Em amostras de terra preta da Amazônia, uma equipe do Centro de Energia Nuclear da Agricultura (Cena) da Universidade de São Paulo (USP) isolou três linhagens de bactérias – dos gêneros Burkholderia, Pseudomonas e Arthrobacter – que, em testes em laboratório, se mostraram capazes de decompor hidrocarbonetos aromáticos como o diesel, abrindo a perspectiva de uso para despoluição ambiental ou industrial. No fim de maio, Fernanda Mancini Nakamura identificava as bactérias que vivem nas cavidades do carvão (blocos de carbono) das amostras de terra preta recolhidas de uma profundidade de 30 centímetros no município de Iranduba, próximo a Manaus.
Fernanda já havia identificado sete espécies de bactérias capazes de viver dentro dos blocos de carvão, das quais duas, ela acreditava, devem ser capazes de decompor celulose, por apresentarem genes próprios para essa finalidade. Essa descoberta acena com a possibilidade de uso industrial – a quebra da celulose ainda é um desafio na produção de álcool combustível a partir da cana-de-açúcar –, se os testes a serem feitos confirmarem essa possibilidade. Curiosamente, ela observou, as bactérias que vivem dentro das partículas de carvão são de espécies diferentes das que vivem em outras partes da terra preta. Por sua vez, os microrganismos das manchas de terra preta – resultantes do acúmulo de alimentos e outros materiais de origem orgânica pelas populações indígenas pré-colombianas – são diferentes dos do solo amarelo, do tipo argissolo ou latossolo, mais comum na Amazônia.
A diversidade microbiana tem se mostrado um campo fértil em descobertas de novas espécies ou de mecanismos de adaptação a ambientes inóspitos. Os microrganismos, principalmente as bactérias, se mostraram capazes de viver em ambientes extremos como as águas hipersalinas do mar Morto, as terras superáridas do deserto do Atacama, a Antártida ou os corais do fundo do mar. O reconhecimento de novos ambientes e de novas espécies está facilitando a aplicação de microrganismos para resolver problemas ambientais ou identificar potenciais medicamentos novos.
Para dimensionar a diversidade de microrganismos do país, pesquisadores de quase todos os estados criaram o Projeto Microbioma Brasileiro (BMP, na sigla em inglês), apresentado em fevereiro na revista Microbial Ecology. A meta é ambiciosa, porque a diversidade de bactérias, vírus e fungos poderia ser até mesmo maior que a chamada micro ou mesofauna (animais maiores). O Brasil detém 20% da diversidade biológica conhecida do mundo, considerando principalmente invertebrados e vertebrados. As primeiras estimativas sobre a diversidade microbiana sugerem que apenas um grama de terra poderia conter um milhão de espécies de bactérias, e as camadas superficiais do solo abrigam espécies de microrganismos diferentes das que vivem nas camadas mais profundas. Um exemplo mais à mão: em um trabalho divulgado no mês passado, pesquisadores da Universidade de Nova York relataram ter encontrado DNA de 3 mil tipos de bactérias em notas de um dólar.
Siu Mui Tsai, uma das pesquisadoras principais do BMP, diretora e pesquisadora do Cena-USP (e coordenadora do laboratório em que Fernanda trabalha), recomenda cuidado com as extrapolações sobre a diversidade microbiana e alerta para a importância dos trabalhos de campo em todas as regiões do país. “A diversidade microbiana depende da interação dos microrganismos com as plantas e com o ambiente”, diz ela. Um dos estudos de seu grupo no Cena, realizado em uma fazenda em Rondônia, indicou que a diversidade – medida pela riqueza e abundância de espécies – pode variar em um mesmo ambiente, nesse caso uma área de floresta amazônica, enquanto se mostrava homogênea em uma área de pastagem, avaliada também por meio de vários pontos de coleta.
A diversidade microbiana mal é conhecida e já é intensamente reduzida, em consequência do desmatamento, das queimadas e da transformação de matas nativas em pastagens e monocultura como a de soja. “Há um reequilíbrio da diversidade microbiana nas áreas agrícolas, mas isto pode demorar 25 anos no caso das pastagens”, comenta Siu. O aumento da temperatura global poderia agravar essa situação em alguns ambientes. Experimentos realizados na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) indicaram que o aumento de dois a quatro graus Celsius reduz proporcionalmente a diversidade micobiana em recifes de corais, que cobrem menos de 1% do fundo dos mares, mas respondem por 25% da diversidade de microrganismos marinhos.
