Com um volumoso abdômen estriado de amarelo e preto, as aranhas-gigantes impressionam por sua voracidade. Habituadas a comerem grilos, baratas e outros insetos, essas aranhas já foram flagradas consumindo presas bem maiores do que elas próprias, como lagartixas e até mesmo pequenas aves. Há tempos os especialistas em aracnídeos se perguntavam como tal proeza ocorria. Um trabalho coordenado pela bioquímica Adriana Lopes, do Instituto Butantan, em São Paulo, começa a apresentar algumas respostas.
Tão logo o jantar se enrosca na teia e é imobilizado pela injeção do veneno, as aranhas-gigantes (Nephilingis cruentata) regurgitam sobre ele um líquido espesso e amarronzado que dissolve seus tecidos, transformando-os em uma gororoba pastosa. Desse modo, as aranhas-gigantes conseguem se alimentar lentamente de suas presas, consumindo pequenas partes pré-digeridas. Por muito tempo se pensou que o líquido lançado sobre a presa fosse o próprio veneno, produzido por uma glândula próxima à boca das aranhas. Ao estudar a digestão da N. cruentata detalhadamente, o grupo de Adriana verificou que esse líquido, na verdade, é o fluido digestivo, rico em enzimas que a ajudam a digerir suas presas.
Facilmente encontradas em jardins, próximas a luminárias, em cantos de paredes ou canteiros de obras, as aranhas-gigantes apresentam um dimorfismo sexual marcante. As fêmeas em geral são bem maiores que os machos. Algumas podem chegar a 4 centímetros (cm) de comprimento. Os machos, por sua vez, têm em média 0,5 cm. Apesar do tamanho, grande o suficiente para deixar de cabelo em pé qualquer pessoa que tenha um leve temor de aranhas, seu veneno é inofensivo para os seres humanos. Nos insetos, porém, ele age sobre o sistema nervoso e causa paralisia — sem, no entanto, matar. As presas costumam estar vivas quando são cobertas pelo fluido e começam a ser parcialmente digeridas.
A curiosidade sobre a digestão da Nephilingis cruentata levou a equipe de Adriana a iniciar anos atrás a análise da composição química do fluido digestivo dessas aranhas. Em uma busca rápida nos arredores do Instituto Butantan, eles coletaram 10 exemplares. De volta ao laboratório, os pesquisadores os alimentaram e os induziram a produzir o fluido digestivo por meio de estímulos mecânicos e elétricos. Em seguida, fizeram a caracterização química das amostras. Os pesquisadores verificaram que o fluido digestivo era sintetizado nas células secretoras do intestino e que era muito rico em enzimas que quebram ou transformam proteínas, gorduras e açúcares em moléculas menores, que podem ser convertidas em energia mais facilmente. Ao todo, eles caracterizaram quase 400 enzimas, conforme descreveram em um estudo publicado em setembro na revista científica BMC Genomics.
Entre as carboidrases, enzimas que digerem carboidratos (açúcares), o grupo de Adriana identificou uma produção de grandes concentrações de quitinases, especializadas na degradação de quitina, polímero natural responsável pela dureza do exoesqueleto de artrópodes. Dentre as enzimas proteolíticas, que degradam proteínas, as astacinas foram as sintetizadas em maior quantidade. Essas enzimas são comumente encontradas na maioria dos seres vivos. Mas, segundo Adriana, é a primeira vez que se verifica a produção de uma variedade tão ampla de astacinas e em níveis tão elevados. “Identificamos 25 tipos de astacinas no fluido digestivo dessas aranhas”, ela diz.
Por meio de técnicas de bioinformática, os pesquisadores fizeram um estudo filogenético dessas enzimas. Softwares específicos analisaram as sequências de DNA que compõem os genes contendo a receita das astacinas da aranha-gigante e as compararam com as produzidas por outras aranhas e outros artrópodes. Os resultados sugerem que as aranhas evolutivamente mais primitivas produzem menos astacinas do que as que surgiram mais recentemente. Os dados apresentados no artigo ainda são preliminares, explica Adriana, mas dão margem para algumas interpretações. Uma delas é que a digestão em duas fases — uma extracorpórea e outra intracelular — seria uma característica selecionada ao longo de milhões de anos, permitindo a essas aranhas passar longos períodos sem se alimentar. “A Nephilingis cruentata pode ficar sem comer por até um ano”, conta Adriana. “Nessas aranhas, a superprodução dessas enzimas se justificaria pela necessidade de realizar uma digestão que aproveite ao máximo todos os nutrientes.”
