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Design

A trajetória de mulheres que criaram artefatos têxteis no país

Pioneiras tiraram partido de uma atividade associada ao universo feminino para atuar no mercado de trabalho

Peter Scheier ©Instituto Moreira Salles / Acervo do Centro de Pesquisa do MASPKlara Hartoch (ao fundo) com aluna na oficina de tecelagem instalada no Masp, no início da década de 1950Peter Scheier ©Instituto Moreira Salles / Acervo do Centro de Pesquisa do MASP

Na década de 1950, uma série de iniciativas comemorou os 400 anos da fundação da capital paulista, celebrados em 1954. Uma delas foi a criação do corpo de dança Ballet do IV Centenário, que montou um repertório especial de coreografias e apresentou-se diversas vezes no período. Com apenas 21 anos, Irene Ruchti (1931-2020), aluna da primeira turma do Instituto de Arte Contemporânea do Museu de Arte de São Paulo (IAC-Masp), idealizado por Pietro Maria Bardi (1900-1999) e Lina Bo Bardi (1914-1992), foi convidada a integrar o time de artistas comissionados para desenvolver os cenários e figurinos das peças. Responsável pelo visual de As quatro estações, ela lidou com a mesma responsabilidade atribuída a artistas já reconhecidos, como Lasar Segall (1889-1957) e Candido Portinari (1903-1962) – que são, normalmente, os nomes citados em verbetes sobre esses espetáculos.

Premiada por esse trabalho pelo Museu de Belas Artes do Rio de Janeiro, Ruchti dizia não ter sido formalmente comunicada do feito. E, embora suas criações tenham estampado a reportagem de capa do paulistano Jornal da Noite sobre a premiação, a ênfase do texto recaiu sobre a participação de Segall. “Eu estava lá no meio, a mais desconhecida, mais nova e mais insignificante entre os maiores”, relatou em entrevista a Ana Julia Melo Almeida, autora da tese de doutorado “Mulheres e profissionalização no design: Trajetórias e artefatos têxteis nos museus-escola MASP e MAM Rio”.

A pesquisa, defendida em 2022 na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), reconstrói a trajetória não só de Ruchti como de outras quatro mulheres que trabalharam com design têxtil e passaram pelos dois museus-escola citados no título do estudo: Klara Hartoch (1901-?) e Luisa Sambonet (1921-2010), também ligadas ao IAC-Masp, além de Fayga Ostrower (1920-2001) e Olly Reinheimer (1914-1986), vinculadas ao Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio de Janeiro. Marta Erps-Breuer (1902-1977), ex-aluna da Bauhaus, célebre escola alemã de arquitetura, design e artes visuais, completa o grupo analisado por Almeida (ver box).

Jornal Correio da Manhã / Acervo Arquivo NacionalFayga Ostrower mostra um dos tecidos que expôs em mostra individual no MAM do Rio de Janeiro, em 1953Jornal Correio da Manhã / Acervo Arquivo Nacional

Formada em design pela Universidade Federal do Ceará (UFC), Almeida buscou entender na tese o papel das mulheres nessa fase do design brasileiro e o lugar dos objetos têxteis na historiografia desse campo do conhecimento no país. Segundo a pesquisadora, de forma geral a produção dessas e de outras mulheres ficou obliterada. Isso porque, embora o design moderno tenha sabido entender o tecer, o costurar e o bordar (antes classificados como prendas do lar ou, na melhor das hipóteses, trabalho operário) como expressões artísticas, isso não significa que sua associação automática a um fazer feminino e menos nobre tenha ficado para trás.

A historiadora Silvana Rubino, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), recua ainda mais na linha do tempo: “A desvalorização do têxtil na arte está posta desde o movimento Arts and Crafts, na Inglaterra do século XIX. Seu grande mentor, William Morris [1834-1896], delegava o bordar às mulheres, embora ele mesmo fosse um exímio bordador”, lembra. Algumas décadas mais tarde, a Bauhaus (1919-1933), tida como revolucionária nas práticas pedagógicas, não foi diferente nesse aspecto. “As estudantes eram diretamente encaminhadas à oficina de tecelagem”, completa Rubino, que mergulhou no tema em sua tese de livre-docência, “Lugar de mulher: Arquitetura e design modernos, gênero e domesticidade” (2017).

Para Ana Paula Cavalcanti Simioni, professora do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP, a associação do trabalho têxtil a uma atividade feminina ainda permanece viva. Por isso, “alguns artistas homens que utilizam o bordado acabam sendo vistos como transgressores, tais como Leonilson [1957-1993], que com tais meios propiciou, inclusive, questionamentos importantes sobre visões padronizadas de masculinidade, que perpassam, mesmo que sutilmente, o mundo das artes”, observa a estudiosa, cuja tese de livre-docência resultou no livro Mulheres modernistas: Estratégias de consagração na arte brasileira (Edusp, 2022), publicado com apoio da FAPESP (ver Pesquisa FAPESP nº 311).