A região Norte, uma das que mais sofrem com a perda de ambientes naturais, tem se mostrado pródiga em boas surpresas para os microbiologistas. De uma amostra de água recolhida em 2011 do rio Negro próximo a Manaus a equipe de Jônatas Abrahão, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), isolou um vírus gigante que ganhou o nome de Samba. No dia 29 de abril, em uma das apresentações de um encontro sobre microrganismos organizado pelo programa Biota-FAPESP, Jônatas apresentou o Samba como o primeiro vírus gigante identificado no Brasil. Descrito em maio em um artigo na Virology Journal, o Samba tem 600 nanômetros – os maiores vírus gigantes, com até um micrômetro, podem ser cinco vezes maiores que os vírus da gripe e maiores que bactérias – e 938 genes, dos quais nove desconhecidos. Há variedades maiores, como o Pandora dulcis, apresentado em 2013, com um genoma duas vezes maior que o dos vírus comuns, 1.500 genes e quase um micrômetro de tamanho.
“Já isolamos dezenas de vírus gigantes”, diz Abrahão. Na lagoa da Pampulha sua equipe encontrou uma variedade que ganhou o nome de Niemeyer, e na serra do Cipó, em Minas, a Cipó. Um vírus gigante que Abrahão encontrou em uma lagoa da cidade de Lagoa Santa, também em Minas, e deu o nome de Kroon – em homenagem à sua ex-orientadora Erna Kroon, “a melhor virologista que conheço no país”, ele argumenta –, tem uma camada externa quadruplicada, que lhe confere mais resistência à radiação ultravioleta e temperatura. O trabalho agora anda rápido, depois de meses de frustração, quando não conseguiam cultivar os vírus, fazendo-os reproduzir para facilitar a identificação, até encontrarem um meio de cultura favorável, com 40 gramas de arroz para cada litro de água, mantido em uma sala escura.
Eles também sabem agora onde procurar. “Onde há amebas, provavelmente há vírus gigantes”, disse Abrahão. As amebas, um tipo de protozoário, poderiam funcionar como bunkers, protegendo os vírus da luz ultravioleta, do calor e de substâncias químicas mortais, de acordo com um artigo de 2013. Neste ano, o grupo de Minas Gerais identificou vírus gigantes em macacos e bois da Amazônia e, em estudos paralelos, concluiu que os vírus taludões poderiam ser incorporados à microbiota do organismo humano e ativar a produção de moléculas de defesa, como os interferons, que ajudam a combater organismos causadores de doenças. Pelo menos um tipo de vírus gigante, o Acanthamoeba polyphaga mimivirus, poderia causar pneumonia em seres humanos.
Manguezais
Desde o final do século XIX, com Robert Kock, Louis Pasteur e outros que identificaram a causa de doenças avassaladoras como a tuberculose, os microrganismos foram associados a doenças. No entanto, “apenas uma pequena parte causa doenças, e geralmente em circunstâncias de desequilíbrio do organismo”, diz Alexandre Soares Rosado, diretor e pesquisador do Instituto de Microbiologia da UFRJ. “A maior parte das vezes podem ser benéficas para a saúde humana e para o ambiente.” As colônias de bactérias do intestino humano fabricam vitaminas importantes para o funcionamento do organismo e estimulam a produção de moléculas de comunicação do sistema imune conhecidas como citocinas. Nos pulmões, de acordo com um estudo em camundongos publicado na Nature Medicine em maio, os microrganismos favorecem a produção de células de defesa e proteção contra asma em adultos.
Evidentemente, certos microrganismos continuam a causar preocupação. Um levantamento da Organização Mundial da Saúde em 114 países indicou que a resistência de bactérias a antibióticos é atualmente um fenômeno global. De acordo com o relato, várias espécies, incluindo Escherichia coli, que causa diarreias, Streptococcus pneumonia e Neisseria gonorrhea, adquiriram resistência a antibióticos. “Precisamos desenvolver novas armas para enfrentar as bactérias, que estão se tornando resistentes a todos os antibióticos”, disse o microbiologista Karl Klose, da Universidade do Texas em San Antonio, Estados Unidos, em uma conferência do TED em abril. “Precisamos evitar a volta à era pré-antibióticos.”
Rosado tem explorado o lado amigável das bactérias. Em colaboração com a equipe do Centro de Pesquisa (Cenpes) da Petrobras, o grupo da UFRJ elaborou uma combinação de mais de 10 espécies de bactérias – do gênero Pseudomonas, Actinobacteria e outras – que tem servido para restaurar a vegetação de manguezais. A combinação, inicialmente na forma líquida e depois encapsulada em alginato, foi testada durante um ano e meio em laboratório. Como apresentou os resultados esperados, foi empregada para despoluir uma área de quatro quilômetros quadrados de manguezal da baía de Todos os Santos, litoral da Bahia, na qual houvera sucessivos derramamentos de petróleo.
