantinham a maioria (45%) dos cerca de 30 mil objetos identificados, concentrando os mais antigos, dos séculos XVII e XVIII, indicando que provavelmente foram protegidos, enquanto as universidades, com 42% dos objetos, concentravam os do século XX. Os institutos detêm apenas 6% dos objetos e, concluíram os pesquisadores, os descartam com frequência, quando têm de renovar os instrumentos de trabalho. As 11 escolas de ensino médio, por sua vez, abrigavam 2 mil objetos, que retratam o ensino de ciências nos séculos XIX e XX. “A maioria das pessoas quer proteger os instrumentos científicos antigos, mas não sabe como”, observa Granato. Mesmo que faltem equipes, métodos de trabalho, espaços de armazenamento e dinheiro para fazer o que deveria ser feito, “sempre é possível fazer alguma coisa”, ele assegura.
A equipe do Mast tem feito bastante. No site do museu, além de relatos de restauração de objetos do museu e outros estudos, há duas publicações que podem interessar a quem guarda objetos científicos antigos. A primeira é um Thesaurus, uma espécie de dicionário com 1.153 entradas, de ábaco a wattímetro, apresentando os vários nomes, funções e fotos de cada aparelho. A outra é um manual com recomendações para a preservação de instrumentos científicos antigos, sugerindo, por exemplo, limpar apenas com um pano e jamais colar etiquetas nos objetos. Agora a prioridade é terminar – e distribuir ainda neste ano – um programa de computador para facilitar o inventário dos aparelhos e, o mais breve possível, um site com as instituições e os respectivos acervos de instrumentos científicos, desse modo reunindo as iniciativas solitárias de todo o país.
Para este ano está também prevista a restauração de uma luneta astronômica do século XIX, já instalada em uma bancada do laboratório de conservação de objetos metálicos do Mast. “Já fizemos a pesquisa histórica, o diagnóstico das peças e um modelo tridimensional da luneta, por meio de um scanner operado por uma equipe da Universidade Federal do Rio de Janeiro”, informa Granato. Um dos responsáveis pela restauração será o técnico Ricardo de Oliveira Dias, que no final da manhã do dia 16 de janeiro tirava a poeira e, “com muita paciência”, como ele disse, passava uma cera especial e óleo fino em um círculo graduado de prata de um teodolito, instrumento usado para medir distâncias em terra e no mar, fabricado no século XIX. Uma vez por ano, Dias tira a poeira de cada um dos 2 mil objetos antigos de pesquisa em astronomia, geofísica, metrologia e meteorologia do acervo do museu. Percorrer as salas de exposição do museu e ver as bússolas, astrolábios, barômetros, cintilômetros (medidor da radiação), pêndulos de precisão, medidores de marés, lunetas e telescópios, em geral de latão ou bronze, fabricados na Alemanha, Inglaterra ou na França, é uma forma de entender como a ciência era feita e as medições, muito mais trabalhosas.
Às vezes a equipe do Mast também atende a pedidos de socorro de quem não sabe o que fazer ao tirar de um armário um instrumento antigo possivelmente importante. Um dos pedidos chegou de Maria Cristina Senzi Zancul em 2007. Maria Cristina foi professora de física da Escola Estadual Bento de Abreu, criada no início do século XX em Araraquara, interior paulista, durante dez anos. Ela admirava os instrumentos antigos de ensino de física, a maioria fabricados na França ou na Alemanha, guardados nos armários do laboratório – balanças, barômetros, galvanômetros, prismas, giroscópios, telégrafos e um modelo de máquina a vapor, entre outros – e dizia que algum dia organizaria aquelas coisas.
Em 2006, depois de ter sido contratada como professora na Universidade Estadual Paulista (Unesp), ela voltou e reencontrou os instrumentos abandonados. Pensou em cuidar deles, mas reconheceu: “Eu não sabia por onde começar”. Com apoio das equipes do Mast, da Unesp e da própria escola, Maria Cristina organizou cerca de 200 equipamentos e reformou o laboratório, reinaugurado em 2009. O estudo desses objetos “pode ajudar a desvendar aspectos significativos do ensino das disciplinas científicas no passado”, ela argumentou em um artigo de 2009. Uma vez por ano Maria Cristina organiza uma exposição dos instrumentos na própria escola, mas ainda não conseguiu passar a responsabilidade de cuidar da coleção para outro professor. “A coleção está órfã.”