Peter Scheier ©Instituto Moreira Salles / Acervo do Centro de Pesquisa do MASP | Acervo do Centro de Pesquisa do MASPVestido Balaio, criado por Hartoch para o Primeiro Desfile de Moda Brasileira (1952), no Masp; e anúncio do eventoPeter Scheier ©Instituto Moreira Salles / Acervo do Centro de Pesquisa do MASP | Acervo do Centro de Pesquisa do MASP

Na obra, Simioni traça a biografia de Regina Gomide Graz (1897-1973). A artista têxtil viveu com a família na Suíça e frequentou a Escola de Belas Artes de Genebra – que, na contramão do que ocorria na Inglaterra, na França e na Alemanha, valorizava as artes aplicadas e formava prestigiados artistas-decoradores. Com esse perfil e a parceria profissional estabelecida com o marido, John Graz (1891-1980), também aluno da escola, ela voltou ao Brasil na década de 1920. “Regina abriu esse campo de trabalho no país”, afirma Simioni. “Na divisão das tarefas com John, que assinava o projeto inteiro, ela se ocupava dos têxteis, os quais por serem menos valorizados acabavam fazendo com que fosse vista não como autora, mas como colaboradora do seu marido.”

Nada disso impediu que a artista têxtil inaugurasse, nos anos 1940, a própria fábrica de tapetes, batizada com seu primeiro nome. “Sem Gomide, que remetia ao irmão famoso [o artista modernista Antonio Gomide (1895-1967)], e sem Graz”, prossegue Simioni. “Com essa atitude, ela conferiu autonomia à sua produção.”

Em 1951, surgiu em São Paulo uma escola decidida a formar profissionais para a embrionária indústria brasileira de mobiliário e design: o IAC-Masp. No ano seguinte, uma iniciativa parecida tomou forma no MAM do Rio de Janeiro. Precursores do ensino formal na área – a carioca Escola Superior de Desenho Industrial (Esdi), nasceria apenas em 1962 –, “ambos os espaços já discutiam o design industrial como profissão e buscavam compreender a articulação entre artes e artes aplicadas”, diz Almeida.

Única brasileira entre as seis mulheres perfiladas por Almeida, a catarinense Ruchti cursou artes plásticas na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Em 1951, entrou para a primeira turma de desenho industrial no IAC-Masp e, no ano seguinte, casou-se com o arquiteto Jacob Ruchti (1917-1974), seu professor na disciplina de composição. Com exceção da encomenda para o Ballet do IV Centenário, atuou sempre ao lado do marido. Cabia a ela elaborar os estudos da ambientação e dos interiores propostos por Jacob – os desenhos eram identificados com as iniciais de ambos.

Acervo da Funarte Rio de JaneiroFigurinos do balé As quatro estações (1954), assinados por Irene RuchtiAcervo da Funarte Rio de Janeiro

Já no Estúdio Branco & Preto, loja paulistana de mobiliário e objetos de design moderno inaugurada em 1952, que tinha Jacob como um dos sócios, a presença de Irene mal deixou vestígios. Embora a própria artista contasse que desenhou grande parte dos tecidos que estofavam os móveis, a pesquisadora localizou apenas dois registros de sua autoria. “Essa ausência, no caso dos itens de mobiliário, é recorrente nas produções que envolvem têxteis, não apenas no trabalho das mulheres, mas também por uma concepção do período sobre o tecido como um material secundário, que envolve o item, mas não o estrutura”, escreve Almeida na tese.

A pesquisadora lembra que a mesma situação foi vivenciada no Brasil por Hartoch, na parceria com o arquiteto Galiano Ciampaglia (1908-2016), e Ostrower, nas estampas para móveis do designer Joaquim Tenreiro (1906-1992). No caso de Sambonet, as lacunas de autoria se devem a dois fatores. Em primeiro lugar, ela não era institucionalizada como docente do IAC-Masp, embora tenha liderado uma oficina de confecção de roupas e acessórios para o Primeiro Desfile da Moda Brasileira, realizado no museu em 1952. Além disso, sua produção era compartilhada com o marido, o pintor Roberto Sambonet (1922-1995), e outros artistas e designers.

Já Ruchti trabalhou com paisagismo ao lado do marido, enquanto ele respondia pelo projeto de arquitetura. Após a morte do parceiro, ela abraçou de vez a carreira de paisagista. “Nessa fase, sua assinatura ganhou vida própria, já desvinculada de Jacob”, diz Almeida, que realizou pesquisas na Alemanha, França e Itália para rastrear as trajetórias das seis mulheres. “A vida delas foi marcada por fluxos migratórios”, diz a designer.

É o caso de Fayga Ostrower. Nascida na Polônia, ela se mudou para o Brasil em 1934. No início da década de 1950, com o surgimento dos cursos livres no MAM do Rio de Janeiro, foi contratada como professora, ministrando o ateliê de composição e análise crítica, onde permaneceu até os anos 1970. “Fayga ficaria conhecida a partir do final dos anos 1950 pelas gravuras abstracionistas, tendo sido premiada na Bienal de São Paulo e na de Veneza, mas ela já produzia tecidos desde o início daquela década”, conta Almeida. “Há no acervo do Instituto Fayga Ostrower [RJ] pouco mais de 170 pedaços de tecido de sua autoria, mas a produção da artista pode chegar a 500 amostras de padrões têxteis.”