Uma evidência obtida pelo grupo de Adriana reforça essa hipótese. Ela e seus colaboradores verificaram que, após a aranha ingerir toda a presa, inicia-se uma segunda fase da digestão, agora dentro das células. Nas células do intestino, a parte dos nutrientes que não foi transformada pelo fluido digestivo é transportada para o interior dos vacúolos digestivos, compartimentos intracelulares repletos de enzimas que fragmentam proteínas provavelmente formados pela fusão dos lisossomos com vesículas contendo nutrientes. Em análises de microscopia, os pesquisadores identificaram grandes quantidades de açúcares e lipídios estocados em células de reserva conectadas ao intestino das aranhas-gigantes. Possivelmente é essa reserva que provê os nutrientes necessários para manter essas aranhas vivas durante os longos períodos de escassez de alimentos.
Indo à caça
Em uma linha de trabalho paralela à de Adriana, o biólogo Hilton Japyassú, no Instituto de Biologia da Universidade Federal da Bahia (UFBA), investiga a flexibilidade de comportamentos supostamente fixos da N. cruentata. Segundo ele, essas aranhas são capazes de memorizar informações e de aprender com as experiências vividas, aperfeiçoando instintos básicos como os ligados à caça e à construção da teia. Japyassú começou a estudar a espécie há quase 10 anos, quando ainda estava no Laboratório de Artrópodes do Instituto Butantan. Em suas pesquisas, ele verificou que essas aranhas podem alterar seu comportamento de caça ou de construção da teia de acordo com o tamanho das presas que pretendem capturar.
As aranhas-gigantes produzem dois tipos de fio de seda, um seco e outro mais viscoso. Para tecê-los, elas usam diferentes fiandeiras, estruturas associadas a glândulas de seda localizadas na parte de trás do abdômen. Os dois tipos de seda são usados em partes distintas da teia. Os fios secos, por exemplo, dão forma à estrutura da teia, constituída pelos raios; pela espiral seca, construída do centro para as bordas; pelos fios de quadro, que sustentam toda a espiral; e pelo refúgio, conectado à região central onde as aranhas ficam à espera da presa. Os fios viscosos, por sua vez, compõem a espiral adesiva da teia, responsável pela captura.
Quando apanham uma presa grande, as aranhas cortam os fios que sustentam a teia, fazendo-a envolver o futuro jantar e limitar os seus movimentos. Já as presas pequenas são imobilizadas com a injeção de veneno, que as paralisa. Parte dessa plasticidade é decorrente da memória de eventos predatórios anteriores. Segundo o pesquisador, as aranhas são capazes de se lembrar de diferentes aspectos de suas presas, como o tamanho ou o tipo, e também de se recordar do número de animais capturados previamente. Um indício disso é que as dimensões gerais, o formato e o espaçamento entre as espiras da teia levam em conta a frequência e o tamanho dos animais capturados.
A caçada começa quando a aranha direciona a sua atenção para certos setores da teia, geralmente aqueles em que as presas caem com mais frequência. Ela vigia esses setores mantendo tensionados alguns de seus fios com as pernas dianteiras. Essa tensão permite filtrar certos tipos de vibração e detectar as mais sutis. “Quanto mais famintas, mais as aranhas tensionam os fios”, explica o biólogo. “Desse modo, vibrações antes imperceptíveis, produzidas por presas pequenas, passam a ser alvo de sua atenção.” O passo seguinte da caçada é a captura. Assim que um inseto cai na teia, a aranha corre em direção à presa, aproxima-se dela e, a depender das circunstâncias, alimenta-se ali mesmo ou a envolve em mais fios de teia antes de levá-la para um refúgio onde se encontram as capturadas anteriormente.
Analisando a caça dessas aranhas, Japyassú constatou que essas táticas apresentam sinais filogenéticos. Isso significa que certos comportamentos evoluíram ao longo do tempo, sendo modificados e transmitidos para o repertório comportamental de outras aranhas de maneira sistemática como resposta a estímulos do ambiente em que elas vivem. É como se essas táticas envolvessem comportamentos cuja organização no cérebro das aranhas é facilitada. O que explicaria o aprimoramento de certos comportamentos? Para Japyassú, seria a capacidade de aprender, característica do cérebro. “À medida que a aranha vive novas experiências, certos comportamentos são aprimorados em resposta aos desafios impostos pelo ambiente.”
Artigos científicos
FUZITA J. F. et al. High throughput techniques to reveal the molecular physiology and evolution of digestion in spiders. BMC Genomics. v. 17 (716), p. 1-19. 2016.
JAPYASSÚ‚ H. F. et al. Predatory plasticity in Nephilengys cruentata (Araneae: Tetragnathidae): Relevance for phylogeny reconstruction. Behaviour. v. 139 (4), p. 529-44. 2002.