Em um laboratório excepcionalmente amplo do segundo andar de um casarão de estilo neoclássico pintado de ocre, de cujas janelas se pode apreciar o jardim repleto de árvores da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) em Ribeirão Preto, novos estudos fundamentam os potenciais usos médicos do canabidiol, uma das substâncias mais abundantes de uma planta que desperta paixões, delírios doces ou tristes recordações, críticas enfurecidas e, nos últimos tempos, um crescente interesse científico: a maconha. Como demonstrado por meio de experimentos com animais realizados pela equipe de Francisco Guimarães, o canabidiol detém a ansiedade de modo equivalente a medicamentos sintéticos utilizados há décadas e, de acordo com os resultados preliminares de um dos estudos em andamento, pode também reduzir a depressão. Como outros estudos haviam indicado, o canabidiol pode funcionar também contra leucemia, epilepsia e doenças neurodegenerativas como o mal de Alzheimer.
Em outro laboratório da USP de Ribeirão Preto, no quarto andar do Hospital das Clínicas, atrás do casarão que já foi a sede de uma fazenda de café, Antonio Zuardi encontrou evidências de que esse composto pode funcionar também como antipsicótico e aplacar os sintomas mais graves da esquizofrenia, como os delírios e a dificuldade de reconhecer o próprio corpo. Zuardi deve começar neste mês os testes em portadores de transtorno bipolar do humor, antes chamado de psicose maníaco-depressiva, já que o canabidiol poderia atuar contra a intensa aceleração do pensamento e outros sintomas psicóticos que acompanham esse tipo de distúrbio mental.
Em paralelo, pesquisas realizadas principalmente nos Estados Unidos, na Inglaterra e na Austrália mostram que o canabidiol pode proteger o sistema nervoso central, ampliando a sobrevida de neurônios, além de ajudar a deter inflamações e a controlar a pressão arterial. Há indicações de que o canabidiol possa ainda bloquear o crescimento de tumores no cérebro, abrindo perspectivas de que esse composto químico – que nada tem a ver com os efeitos típicos da maconha – possa ser utilizado sozinho ou em combinação com o mais estudado dos constituintes da famosa planta, o delta-9-tetraidrocanabinol ou, para encurtar, THC.
Igualmente versátil, mas com alguns efeitos colaterais que poderiam ser amenizados pelo canabidiol, o THC já é a base de dois medicamentos, um nos Estados Unidos e outro no Reino Unido, ambos indicados para conter a náusea e o vômito do tratamento quimioterápico contra o câncer. Os franceses, observando um dos fenômenos resultantes do consumo da Cannabis sativa – a fome intensa, chamada de larica por quem tem alguma familiaridade com a planta –, criaram uma categoria de medicamentos que bloqueia as moléculas de superfície nas quais o THC se liga, ajudando assim as pessoas a perder peso, de acordo com os testes já feitos. A GW Pharmaceuticals, sediada na Inglaterra, combinou o canabidiol e o THC em proporções iguais em um medicamento aprovado no Canadá em 2005 contra dores resultantes da esclerose múltipla.
Os artigos científicos que relatam os efeitos do canabidiol e do THC, fundamentando o desenvolvimento de novos medicamentos, inevitavelmente remetem às pesquisas pioneiras que começaram a ser feitas há 30 anos por uma equipe da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) coordenada pelo professor Elisaldo Carlini, da qual Zuardi fez parte. As descobertas têm aumentado o conhecimento sobre a planta também chamada de erva-do-diabo em razão de seu poder entorpecente: trata-se, afinal, da droga ilícita mais consumida no mundo. Segundo o Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (Cebrid), 6,9% da população brasileira já utilizou a maconha pelo menos uma vez na vida – um resultado abaixo dos Estados Unidos (34,2%), do Reino Unido (25%) ou do Chile (19,7%). Seu impacto social, no entanto, pode não ser tão intenso quanto se imagina. De acordo com o Cebrid, o número de dependentes atingiria 1% da população do país, o equivalente a cerca de 450 mil pessoas. Das 55 mil internações hospitalares causadas por drogas registradas em 2005, apenas 1,3% estavam associadas à maconha e 90% ao álcool.
