Eduardo SancinettiNa manhã de 5 de julho passado, uma terça-feira, Aline olhou para a mãe em busca de apoio para enfrentar um medo antigo. Aos 11 anos, era a segunda vez na vida que experimentava leite de vaca. Da primeira, ela não se lembra, porque só tinha 3 meses de idade. Mas sua mãe não tem boas recordações. Quinze minutos depois de tomar uma mamadeira, adicionada às mamadas ao peito para ajudar a ganhar peso, Aline começou a passar mal. Manchas vermelhas brotaram na pele, o peito passou a chiar e o corpo amoleceu. Só no hospital Roselaine Aragão descobriu que Aline tinha alergia a leite.
Por recomendação médica, as mamadeiras foram eliminadas, mas o pediatra não avisou que a lista de produtos proibidos incluía, além do leite, seus derivados. Três meses mais tarde Aline teve outra crise alérgica depois de duas ou três colheradas de um alimento infantil que, a mãe não sabia, também levava leite de vaca. De lá para cá, só aumentaram as restrições. Biscoito não pode, chocolate não pode e sorvete também não. Pizza, só sem queijo. E até com o sabonete e os medicamentos é preciso tomar cuidado porque podem conter leite. Roselaine passou a ler bulas de remédios e rótulos dos alimentos e a preparar comida sem nenhum tipo de laticínio. Na casa, nem o gato bebia leite, porque imediatamente Aline começava a se coçar. “Se alguém comia pizza ou abria uma caixa de leite por perto, eu logo ficava com medo. Pensava: ‘Vou passar mal’”, conta a garota, que mora em Mairinque, a 70 quilômetros de São Paulo, e desde junho viaja com a mãe às terças-feiras até a capital para um tratamento que promete mudar sua vida.
No Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP), Aline e um grupo restrito de pessoas – cerca de três a cada mês – passam por uma terapia chamada dessensibilização, que tenta domar a resposta disparada pelo sistema de defesa contra componentes dos alimentos. Como em outras alergias, o sistema imune de quem tem hipersensibilidade a algum alimento costuma reagir de modo exagerado, provocando sinais que vão de uma incômoda coceira na pele ou um ruidoso ataque de espirros a dores abdominais. Mais raramente pode haver queda brusca da pressão arterial, provocando desmaios e tontura; estreitamento das vias aéreas, que torna difícil a respiração; e, em casos extremos, o chamado choque anafilático, que pode fatal se não socorrido a tempo.
Durante o tratamento, feito sob os cuidados dos alergistas Fábio Morato Castro e Ariana Campos Yang, do Hospital das Clínicas, adultos e crianças como Aline são expostas ao longo de semanas justamente ao alimento que lhes causa alergia, reação exacerbada do sistema imune, que, mostram estudos de pesquisadores de São Paulo e Minas Gerais, ativa áreas cerebrais relacionadas à ansiedade e provoca uma inflamação leve no tecido adiposo.
Há tempos, aliás, se sabe que a alergia aos alimentos consiste em um elaborado mecanismo natural de limpeza que mobiliza os sistemas circulatório, gastrointestinal e respiratório. Mas só recentemente, a partir de estudos com animais, surgiram evidências de que o sistema nervoso central e o endócrino também participam.
Foi o grupo do imunologista Nelson Monteiro Vaz, da Universidade Federal de Minas Gerais, que nos anos 1990 obteve os primeiros indícios de que o cérebro é afetado pelas reações alérgicas e, por sua vez, as influencia. Sob a orientação de Vaz, a imunopatologista Denise Carmona Cara desenvolveu um modelo experimental em que camundongos eram expostos repetidas vezes a alérgenos de alimentos, como ocorre com quem tem alergia, e observou que as crises alérgicas afetavam o comportamento dos bichos.
Depois de tornar camundongos sensíveis ao ovo, ela os colocou em uma gaiola com dois tipos de bebida disponíveis: água pura ou água açucarada contendo ovoalbumina (proteína causadora de alergia). Como todo roedor, os camundongos sem alergia preferiram a água adoçada. Os alérgicos até experimentaram das duas garrafas, mas depois dos primeiros sinais da alergia deixaram de lado a bebida doce e passaram a tomar água pura. Era um sinal de que, de algum modo, a atividade do sistema imune estava influenciando o comportamento dos animais – e os levando a evitar o que não fazia bem. Denise conseguiu ainda induzir o mesmo comportamento em animais saudáveis ao injetar-lhes soro de camundongos com alergia.