Uma de suas alunas era Olly Reinheimer, que trocou a Alemanha pelo Rio de Janeiro em 1936. Nos anos 1950 começou a frequentar os cursos livres do MAM. “O material de arquivo e os documentos que sobraram nos levam a entender que sua maior atuação se deu nos têxteis para moda. Há poucos registros dos itens para decoração”, conta a antropóloga Patrícia Reinheimer, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e autora de um livro sobre a avó, Olly: Raça, classe e gênero na invenção de uma modernidade rústica (Editora Telha, 2023).

Nos anos 1960, a artista e designer expôs em espaços como o Museu de Artesanato Contemporâneo de Nova York, além de ter participado da 1ª Bienal de Arte Aplicada do Uruguai. Hoje, seus cerca de 10 mil itens, entre objetos pessoais, livros, documentos e criações, estão sob os cuidados da neta, em Petrópolis (RJ), que pretende expor esse material antes de buscar instituições que assumam a tutela do acervo. “Guardar e manter um volume como esse sozinha é um desafio muito grande. É comum os herdeiros quererem se desfazer rapidamente do acervo. Às vezes, a falta de reconhecimento de uma artista se dá dentro da própria família”, finaliza a antropóloga.

Do tear ao microscópio
Formada em tecelagem pela escola Bauhaus, Marta Erps-Breuer contribuiu para estudos de genética na USP

Acervo do Departamento de Genética e Biologia Evolutiva do IB-USPErps-Breuer na USP, em 1937Acervo do Departamento de Genética e Biologia Evolutiva do IB-USP

Em sua tese de doutorado, a pesquisadora Ana Julia Melo Almeida também investigou a trajetória da alemã Marta Erps-Breuer (1902-1977), dona de um percurso incomum: ela foi estreita colaboradora dos geneticistas André Dreyfus (1897-1952) e Crodowaldo Pavan (1919-2009), na Universidade de São Paulo (USP).

Nos anos 1920, Erps-Breuer estudou na escola Bauhaus. “Marta fez oficina de tecelagem e frequentou os ateliês de escultura, tipografia e mobiliário, além de ter entrado em contato com técnicas fotográficas”, diz Almeida. “Percebe-se que apesar das restrições e do direcionamento à oficina de tecelagem, as mulheres circularam por outras searas e adquiriram diversas habilidades.”

Em 1931, ela imigrou para o Brasil após a separação do designer Marcel Breuer (1902-1981), seu contemporâneo na Bauhaus. Em carta ao colega Kurt Schmidt (1901-1991), também ex-Bauhaus, desabafou: “Decidi não querer mais ser somente a mulher de um gênio. Eu queria […] me encontrar.”

Na capital paulista, passou a prestar serviços de desenhista para dois médicos. Pouco depois, em 1935, foi trabalhar como técnica de laboratório no Departamento de Biologia Geral, chefiado por Dreyfus na recém-criada USP. Mesmo sem formação na área, contribuiu para pesquisas no campo da genética e da biologia evolutiva. Os primeiros estudos com participação de Erps-Breuer datam da década de 1940. Tinham como foco espécies de insetos, a exemplo de Telenomus fariai (vespa), e foram assinados com Dreyfus.

Em 1955, ela publicou artigo com Pavan a partir da observação de uma mosca do gênero Rhynchosciara. No trabalho, a dupla derruba o dogma de que a quantidade de DNA em uma célula era constante (ver Pesquisa FAPESP nº 283). Além de participar das pesquisas, também era responsável pela documentação e detalhamento dos estudos por meio de desenhos, esquemas, esculturas e fotografias.

Apesar do desvio de rota, não perdeu o design de vista. Em 1938 participou da exposição Bauhaus: 1919-1928, realizada no Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA). No final da década de 1960, mandou material para a mostra sobre os 50 anos da instituição. Tudo foi recusado, sob o pretexto de que os curadores já haviam escolhido uma tapeçaria de sua autoria. “Porém Marta afirmou em carta que a peça não havia sido tecida por ela, mas por outra colega. Esse erro de atribuição denota que havia um desconhecimento dos trabalhos produzidos pelo grupo da tecelagem”, conclui Almeida.

Projetos
1.
 Artefatos têxteis: Mulheres e design no Brasil (nº 18/00487); Modalidade Bolsas no Brasil – Doutorado; Pesquisadora responsável Maria Cecilia Loschiavo dos Santos; Beneficiária Ana Julia Melo Almeida; Investimento R$ 163.355,21.
2. Mulheres, migrações e espaços de profissionalização: Relações de gênero no design moderno (nº 19/06880-9); Modalidade Bolsas no Exterior – Estágio de Pesquisa – Doutorado; Pesquisadora responsável Maria Cecilia Loschiavo dos Santos; Beneficiária Ana Julia Melo Almeida; Investimento R$ 136.515,23.

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