Fibras nas caravelas
Originária da Ásia, de folhas alongadas e recortadas, a Cannabis sativa pode atingir 3 metros de altura. Seu caule fornecia uma fibra natural bastante resistente, o cânhamo, usado nas velas das embarcações portuguesas que chegaram a Salvador em 1500. Algumas décadas mais tarde chegariam as sementes de cânhamo, escondidas nas bonecas de pano amarradas nas pontas das tangas dos escravos negros, de acordo com o livro Cannabis sativa L. e substâncias canabinóides em medicina, editado pelo Cebrid.
No início do século passado, o cânhamo deixou de ser usado à medida que suas equivalentes sintéticas começaram a ser produzidas. Mais tarde criou-se uma associação entre o hábito de fumar as folhas e as flores dessa planta com as classes mais baixas da população e com a loucura. Essas relações hoje são vistas com restrições por pesquisadores como Franjo Grotnhermen, do Instituto Nova, da Alemanha, que demonstra quão inconsistentes elas são em um artigo publicado na edição de 15 de maio deste ano da revista médica Lancet.
A imagem negativa da planta que se tornou um ícone da rebeldia começou a se desfazer há cerca de 40 anos com a identificação da estrutura química de seus componentes e a descoberta de como poderiam funcionar no organismo. As pesquisas sobre os efeitos da planta começou a ganhar legitimidade principalmente com a descoberta das moléculas da superfície das células nervosas, chamadas receptores CB1 e CB2, às quais o THC se ligaria. Surgiu então uma pergunta torturante: o sistema nervoso teria um mecanismo natural para lidar com o THC? A dúvida só se desfez quando Raphael Mechoulam, da Universidade de Jerusalém, em Israel, isolou uma molécula muito semelhante ao princípio ativo da maconha, que ganhou o nome de anandamida – em sânscrito, “ananda” significa bem-aventurança. Seria apenas o primeiro dos endocanabinóides, mensageiros químicos produzidos quando as células nervosas são estimuladas e consumidos em poucos segundos.
Contra insetos
Além do THC, a maconha contém outras 65 substâncias chamadas canabinóides, que podem exercer algum efeito sobre os neurônios – a maioria delas foi muito pouco estudada. Algumas delas têm efeitos opostos entre si, como o próprio canabidiol, que inibe a ação do THC. Ambos apresentam uma estrutura química muito parecida e se formam nas pequenas glândulas que recobrem principalmente as folhas e as flores femininas da Cannabis. Quando essas frágeis glândulas se rompem, é liberada uma resina de alto poder entorpecente, conhecida como haxixe, que para a planta deve funcionar como defesa contra insetos.
Responsável pelos efeitos mais conhecidos da maconha, como a sedação e a euforia, o THC tem tido amplas aplicações médicas: mostrou-se capaz de aplacar dores, enjôos e processos inflamatórios, além de estimular o apetite. Tamanha versatilidade explica por que essa planta começou a ser cultivada e utilizada com finalidades médicas na China há cerca de 6 mil anos. Seu uso terapêutico atingiu um clímax no final do século 19, quando era fácil obter extratos de qualidade, até diminuir drasticamente nas primeiras décadas do século passado, “em grande parte pela dificuldade na obtenção de resultados consistentes de amostras da planta com diferentes potências”, escreve Zuardi em um artigo a ser publicado na Revista Brasileira de Psiquiatria.
Contra dores
Estudos feitos no Brasil, nos Estados Unidos e na Inglaterra indicam que o THC pode ajudar a amenizar problemas de saúde como Aids, dores da artrite, esclerose múltipla e insônia. “Não há mais justificativa ética para os médicos deixarem de receitar o THC”, comenta Carlini, pioneiro no Brasil do estudo sobre os efeitos da maconha. Um dos trabalhos mais recentes, realizado por uma equipe do Imperial College London e publicado em maio na Anesthesiology, indica que o extrato da Cannabis – uma mistura de canabinóides, predominando o THC – ajuda a aliviar dores que surgem depois de cirurgias com efeitos colaterais mínimos em baixas doses; doses mais altas causaram náusea e taquicardia.
