A Sociedade de Abastecimento de Água e Saneamento (Sanasa), órgão responsável pelo fornecimento de água e tratamento de esgoto do 1,1 milhão de moradores de Campinas, no interior paulista, vai iniciar em setembro um estudo pioneiro com a finalidade de implantar no Brasil o primeiro sistema de produção de água de reúso potável, destinada ao abastecimento da população. O projeto será realizado com apoio do Centro Internacional de Referência em Reúso de Água (Cirra), da Universidade de São Paulo (USP), um dos principais órgãos de pesquisa na área. Produzido a partir do tratamento avançado de efluentes domésticos, o reúso é apontado como uma das alternativas para a escassez de água, um problema que surge quando as chuvas são insuficientes, como nos dois últimos anos na região Sudeste.
No estudo da Sanasa serão estabelecidos parâmetros e analisados os melhores processos de tratamento a fim de se projetar um sistema em escala real de reúso potável. O projeto em escala-piloto – fase de pesquisas de laboratório que antecede os equipamentos definitivos utilizados na estação de tratamento – terá capacidade para fazer o tratamento de 700 litros de esgoto por hora. “Esse piloto será alimentado com a água de reúso não potável que já produzimos na Epar [Estação Produtora de água de Reúso] Capivari II”, conta o tecnólogo em saneamento Renato Rossetto, gerente de operação de esgoto da Sanasa. “Esperamos finalizar o estudo em sete meses.”
A água de reúso pode ser classificada em dois tipos: não potável e potável. Hoje, no Brasil, poucas companhias de abastecimento, entre elas a Sanasa, a Sabesp e a Companhia de Saneamento de Minas Gerais (Copasa), produzem água de reúso não potável, que pode ser empregada na lavagem de pisos, descarga de banheiros, irrigação de jardins e culturas agrícolas, caldeiras industriais e sistemas de resfriamento, entre outras finalidades. Já a água de reúso potável, aquela destinada ao consumo direto pela população (para beber, cozinhar e higiene pessoal), precisa atender a padrões elevados de potabilidade e ainda não está disponível no país. Esse tipo de reúso pode ser classificado como direto, quando o efluente tratado é injetado diretamente na rede de distribuição, ou indireto, quando o líquido é despejado nos mananciais usados para captação de água pelas companhias de abastecimento, sofrendo, em seguida, um novo sistema de processamento nas estações de tratamento de água.
Podcast: Ivanildo Hespanhol
“Temos tecnologia para tratar efluentes e transformá-los em água de reúso potável, que a população pode beber com segurança, sem risco nenhum. Mas ainda falta no Brasil uma legislação a respeito”, diz o engenheiro Ivanildo Hespanhol, diretor do Cirra e um dos maiores especialistas em reúso de água no Brasil. “Com o projeto da Sanasa pretendemos mostrar que é viável produzir água potável a partir de esgoto e, dessa forma, pressionar as autoridades a criar uma norma específica sobre o assunto”, diz ele. A água de reúso é uma solução moderna, economicamente viável e que conta com tecnologia comprovadamente eficaz, segundo Hespanhol. Essa prática já existe em diversos países, entre eles Estados Unidos, África do Sul, Austrália, Bélgica, Namíbia e Cingapura. “Nunca se detectaram problemas de saúde pública associados ao reúso nesses países”, diz o especialista.
Maior companhia de saneamento do país, a Sabesp é a empresa líder na produção desse tipo de água. Com capacidade instalada de aproximadamente 830 litros por segundo, o reúso é feito em quatro estações de tratamento de esgoto (ETEs) da Região Metropolitana de São Paulo (RMSP) – Barueri, Jesus Neto, Parque Novo Mundo e São Miguel – e na Estação de Produção de Água Industrial Aquapolo, um projeto em parceria com a empresa Odebrecht Ambiental. De acordo com a Sabesp, o volume produzido é comercializado para cerca de 50 clientes, entre eles prefeituras, construtoras e indústrias dos setores têxtil, petroquímico e de papel e celulose. O fornecimento, exclusivamente para fins não potáveis, é feito via rede adutora, sendo que uma parcela minoritária dos clientes recebe o líquido por caminhões-pipa. A empresa Aquapolo, criada em 2012 pela Sabesp, é, segundo a companhia, o maior projeto do tipo na América Latina e um dos 10 maiores do mundo. A estação fornece água para o polo industrial de Mauá e indústrias da região do ABC, em São Paulo.