A primeira surpresa foi a eficácia da estratégia: “As cápsulas incham e liberam as bactérias lentamente, durante seis meses, protegendo das marés”, contou Rosado. Os pesquisadores observaram que as pílulas de bactérias, provavelmente por aumentar a fixação de nitrogênio, nutriente essencial às plantas, aumentaram em 35% a sobrevivência das plântulas usadas para recompor o ambiente, em comparação com as áreas não tratadas. “As bactérias protegem as plantas e, em vez de 30 anos, conseguimos restaurar a vegetação em menos de três anos, com essa técnica”, diz ele. “Os microrganismos conduzem os ciclos biológicos e geológicos, como produtores e decompositores de material orgânico.”
A equipe da UFRJ distribuiu 300 tubos com óleo no manguezal de Marambaia, no litoral do Rio de Janeiro – cada tubo contém três barreiras de contenção para evitar vazamento –, para avaliar a ação de microrganismos sobre a degradação de poluentes e testar a viabilidade de técnicas de menor custo que as empregadas na Bahia. Ao mesmo tempo, a equipe de Rosado trabalha na descrição de cinco prováveis espécies novas de bactérias, identificadas entre 350 isoladas nos últimos anos em manguezais e no litoral e no interior da Antártida, onde também estão sendo feitos levantamentos.
Medicamentos
Desde a década de 1940, com a penicilina, produzida a partir de fungos do gênero Penicillium, os microrganismos têm sido úteis para produzir medicamentos. A estreptomicina, isolada da cultura de uma bactéria de solo, a Streptomyces griseus, foi um dos destaques de uma reunião científica sobre novos antibióticos realizada na Academia de Ciências de Nova York em janeiro de 1946. A estreptomicina era uma possibilidade atraente para o tratamento de tuberculose, sobre a qual a penicilina não atuava, embora apresentasse uma toxicidade alta. Outra espécie, a Strepmyces aerofaciens, forneceu a aeromicina, de menor toxicidade, que um grupo de médicos de Nova York testou em 35 pessoas com linfogranuloma venéreo, uma doença sexualmente transmissível de origem bacteriana, com resultados que consideraram excelentes.
Alan Bull e sua equipe da Universidade de Kent, Inglaterra, também consideraram excelentes os resultados dos testes in vitro da ação antibiótica e antitumoral de substâncias produzidas por bactérias do gênero Streptomyces isoladas de regiões hiperáridas do deserto do Atacama, no Chile. No dia 28 de abril na FAPESP, Bull comemorou a possibilidade de se poder trabalhar atualmente de modo integrado na taxonomia (classificação), ecologia e genoma dos microrganismos e, ao mesmo tempo, na identificação das substâncias com efeitos antibíóticos, cujas estruturas químicas poderiam fundamentar novos medicamentos. Ele apresentou vários exemplos de fármacos naturais, como uma substância produzida por uma bactéria encontrada no fundo de um fiorde da Noruega que mostrou ação in vitro contra vários tipos de tumores, e ressaltou que é importante também avaliar a eventual ação tóxica sobre as células saudáveis dos organismos.
“As descobertas de novas substâncias com ação antibiótica ou antitumoral não lembram necessariamente novos medicamentos”, ele ressaltou, após sucessivas decepções. “As empresas farmacêuticas não estão interessadas em antibióticos. A prioridade são medicamentos que possam ser usados pela vida inteira.” Bull afirmou que não sabe por que os microrganismos que vivem no deserto, no gelo ou no fundo do mar produzem substâncias que eliminam bactérias ou células anormais que se juntam para formar tumores.
Projeto
The microbiome of Amazonian dark earth: structure and function of the microbial communities from rhizosphere and biochar associated to the biogeochemical cycles (nº 11/50914-3); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular/Biota/FAPESP; Pesquisadora responsável Siu Mui Tsai (Cena-USP); Investimento R$ 477.191,18 (FAPESP).
Artigos científicos
SANTOS, H.F. et al. Mangrove bacterial diversity and the impact of oil contamination revealed by pyrosequencing: Bacterial proxies for oil pollution. PLoS ONE. v. 6, n. 3, p. e16943. 2011.
PYLRO, V.S. et al. Brazilian Microbiome Project: Revealing the unexplored microbial diversity – Challenges and prospects. Microbial Ecologyv. 67, n. 2, p. 237-41. 2014.
RODRIGUES, J.L.M. et al. Conversion of the Amazon rainforest to agriculture results in biotic homogenization of soil bacterial communities. PNAS. v. 110, n. 3, p. 988-93. 2013.
CAMPO, R.K. et al. Samba virus: a novel mimivirus from a giant rain forest, the Brazilian Amazon. Virology Journal. v. 11, n. 95. 2014.