Anos mais tarde, em uma série de testes comportamentais com camundongos sensibilizados pela estratégia de Denise, o neuroimunologista Alexandre Basso, então membro da equipe de João Palermo Neto na Faculdade de Medicina Veterinária da USP, demonstrou que os camundongos alérgicos eram mais ansiosos do que os sem alergia. Analisando o cérebro dos roedores, Basso notou que a exposição à ovoalbumina havia ativado duas áreas cerebrais – o hipotálamo e a amígdala – associadas ao medo e à aversão.
O que ele viu no sistema nervoso permitia explicar, ao menos em parte, os resultados de estudos populacionais feitos anos antes. Esses trabalhos, realizados em outros países, sugeriam que as pessoas com alergia a alimentos eram mais ansiosas e deprimidas do que as não alérgicas. Mas essa conexão estava incompleta.
Outros testes, feitos mais recentemente em parceria com o grupo de Momtchilo Russo, do Instituto de Ciências Biomédicas da USP, comprovaram que a ativação do hipotálamo e da amígdala era mediada por anticorpos. Esses componentes do sistema imune, ao acionar um tipo de célula (mastócito) localizado junto aos nervos, faziam chegar ao cérebro informações sobre a defesa do organismo. “Demonstramos que essa alteração no comportamento é uma resposta fisiológica que permite ao animal reagir rapidamente aos primeiros sinais da alergia e a evitar o alimento que faz mal”, explica Russo. Uma vez acionado, o cérebro envia ordens para os sistemas circulatório, gastrointestinal, respiratório e imunológico controlarem as reações alérgicas. “É uma reação integrada”, completa.
O cérebro, porém, é facilmente enganado. Animais alérgicos são capazes de se empanturrar com ovoalbumina, desde que oferecida de forma agradável ao paladar – para os camundongos, isso significa muito açúcar. Luciana Mirotti, da equipe de Russo, adoçou mais a água contendo ovoalbumina e observou que os roedores consumiram em 24 horas uma quantidade de alérgeno equivalente ao próprio peso. “O açúcar deve acionar no sistema nervoso um mecanismo de recompensa que permite ao animal suportar o desconforto da alergia”, diz Luciana. Esse comportamento antinatural ajuda a entender por que, às vezes, os seres humanos continuam a consumir um alimento que faz mal, mesmo que o organismo envie sinais para evitá-lo.
Eduardo SancinettiQuase duas décadas depois de perceber as alterações de comportamento induzidas pela alergia, Denise, agora com sua aluna Luana Dourado, identificou um novo fenômeno. Em trabalho publicado este ano na Cellular Immunology, elas demonstraram que a exposição prolongada aos alérgenos dos alimentos causa uma inflamação leve no tecido adiposo, semelhante à que ocorre na obesidade. “Ainda não sabemos se essa inflamação é passageira”, conta Denise. “Se desaparecer logo, ela pode ajudar o corpo a se livrar do que causa a alergia. Mas, se persistir, pode alterar o metabolismo das gorduras”.
Alto risco
Ante a falta de um tratamento que cure a alergia – os medicamentos controlam os sintomas –, a solução para os casos graves é a dessensibilização. Essa medida força o organismo a se adaptar aos poucos a compostos, em geral proteínas, que ele inicialmente reconhece como estranhos ao corpo e potencialmente nocivos, ainda que se encontrem nos alimentos. Quando ela dá certo – e tem funcionado em quase todos os casos atendidos no Hospital das Clínicas –, o corpo deixa de combater esses compostos e a pessoa passa a conviver em paz com porções moderadas do alimento.
O procedimento, porém, é arriscado e exige acompanhamento médico. “Só fazemos nos casos em que o risco de a pessoa entrar em contato por acidente com o alimento e morrer supera o de sofrer uma reação alérgica grave durante o tratamento”, afirma Ariana, coordenadora do Ambulatório de Alergia Alimentar da USP onde o tratamento é feito de modo experimental, embora já seja oferecido em clínicas nos Estados Unidos, na Europa e no Brasil.
Por essa razão, antes de começar a terapia, que dura de dois a três meses, os médicos investigam por meio de testes na pele e exames de sangue a concentração máxima de determinado alimento – os mais comuns são leite, ovo, trigo e soja – com a qual o organismo pode ter contato sem desencadear uma reação alérgica. E a diluem mais. As doses diárias da solução só começam a ser ingeridas depois de tomado um medicamento antialérgico, que reduz ainda mais o risco de o sistema imune reagir.