Limpeza dos rios
Crítico da política de trazer água de lugares distantes para abastecimento dos moradores de São Paulo, Hespanhol afirma que uma solução sustentável e de longo prazo para a crise hídrica em São Paulo passa, necessariamente, pela implantação da tecnologia de reúso. No fim de junho, ele apresentou, durante o workshop Subsídios para Suprimento de Água na Região Metropolitana de São Paulo, realizado na Escola Politécnica da USP, uma proposta que prevê a implantação desse sistema utilizando membranas de ultrafiltração e tecnologias avançadas.
Nos primeiros cinco anos do projeto seria implantado um sistema indireto, pelo qual o esgoto seria convertido em água não potável e armazenado em um reservatório, sendo posteriormente tratado para virar água potável e ser distribuído à população. Na segunda etapa, nos cinco anos seguintes, seria implementado o reúso direto. “Tecnologias como membranas, osmose reversa, processos oxidativos avançados e carvão ativado possibilitariam converter o esgoto em água potável para ser distribuída diretamente à população”, explica o diretor do Cirra. Nos 10 anos seguintes seria feita a limpeza dos rios Tietê e Pinheiros, que deixariam de receber efluentes, já que eles estariam sendo reutilizados.
O Brasil já domina a tecnologia de fabricação de membranas de ultrafiltração, componente fundamental dos biorreatores com membrana (ou MBR, sigla para Membrane BioReactor), que é o sistema mais empregado para a produção de água de reúso. “A pesquisa para desenvolvermos no Cirra o protótipo de uma membrana de ultrafiltração começou em 2009, com um projeto Pipe [Programa de Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas] da FAPESP, envolvendo a Escola Politécnica e a empresa Ambihidro Engenharia Ambiental”, conta o engenheiro químico José Carlos Mierzwa, professor do Departamento de Engenharia Hidráulica e Ambiental da Poli-USP.
Essas membranas, dotadas de poros com 0,01 a 0,1 micrômetro de diâmetro, são uma barreira eficiente, capaz de reter partículas sólidas com diâmetro mil vezes menor do que um fio de cabelo, inclusive vírus e bactérias. “Existem no mundo menos de 10 fabricantes de grande porte desse produto. Nossa intenção é disponibilizar a tecnologia que criamos por meio de uma parceria entre o Cirra e uma companhia interessada ou, mesmo, pela transferência de tecnologia”, diz Mierzwa, que também é o coordenador de projetos do Cirra.
Um estudo comparativo conduzido pela doutoranda Izabela Major Barbosa, aluna da Poli e orientanda de Mierzwa, mostrou que as membranas sintetizadas no Cirra tiveram melhor desempenho do que os modelos comerciais. “A adição das nanopartículas de argila na composição do material levou à redução da adesão de biofilme na membrana, o que elevou a capacidade de filtração. Com isso, nossa membrana apresentou melhor resultado do que as outras”, explica Izabela. O biofilme a que ela se refere é formado por partículas retidas nos poros da membrana. As membranas de ultrafiltração fazem parte da etapa inicial do tratamento do esgoto nas estações de reúso, que podem ter diferentes configurações (ver no infográfico as etapas básicas de um sistema-padrão). Em seguida, o efluente, já livre de boa parte da carga de contaminantes, é submetido a tratamentos avançados em série, baseados no conceito de múltiplas barreiras, para tornar o produto próprio para uso.
“A configuração do sistema avançado de tratamento deve ser pensada em função das características do esgoto a ser tratado”, explica Ivanildo Hespanhol. “Mas, seja qual for, a tecnologia hoje disponível possibilita a produção de uma água de reúso segura para consumo”, diz o pesquisador. “O uso do efluente doméstico é um caminho natural para termos um processo sustentável na produção de água no país”, afirma o especialista em recursos hídricos Gesner Oliveira, ex-presidente da Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) e sócio da consultoria GO Associados. “Hoje, a água de reúso representa menos de 1% do consumo nacional de água. Seria muito interessante se houvesse mais incentivo para essa prática e o governo estabelecesse metas para elevar paulatinamente esse percentual.”
Projetos
1. Produção de sistemas de membranas de polissulfona e de membranas de polissulfonas nanocompósitas de micro e ultrafiltração para tratamento de água para fins potáveis (nº 2006/51800-3); Modalidade Programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe); Pesquisador responsável Ivanildo Hespanhol (Ambihidro); Investimento R$ 50.408,54 e US$ 5.770,83
2. Avaliação de membranas modificadas de ultrafiltração em biorreatores de membranas submersas (nº 2013/06821-6); Modalidade Bolsa de Doutorado (Izabela Major Barbosa); Pesquisador Responsável José Carlos Mierzwa (USP); Investimento R$ 112.085,22