Encerrado o trabalho na escola de Araraquara, agora ela faz um levantamento de objetos científicos antigos em outras escolas centenárias do interior paulista. “A situação que tenho encontrado é bem triste”, diz. “Em uma escola de Penápolis, encontrei três ou quatro instrumentos, o resto ninguém sabe onde está.” Em um antigo ginásio de Ribeirão Preto, “estava tudo jogado em um canto”, ela observa. “Ninguém sabe o que fazer com essas coleções de objetos, que deveriam ser formalmente reconhecidas pelas instituições, mas não são. O valor atribuído aos objetos histórico-científicos depende muito de quem está na direção da escola.”
Os guardiães dos tesouros científicos não sabem o que fazer se as instituições não se interessam pelos objetos de valor histórico. Há outras dúvidas ainda sem resposta. Quem deve cuidar das coleções, principalmente quando os professores e os bibliotécários não querem assumir a responsabilidade e não há nenhum museólogo por perto? O que fazer quando não há ninguém disposto ou especializado nesse campo, nem dinheiro para organizar e manter os objetos?
Estas perguntas afligem Edvaldo Simões da Fonseca Jr., professor da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP). Há oito anos, ao assumir a coordenação do laboratório de topografia e geodésia, ele recebeu a responsabilidade de cuidar de uma coleção de cerca de 150 objetos, como sextantes, teodolitos, calculadoras, termógrafos, lunetas, níveis ópticos, bússolas e outros, que formam o patrimônio do laboratório. Muitos deles pertenceram ao Gabinete de Topografia, uma das unidades a partir da qual a Escola Politécnica foi criada, em 1893. No momento, dois estudantes estão cuidando do inventário dos equipamentos, mantidos em armários em uma sala ainda fechada à visitação. “Estamos tentando tornar esse patrimônio mais visível”, diz Fonseca Jr. Ele conseguiu um financiamento da própria USP para cadastrar e restaurar alguns equipamentos, mas depois o dinheiro foi retido, por causa da crise financeira da universidade, e não foi liberado até hoje.
O reconhecimento do valor das coleções pelas instituições é uma das primeiras batalhas. Em 1998, o parecer de um especialista italiano em instrumentos antigos que examinou a coleção do Mast reforçou a ideia de que os objetos eram de fato raros. Outra lição aprendida é que o resgate de objetos significa, muitas vezes, o resgate de pessoas. A recuperação do círculo meridiano só foi possível por causa da colaboração de um técnico já aposentado, Odílio Ferreira Brandão, que havia guardado em sua casa a maioria das peças. Brandão ajudou a encontrar outras peças e os parafusos, acompanhou a montagem do equipamento, mas morreu antes da reinauguração.
Projeto
Coleção de instrumentos científicos do laboratório de física da Escola Estadual Bento de Abreu de Araraquara (SP) (nº 2007/07198-0); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Maria Cristina de Senzi Zancul (Unesp); Investimento R$ 21.851,51 (FAPESP).
Artigos científicos
GRANATO, M. et al. Restauração do círculo meridiano de Gautier e reabilitação do pavilhão correspondente – Museu de Astronomia e Ciências Afins (Mast). Anais do Museu Paulista. v. 15, n. 2, p. 319-57. 2007.
ZANCUL, M. C. S. A coleção de instrumentos antigos do Laboratório de Física da Escola Estadual Bento de Abreu de Araraquara (SP). Revista Ensaio: Pesquisa em Educação em Ciências. v. 11, n. 1, p. 1-17, 2009.
GRANATO, M. et al. Cartilha de orientações gerais para preservação do patrimônio cultural de ciência e tecnologia. Mast-RJ, 14 p., 2013.