Aline iniciou sua dessensibilização em junho, bebendo gotas de leite com água que chegavam a ser transparentes de tão diluídas, e um mês depois já tomava leite puro. Bem pouco, é verdade: só duas gotas (0,1 mililitro), que a mãe lhe pingava na boca de hora em hora com uma seringa. À medida que aumenta a tolerância do corpo ao composto alergênico, as doses se tornam mais concentradas até que no final da dessensibilização, o chamado Dia D, seja possível consumir uma porção média do alimento. A meta de Aline é em dois meses tomar 150 mililitros de leite (quase um copo) por dia, sem passar mal, e levar uma vida menos apreensiva. Daí em diante, porém, terá de consumir leite regularmente para prevenir o retorno da alergia. “Hoje ela já não sente medo quando vou preparar o leite, nem tem mais receio das crianças que correm com o copo de leite na mão durante o recreio”, conta Roselaine.
Mais comum entre crianças, a alergia aos alimentos atinge uma parcela da população adulta maior do que se imaginava. Os dados são escassos, mas levantamentos feitos nos Estados Unidos e na Europa sugerem que o mundo está se tornando mais alérgico. Em pouco mais de uma década a proporção de adultos com alergia alimentar passou de 1% a 2% para os 4% atuais. Entre as crianças, mais propensas às alergias, a taxa varia de 8% a 11% – as formas mais comuns de alergia, as respiratórias, afetam 30% da população.
Eduardo SancinettiEstudo com 38,4 mil crianças norte-americanas publicado em julho na revista Pediatrics mostrou que 8% delas tinham alergia a algum alimento e que, entre as alérgicas, 39% já haviam experimentado reações graves. Embora as crianças sejam as vítimas mais frequentes, são os pais que se queixam de piora na qualidade de vida. Na Inglaterra, pesquisadores da Universidade de Nottingham e da Universidade de Derby compararam a qualidade de vida de famílias que tinham crianças com alergia alimentar severa com a de famílias com filhos sem alergia. Avaliada por meio de questionários, a qualidade de vida das crianças dos dois grupos foi praticamente a mesma. Mas as restrições impostas aos filhos alérgicos afetaram o dia a dia dos pais, em especial nas relações sociais, de acordo com o trabalho, a ser publicado na Appetite. “Os pais dessas crianças vivem com a sensação iminente de que podem perder o controle sobre a saúde do filho”, conta Ariana. “E o receio aumenta quando elas começam a frequentar a escola, pois a capacidade de recusar um alimento passa a depender da maturidade delas.”
Uma das dificuldades em lidar com a alergia alimentar, afirmam os especialistas, é a imprevisibilidade. Ainda que na maioria das vezes as reações não causem problemas mais sérios que o desconforto passageiro, o grau de sensibilidade pode variar muito, e de modo que nem sempre pode ser antecipado por exames de sangue ou testes de reatividade na pele. É que a sensibilidade depende de três fatores: as características do sistema de defesa do indivíduo; as propriedades do alérgeno; e a frequência e a via de exposição a ele. Esses fatores variam muito e de modo independente, razão pela qual nem sempre quem produz número elevado de anticorpos contra o alérgeno de um alimento vai apresentar as reações clínicas mais graves ao consumi-lo. Pelo mesmo motivo, um histórico de reações alérgicas leves (manchas na pele e coceira) não garante que algo mais grave não possa acontecer.
Anos atrás Richard Pumphrey, da Enfermaria Real Britânica, rastreou os óbitos por alergia alimentar no Reino Unido de 1999 a 2006 e constatou que mais da metade das pessoas que morreram após comer o alimento a que eram alérgicas jamais haviam apresentado reações graves antes. Talvez por isso, sugere Pumphrey, seus médicos não tenham recomendado que carregassem um aplicador de adrenalina. “Como não se sabe de antemão a intensidade da reação de cada um, tratamos todos como se fossem casos graves”, diz Ariana.
Apenas oito alimentos respondem por quase 90% dos casos de alergia. No topo da lista está o leite de vaca, seguido de peixes, frutos do mar, ovo, amendoim, castanhas, trigo e soja. Calcula-se que 2,5% das crianças sejam alérgicas a leite e 1% a ovo, problemas que costumam desaparecer naturalmente até os 5 anos de idade. Já as alergias a camarões, mariscos, sardinhas, amendoim, nozes e outras castanhas aparecem mais tarde e, em muitos casos, duram toda a vida.