O THC isolado apresenta outros efeitos indesejados, como o riso frouxo e as gargalhadas descontroladas, que podem durar duas ou três horas, de acordo com a descrição de uma edição de 1888 do Formulário e guia médico, de Pedro Luiz Napoleão Chernoviz, que Carlini retira da estante e lê com cuidado – ali estão também usos hoje pouco mencionados, como o tratamento de bronquite crônica e diferentes tipos de falta de ar ou dispnéia. Ele próprio, em um artigo de revisão publicado em 2004 na Toxicon, menciona outros riscos: o THC pode também reduzir a capacidade de discriminar intervalos de tempo e distâncias, a vigilância, a memória e a habilidade de trabalhos mentais e gerar pensamentos desconectados, ansiedade, reações de pânico, delírios ou alucinações. Já o canabidiol até agora só apresentou um efeito colateral, a sedação, em doses muito altas.
É por essas razões que o canabidiol poderá ser adotado em um primeiro momento para reduzir os efeitos indesejados do THC – uma possibilidade que fortalece o trabalho desenvolvido desde 1998 pela GW Pharmaceuticals com o Sativex, medicamento que combina os dois compostos em proporções iguais. A aliança entre as duas substâncias irmãs poderá ir além da esclerose múltipla, a doença para a qual o Sativex já foi aprovado para uso médico pelo governo canadense. Nos Estados Unidos, a Agência de Alimentos e Medicamentos (FDA, na sigla em inglês) o qualificou como nova droga sob investigação (IND), permitindo o início dos testes em busca de alternativas para reduzir a dor de pessoas com câncer.
Para mostrar os mecanismos pelos quais a combinação de canabidiol e THC poderiam agir e evitar os efeitos indesejados do uso isolado do THC, em um artigo publicado em 2005 na revista Medical Hypotheses, Ethan Russo, pesquisador da GW e das universidades de Washington e de Montana, ambas nos Estados Unidos, apóia-se na rica safra de trabalhos produzidos entre 1970 e 1985 no laboratório da Unifesp dirigido por Carlini e ainda hoje muito mencionados nos estudos exploratórios sobre a Cannabis sativa. Carlini e seu então aluno de doutorado Jomar Medeiros Cunha, hoje professor titular na Universidade Federal de Uberlândia, em Minas Gerais, haviam demonstrado que o canabidiol reduzia pela metade as convulsões de portadores de epilepsia. Foi também Carlini que mostrou em animais que o canabidiol às vezes ampliava e outras vezes bloqueava o efeito do THC. Somente em 1990 é que Guimarães, na USP de Ribeirão Preto, resolveu esse mistério demonstrando que os resultados conflitantes observados em modelos animais de ansiedade com o canabidiol poderiam ser explicados pela dose: doses baixas produzem efeitos ansiolíticos, enquanto doses altas, não.
Os efeitos prejudiciais da Cannabis
Evidentemente as potenciais indicações médicas da Cannabis sativa não justificam seu uso recreacional, marcado por uma série de efeitos deletérios sobre o organismo. Olhos avermelhados, boca seca e coração acelerado são só os primeiros sinais. Fumar maconha continuamente pode provocar nos homens uma diminuição da testosterona, o hormônio que dá massa muscular, deixa a voz mais grossa, faz crescer a barba e aciona a produção de espermatozóides; nas mulheres, as alterações hormonais podem até inibir a ovulação. A fumaça, por ser irritante, pode afetar os pulmões e gerar problemas respiratórios – o mais comum é a bronquite. Em paralelo à sensação de calma, relaxamento e vontade de rir, o uso contínuo pode provocar tremor, sudorese, angústia e medo de perder o controle mental – a má viagem ou bad trip, como os usuários chamam. As perdas temporárias da capacidade de percepção do espaço, da memória de curto prazo e do pensamento abstrato podem prejudicar o desempenho de atividades que exigem atenção e concentração como estudar ou dirigir. O uso contínuo pode ainda despertar ou agravar doenças psíquicas. Mais informações: Cebrid.
Ousadia
Quando passou pelo laboratório de Carlini, entre 1976 e 1980, para fazer seu doutorado sob a orientação de Isaac Karniol, Zuardi fez algo ousado: testou os dois compostos em oito voluntários saudáveis, que conheciam a maconha apenas de ouvir falar. A cada semana, eles recebiam placebo, canabidiol, THC, uma mistura de canabidiol com THC ou diazepam, um ansiolítico bastante conhecido, que servia como controle ativo. O THC, sozinho, produzia ansiedade e sintomas psicóticos como as intensas alterações de pensamento, que diminuíam bastante quando o participante do estudo recebia também canabidiol. “Foi a primeira indicação dos possíveis efeitos ansiolíticos e antipsicóticos do canabidiol”, conta Zuardi.
