
Estudos sobre a construção da nação brasileira nesse período quase sempre se concentram nas discussões políticas ou nas relações étnico-raciais. “No Brasil, a experiência da colonização e do escravismo gerou particularidades no que se refere à sexualidade, ao desejo e ao erotismo”, avalia Miskolci, professor do Departamento de Sociologia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), onde coordena o grupo de pesquisa Corpo, Identidades e Subjetivações (www.ufscar.br/cis).
Ao contrário das representações dominantes hoje sobre o Brasil, de permissividade ou liberdade sexual, o pesquisador argumenta que nos caracterizam convenções culturais próprias ainda pouco analisadas. “Identificá-las é um desafio”, explica. “Quero compreender como estamos inseridos em formas específicas de controle e ‘agenciamento’ do desejo e até mesmo qual é nossa gramática erótica própria.”

Sutilezas
Com a leitura de outros romances da época, é possível entrever, segundo Miskolci, outras sutilezas no controle do desejo. No dia a dia do internato revelado em O Ateneu o fantasma a assombrar os homens de elite parece ser – muito mais do que o desejo pelo mesmo sexo – a possibilidade de ser tratado, ou maltratado, como uma mulher. O romance de Raul Pompeia, datado de 1888, mostra, assim, como ocorre o disciplinamento da masculinidade: há práticas “pedagógicas” violentas, combatendo e desqualificando qualquer traço de personalidade que pudesse ser associado ao feminino. Ou seja, mais que a homossexualidade, o que se pretende conter, pelas lentes de O Ateneu, é a existência de “efeminados”. “A relação entre masculinidade, honra e violência, concreta ou simbólica, parece ser uma herança desse período que estudo, pois rege tanto as masculinidades heterossexuais quanto as homossexuais na sociedade brasileira contemporânea”, afirma o professor.
Na sociedade brasileira do final do século XIX também são temidas as relações homossexuais interraciais, como Miskolci observa em Bom crioulo, romance de Adolfo Caminha que provocou escândalo ao ser publicado, em 1895. Em Amaro, um escravo foragido que protagoniza a trama, tem-se a imagem então corrente do homem negro como um predador sexual, perigoso e sem controle. “Há muitos temores e estereótipos sexuais que se mantêm ou se reatualizam em nossos dias”, explica o sociólogo.
Não se trata de traçar uma história dos homossexuais ou da homossexualidade na sociedade brasileira. O pesquisador diz que seu objetivo é contar a história da formação do nosso ideal de nação em uma perspectiva subalterna, ou seja, uma história “dos outros”: excluídos, abjetos, marginalizados por sua sexualidade não normativa. Seu levantamento busca encontrar, nas sombras, os desejos proscritos e impossíveis, os amores silenciados.
Na sociedade atual, o sociólogo observa que gays e lésbicas já são identidades normalizadas, inseridas no mercado e dentro de uma concepção política liberal. O caráter abjeto na sociedade brasileira de agora não seria atribuído a pessoas brancas de classe média ou alta, formando casais monogâmicos querendo se casar – mesmo que sejam casais homossexuais. Como estigmatizados, encontram-se hoje travestis, transexuais, “efeminados”, pobres, negros, portadores de HIV. “Os que permanecem na base da pirâmide da respeitabilidade sexual e social são os que herdaram a abjeção que estudo no final do século retrasado”, diz Miskolci.

Burguesa
Na virada do século XIX para o XX, almejava-se que a nação se tornasse mais branca e burguesa do que era. A sexualidade, segundo Richard Miskolci, se não tinha centralidade até o século XVIII, deve ser vista a partir desse período como peça-chave na reconfiguração de tal imaginário nacional na nascente República. A tríade monarquia, indigenismo simbólico e catolicismo seria substituída por uma nova compreensão, “científica” e “racializada”, do que era a nação brasileira. O desejo e o sexo se tornam questões centrais por causa dos temores sobre relações interraciais e as incertezas sobre as consequências da miscigenação.
A construção da nação exigia o “agenciamento” do desejo para formas ideais, particularmente para a heterossexualidade reprodutiva do casal monogâmico estável. Esse casal era idealizado como branco ou branqueador. Um casal “miscigenador” deveria ser formado por um homem branco – brancura, poder e masculinidade se equivaliam – e uma mulher mulata – pois se rejeitava a mulher negra. “Este ideal unia expectativas com relação à sexualidade e ao desejo, impunha a reprodução como norma e estabelecia que esta deveria resultar em ‘branqueamento’ da população. Devia-se evitar qualquer desvio do desejo que ameaçasse a formação do modelo de casal reprodutivo, ao qual se atribuía a expectativa de gerar a nação almejada, progressivamente cada vez mais branca e sexualmente normalizada”, argumenta o sociólogo.

Na sua interpretação dos desejos da nação, o sociólogo se baseia na obra de Michel Foucault e no campo acadêmico conhecido como Saberes Subalternos – a vertente culturalizada do marxismo que incorporou o pós-estruturalismo francês e se desdobra, hoje, na corrente feminista conhecida como Teoria Queer e nos Estudos Pós-coloniais. Às obras literárias somam-se análises de discursos políticos e científicos da época. Entre os homens de ciência no Brasil, a maioria um misto de literatos-cientistas com ambições políticas, discutia-se qual seria a viabilidade da nação mestiça. “É um tema explorado exaustivamente pelo pensamento social brasileiro no que toca à questão racial, da miscigenação, mas que, fato curioso, deixa de fora as relações não reprodutivas, em especial entre pessoas do mesmo sexo.”
Para o sociólogo, as obras literárias não apenas ilustram a história do período; permitem acessá-la por meio de experiências subjetivas, diferenciadas, algumas vezes até mesmo em desacordo com o que se passava. “Não se trata da genialidade dos escritores, mas da característica da própria criação literária, que frequentemente foge ao controle e às intenções do autor”, afirma Miskolci. Enquanto o discurso político e o científico, mais institucionais e articulados, tendiam a coincidir mais do que a divergir, as expressões literárias da época permitem entrever ambiguidades, dissidências e, sobretudo, tanto o processo de constituição da nação quanto formas diversas de resistência a ele.
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