E já se começa a falar no aumento das alergias a alimentos que pareciam inofensivos: cenoura, salsão, pêssego, maçã, pera e kiwi. O caso mais surpreendente e insuspeito talvez seja o da alergia à mandioca, que, frita ou cozida, é fonte de carboidratos para 800 milhões de pessoas na América do Sul, na África e na Ásia. Domesticada há milhares de anos possivelmente por nativos sul-americanos, a mandioca entra na composição de vários alimentos industrializados por não deixar cheiro nem sabor marcantes e, até pouco tempo atrás, ser considerada pouco alergênica. Essa história, porém, terá de ser revista.
Eduardo SancinettiEm 2004 a equipe de Castro descreveu dois casos brasileiros de alergia à mandioca, que estão entre os primeiros identificados no mundo. No Ambulatório de Alergia Ocupacional do Hospital das Clínicas, o médico Clóvis Galvão atendeu, em pouco mais de um mês, duas mulheres com sensibilidade ao látex que se queixavam de ter desenvolvido uma crise alérgica depois de comer mandioca. Galvão levou os casos a Castro, coordenador do grupo de alergia do Instituto de Investigação em Imunologia, chefiado pelo imunologista Jorge Kalil, para, juntos, iniciarem uma investigação mais detalhada.
Testes imunológicos confirmaram que o organismo de quem tinha alergia ao látex, comum entre médicos, enfermeiras e funcionários do setor de limpeza, produzia anticorpos capazes de reconhecer os alérgenos da mandioca. Era um exemplo de alergia cruzada, mas faltava identificar quantos e quais eram esses alérgenos. Usando anticorpos encontrados no sangue das primeiras pacientes e de outros nove casos registrados desde então, a imunologista Keity Santos identificou cinco proteínas capazes de provocar alergia, e isolou e caracterizou uma delas. Em uma temporada no Laboratório de Diagnóstico e Tratamento de Alergia da Universidade de Salzburgo, Áustria, coordenado pela brasileira Fátima Ferreira, ela sintetizou essa proteína e demonstrou, em testes in vitro, que era inativada por anticorpos produzidos contra as proteínas do látex.
Essa proteína – a Man e 5, sigla formada a partir do nome científico da mandioca (Manihot esculenta) – tem estrutura próxima à de um dos 14 alérgenos do látex, produzido a partir da seiva da seringueira, descrevem os pesquisadores em artigo a ser publicado no Journal of Allergy and Clinical Immunology. “Agora que sabemos que essas proteínas da mandioca causam alergia, Keity pode tentar desenvolver uma forma de detectá-las ou destruí-las, permitindo a produção de amido livre de alérgenos”, diz Fátima, que nos últimos anos descreveu reações alérgicas a maçã, noz, avelã, salsão e cenoura em pessoas sensíveis ao pólen da bétula, árvore comum na Europa.
Duas hipóteses tentam explicar o aumento das alergias alimentares. A primeira é a facilidade do acesso a alimentos exóticos. Nunca foi tão fácil nem tão rápido viajar de um ponto a outro do planeta, o que certamente contribuiu para a internacionalização de dietas antes restritas a poucas regiões. O intervalo em que aconteceram essas mudanças, porém, pode não ter sido suficiente para o organismo humano, habituado a consumir uma variedade restrita de alimentos por centenas a milhares de anos, se adaptar aos novos alérgenos.
A segunda hipótese propõe que por trás dessa hipersensibilidade estariam algumas formas de interferência do ser humano sobre seu próprio corpo – mais especificamente sobre a digestão. A principal porta de contato humano com o mundo exterior não é a pele, como muitos podem pensar, mas os intestinos. Se fosse descolada do corpo e aberta sobre uma superfície plana, a pele cobriria meros dois metros quadrados, enquanto os intestinos ocupariam uma área 200 vezes maior, com as dimensões de mais ou menos duas quadras de tênis. É em boa medida pelos intestinos que os elementos estranhos ao organismo têm acesso ao corpo. Assim que atravessam a delicada membrana intestinal, os componentes dos alimentos e os agentes infecciosos encontram um exército de células do sistema imune aptas a reconhecer o que faz parte do organismo e pode ser incorporado e o que é estranho e deve ser eliminado.