Há dois anos seu aluno José Alexandre Crippa coordenou um experimento que demonstrou por meio de imagens do sistema nervoso que o canabidiol ativa as regiões do encéfalo associadas à ansiedade, nas quais aumentou o fluxo sangüíneo. Também ajudando a aprofundar e explicar os estudos feitos há 25 anos, Leonardo Resstel, Fabrício Moreira e Sâmia Joca, no laboratório de Guimarães, em um trabalho aceito para publicação na Behavioral Brain Research, mostraram que o canabidiol pode funcionar tão bem quanto o diazepam para reduzir o medo condicionado em ratos.
Os estudos com esquizofrenia estão menos maduros. Em 1995 Zuardi tratou uma mulher de 19 anos que padecia de sérios efeitos colaterais com o haloperidol e outros medicamentos indicados contra esquizofrenia. Nesse caso o canabidiol funcionou bem. Mas em outro teste, com três participantes resistentes ao tratamento convencional, o canabidiol trouxe apenas ganhos modestos, indicando que as pessoas resistentes a outros medicamentos também não apresentam uma boa resposta a esse componente da Cannabis sativa.
Mesmo assim há boas perspectivas. Um artigo de revisão publicado no início do ano no Brazilian Journal and Biological Research propõe que o canabidiol possa trazer benefícios a portadores de esquizofrenia que não apresentem resistência a outros medicamentos. Com uma vantagem: sem causar a rigidez muscular e os tremores que podem surgir com os antipsicóticos normalmente utilizados. “O haloperidol ativa duas regiões do sistema nervoso, as áreas límbicas e os núcleos da base, levando à manutenção de uma postura anormal”, observa Guimarães, “enquanto o canabidiol ativa apenas as áreas límbicas”. Os resultados iniciais de um teste com dezenas de pessoas coordenado por Markus Leweke, da Universidade de Köln, da Alemanha, indicam que o canabidiol pode atuar tão bem quanto a amisulprida, outro antipsicótico bastante empregado.
“Oportunidade valiosa”
Se algumas portas se abrem, outras, porém, se fecham. A FDA soltou no final de abril uma declaração que proibia qualquer uso médico da maconha, reforçando a divisão entre o governo federal e os 11 estados norte-americanos que já haviam aprovado o uso da droga para aliviar dores. O comunicado gerou protestos ao argumentar que não havia evidências da segurança e eficácia do emprego medicinal da maconha, embora o próprio Instituto de Medicina dos Estados Unidos tivesse recomendado em 1999 que o uso da planta contra náusea, perda de apetite e ansiedade fosse estudado mais intensivamente, diante dos resultados positivos que já haviam sido obtidos. “Cientificamente”, diz Guimarães, “não há como justificar essas restrições”.
Mas ele aposta: dessas pesquisas surgirão outros medicamentos. Em um estudo publicado em 2005 na Drugs of the Future, Leonora Long, Daniel Malone e David Taylor, da universidade australiana de Monash, sustentam que a exploração dos constituintes da maconha como o canabidiol representa “uma oportunidade clínica valiosa”. Certamente as oportunidades de aproveitamento das pesquisas feitas no Brasil seriam mais claras se não houvesse um vácuo tão grande entre as universidades e as indústrias.
Para os cientistas está começando um novo ciclo de uso dos derivados da Cannabis como medicamento. “Um uso mais consistente que no passado”, assegura Zuardi. “As estruturas dos compostos químicos são agora conhecidas, os mecanismos de ação no sistema nervoso estão sendo elucidados e a efetividade e segurança do tratamento estão sendo cientificamente provadas.”
O Projeto
Participação do glutamato e do óxido nítrico na fisiopatogenia de distúrbios psiquiátricos (02/13197-2); Modalidade: Projeto Temático; Coordenador: Francisco Silveira Guimarães – USP; Investimento: R$ 501.016,74 (FAPESP)