imagens Norman – Kuring - NASA/GSFC / OBPGwwA cada ano, o rio Amazonas transporta até 27 milhões de toneladas de matéria orgânica terrestre para regiões do Atlântico distantes da costa. São compostos produzidos pelas queimadas e também restos de plantas, animais e seres vivos microscópicos da floresta que chegam ao rio levados pelo vento e pela chuva. As águas do Amazonas se encarregam de lançar todo esse material no oceano, onde serve de alimento para os organismos marinhos. A quantidade de matéria orgânica, estimada agora por pesquisadores brasileiros e norte-americanos, é tamanha e avança tanto mar adentro que surpreendeu os especialistas.
Nesse trabalho, publicado na Global Biogeochemical Cycles, os pesquisadores também analisaram as transformações por que passa a matéria orgânica à medida que a água do rio se mistura à do oceano. Sozinho, o Amazonas responde por 15% a 20% do volume de água doce despejada nos oceanos do planeta. Suspensa ou dissolvida em suas águas, a matéria orgânica coletada na bacia amazônica chega ao Atlântico na altura da ilha de Marajó, no Pará. No oceano, a coluna de água doce (pluma) vinda do rio alcança 600 quilômetros de extensão e até 200 quilômetros de largura. De 2010 a 2012, cerca de 40 pesquisadores realizaram três cruzeiros à América do Sul e coletaram amostras de água em centenas de pontos distribuídos entre Óbidos, no Pará, a 800 quilômetros da foz do rio, e a região de Barbados, já no Atlântico Norte, depois de a pluma do Amazonas viajar por quase 600 quilômetros rumo ao Caribe, empurrada por correntes da costa brasileira. “As pesquisas sobre a pluma e o rio eram feitas separadamente”, conta a oceanógrafa norte-americana Patricia Yager, pesquisadora da Universidade da Geórgia e coordenadora desse projeto, o River-Ocean Continuum of the Amazon (Roca). “O objetivo do Roca é pensar o sistema de forma integrada”, diz.
Usando um espectrômetro de massa de resolução ultraelevada, os pesquisadores identificaram ao menos 4,4 mil compostos orgânicos na pluma do Amazonas. São moléculas formadas por quatro elementos químicos (carbono, hidrogênio, oxigênio e nitrogênio) que se combinam em proporções variadas. À medida que as águas do rio avançam para o oceano, esses compostos sofrem sucessivas transformações: são degradados por bactérias e outros microrganismos (biodegradação) ou pela luz (fotodegradação) e podem também gerar moléculas mais complexas. Embora ocorram simultaneamente, alguns processos são mais intensos em certos trechos do percurso.
Próximo à foz do Amazonas, bactérias digerem as moléculas orgânicas complexas e reaproveitam açúcares, aminoácidos e lipídeos. Já no oceano algas microscópicas extraem os subprodutos contendo nitrogênio, como aminoácidos e ureia. Passada a plataforma continental, uma faixa de 80 quilômetros a partir da costa, as águas se tornam menos turvas e a luz solar ajuda a degradar compostos orgânicos complexos.
Do complexo ao simples
Essas transformações biológicas e fotoquímicas deixam traços detectáveis nas amostras de água. No material vindo do rio, a proporção de hidrogênio é menor do que a de carbono, indicando que ali as moléculas orgânicas são mais complexas. Nas amostras coletadas no mar, a situação se inverte e a proporção de hidrogênio supera a de carbono, sinal de moléculas orgânicas mais simples, resultado da degradação das complexas.
Esses dados ajudam a entender o que acontece no nível químico e biológico. “A proporção menor de hidrogênio e maior de carbono nos compostos encontrados no rio sugere contribuição de material terrestre, caracterizado pela presença de anéis aromáticos [formados por seis átomos de carbono]”, conta Patricia Yager. Esses anéis, segundo a pesquisadora, são mais difíceis de ser degradados, em especial pelas bactérias marinhas.
Já a proporção de hidrogênio e carbono das amostras de água da pluma coletada no mar indica a presença de compostos alifáticos, formados por longas cadeias abertas de carbono. Esses compostos são indicativos da ação das algas, que, ao realizar fotossíntese, transformam moléculas pequenas de carbono em moléculas maiores, mais fáceis de serem digeridas e fonte de energia para as bactérias marinhas.
Apesar da ação de microrganismos e da luz solar, uma grande quantidade de matéria orgânica terrestre resiste às transformações e viaja muito além da foz do Amazonas. Em períodos de alta descarga, mais de 70% da matéria orgânica terrestre transportada pelo rio é encontrada próximo à Guiana Francesa. Nos períodos mais secos essa proporção diminui para 50%. Convertidos em números absolutos, esses dados sugerem que a pluma do Amazonas lança entre 13 milhões e 21 milhões de toneladas – em algumas ocasiões 27 milhões de toneladas – de matéria orgânica terrestre no Atlântico. “Essas estimativas podem conter vieses, causados pela heterogeneidade da pluma ou por sua vasta extensão”, pondera a oceanógrafa brasileira Patricia Medeiros, primeira autora do artigo da Global Biogeochemical Cycles.
Estudos feitos nos Estados Unidos indicam que 50% do material orgânico terrestre transportado pelo rio Mississipi é degradado perto da costa. “Sabemos que a degradação rápida ocorre no Mississipi e em outros rios. Ficamos surpresos que ela não ocorra no Amazonas”, diz Patricia Medeiros.
A brasileira tem duas hipóteses para explicar como tanta matéria orgânica do Amazonas alcança mar aberto. “Como grande parte da degradação ocorre durante o transporte no próprio rio, é possível que o material que chega ao oceano seja mais resistente”, diz. Outra possível explicação é a velocidade do transporte. Estima-se que no Mississipi o material orgânico demore meses para ir da foz ao mar aberto. No Amazonas, esse percurso é feito em 30 a 60 dias, tempo insuficiente para a degradação da matéria orgânica terrestre.
Artigo científico
MEDEIROS, P. M. et al. Fate of the Amazon River dissolved organic matter in the tropical Atlantic Ocean. Global Biogeochemical Cycles. v. 29, p. 677-90. 25 abr. 2015.