No percurso da boca ao sangue, os alimentos são triturados, amassados e recebem um banho de ácidos e sais digestivos, ao mesmo tempo que sofrem um ataque de enzimas. O que sobra tem um tamanho tão reduzido que na maioria das vezes escapa ao radar do sistema imunológico. As proteínas, que inicialmente podem conter 200 ou mais aminoácidos, são desmontadas em sequências de apenas meia dúzia. Mas, se algo não vai bem com a digestão, fragmentos maiores podem chegar ao sangue e chamar a atenção de um grupo especial de células de defesa que, por sua vez, mobiliza as células produtoras de toxinas e de anticorpos.
Espetados na membrana dos mastócitos, células-chave nas reações alérgicas, os anticorpos funcionam como o gatilho de uma pistola pronta a disparar. Num segundo contato da proteína forasteira com os anticorpos, os mastócitos liberam compostos potentes (histamina, heparina, leucotrieno e outros) que fazem os vasos sanguíneos dilatar, a pressão arterial cair e a musculatura lisa das vias respiratórias se contrair. De quatro a seis horas mais tarde, células recrutadas do interior dos ossos chegam à região e iniciam um novo ataque, que ajuda a eliminar os agentes externos e reaviva os sintomas da alergia.
Um estudo recém-concluído pelo grupo de Castro reforça a ideia de que, entre os adultos, o aumento das alergias alimentares esteja ligado à perda da capacidade de digerir proteínas, causada pelo uso disseminado de medicamentos da classe do omeprazol, chamados de inibidores da bomba de prótons.
Em Salzburgo, Keity submeteu as proteínas alergênicas da mandioca à digestão em uma solução com a acidez estomacal normal e em outra 100 vezes menos ácida, como a do estômago de quem usa esses medicamentos contra inflamações e úlceras gástricas. No primeiro caso, as enzimas digestivas quebraram as proteínas em pedaços pequenos o suficiente para serem absorvidos pelos intestinos e circularem no sangue sem ativar as células de defesa. Já na solução menos ácida a proteína não foi bem digerida e restaram fragmentos grandes o bastante para desencadear uma resposta alérgica.
“A mandioca é consumida há milhares de anos e nunca se suspeitou de que causasse alergia”, diz Castro. “O que teria mudado recentemente?” A alteração mais perceptível apontada por alguns pesquisadores é a introdução dos inibidores da bomba de prótons no final dos anos 1980, hoje um dos medicamentos mais vendidos no mundo.
Para testar se essa medida explicaria o surgimento da alergia à mandioca, o físico Hyun Mo Yang, da Universidade Estadual de Campinas, desenvolveu para Castro um modelo matemático que permite estimar quanto tempo levaria para aparecerem os primeiros casos em uma população usando o medicamento. O resultado? Cerca de 10 anos. “É quase o tempo que passou entre a introdução do omeprazol no Brasil e a identificação dos primeiros casos”, comenta Castro, que em 2008 criou o Grupo de Estudos de Novos Alérgenos Regionais para investigar proteínas alergênicas de plantas e insetos brasileiros.
“Ainda não temos explicações claras para o que estamos observando na clínica”, diz Jorge Kalil, que, além do Instituto de Investigação em Imunologia, dirige o Laboratório de Imunologia do Instituto do Coração e o Instituto Butantan. “A indução da alergia pode ser um efeito não previsto desse tipo de medicamento.” Se for confirmado para a mandioca, esse efeito talvez explique o que acontece com algumas das outras 475 proteínas alergênicas encontradas em alimentos, que, ao lado de quase outras mil, estão sendo catalogadas pela bioinformata Helen Arcuri na Allergennet, base de dados on-line que reúne informações sobre as características dessas proteínas, os sinais clínicos que provocam e os testes que as detectam.
Enquanto não surgem novidades, a saída é manter distância dos alimentos que podem desencadear a alergia e, nos casos indicados, tentar a dessensibilização, como Aline. Ela, aliás, já fez uma lista do que quer provar no dia em que estiver liberada para consumir leite. Biscoito, bolo, brigadeiro, sorvete e pizza. Desta vez, com muito queijo.
O Projeto
Instituto de Investigação em Imunologia (nº 2008/57881); Modalidade
Projeto Temático/INCT; Coordenador Jorge Kalil – FM/USP; Investimento R$ 2.909.938,18 (FAPESP) e R$ 3.554.319,49 (CNPq)
Artigos científicos
SANTOS, K.S. et al. Allergic reactions to manioc (Manihot esculenta Crantz): Identification of novel allergens with potential involvement in latex-fruit syndrome. Journal of Allergy and Clinical Immunology. No prelo.
MIROTTI, L. et al. Neural pathways in allergic inflammation. Journal of Allergy. 9 fev. 2011.