Uma colaboração internacional da qual participaram pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) e da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), no Rio de Janeiro, identificou dois anticorpos humanos com o potencial de tratar a febre amarela, uma doença que mata de 20% a 50% das pessoas que desenvolvem sua forma grave. Administradas a roedores e macacos, as duas moléculas permitiram aos animais sobreviver à infecção pelo vírus causador dessa febre hemorrágica que danifica o fígado e os rins e, com menor intensidade, o coração e os pulmões. Os não tratados, que integravam o grupo de controle, adoeceram gravemente e tiveram de ser sacrificados cerca de uma semana após a infecção experimental pelo vírus.
“Para nossa surpresa, os anticorpos ofereceram proteção total contra a febre amarela”, conta o infectologista Esper Kallás, da USP, um dos autores do estudo, publicado em 29 de março na revista Science Translational Medicine. Como os efeitos observados em organismos de outras espécies nem sempre são os mesmos que ocorrem em seres humanos, ainda são necessários testes com pessoas para confirmar os resultados e, se tudo sair como o esperado, em algum tempo, tornar o uso desses anticorpos uma terapia efetiva contra a febre amarela.
A busca por um tratamento à base de anticorpos para controlar a doença começou há cerca de seis anos, durante o surto de 2016-2019, o mais grave registrado no Brasil nas últimas oito décadas, no qual 2.237 pessoas adoeceram e 759 morreram. Em visita ao Hospital das Clínicas da USP, o patologista David Watkins, da Universidade George Washington, nos Estados Unidos, coautor do estudo e antigo colaborador dos pesquisadores brasileiros, acompanhou o caso de pessoas infectadas com o vírus que chegavam caminhando ao serviço de saúde e dias mais tarde precisavam ser intubadas e submetidas à hemodiálise, para suprir o papel de órgãos e sistemas comprometidos pela doença. Watkins perguntou como poderia ajudar e Kallás sugeriu que tentassem desenvolver uma terapia à base de uma versão sintética de anticorpos, moléculas que naturalmente são produzidas pelo sistema de defesa contra organismos invasores.
Até hoje não existe um tratamento específico contra a febre amarela. Quando as pessoas adoecem gravemente e precisam ser internadas, a terapia consiste em adotar medidas de suporte para manter o corpo hidratado e evitar hemorragias e sinais de lesão renal. A melhor proteção contra a doença é a vacina, elaborada com o vírus atenuado (enfraquecido). Desenvolvida há quase um século, ela é eficaz e segura. Algumas semanas após a imunização, ela evita que quase 100% dos vacinados desenvolvam a forma grave da doença. Embora faça parte do programa de vacinação de cerca de 40 países onde a infecção é endêmica, entre eles o Brasil, a proporção de pessoas que a tomam é baixa. Dados de um boletim de agosto de 2022 da Organização Pan-americana da Saúde (Opas) indicam que, em média, metade das pessoas nessas nações recebe o imunizante. Além da pouca disponibilidade da vacina, fabricada apenas por quatro países, há o receio de um evento adverso raro. Em aproximadamente 1 em cada 250 mil vacinados, o vírus pode adquirir novamente a capacidade de se multiplicar e causar a forma grave da doença, levando algumas pessoas à morte.
De volta aos Estados Unidos, Watkins entrou em contato com a imunologista Laura Walker, atualmente na empresa Adagio Therapeutics, que anos antes havia isolado cerca de 1.200 anticorpos diferentes produzidos pelo organismo de pessoas vacinadas. A equipe de Watkins selecionou os 37 anticorpos mais promissores e, em laboratório, testou a capacidade de cada um deles bloquear a ação do vírus da vacina. Os cinco que se saíram melhor foram encaminhados para a bióloga Myrna Bonaldo, no Rio de Janeiro. No Laboratório de Biologia Molecular de Flavivírus da Fiocruz, o grupo de Bonaldo testou o poder de esses anticorpos neutralizarem quatro cepas do vírus que circularam entre 2008 e 2019 no Brasil. No início de 2022, os grupos de Bonaldo e de Kallás e colaboradores haviam publicado na revista Cell Host Biology um trabalho mostrando que os anticorpos produzidos em resposta à vacina são ligeiramente distintos – e menos potentes – do que os gerados pela infecção das cepas em circulação no Brasil.
Dois dos anticorpos avaliados na Fiocruz, o MBL-YFV-01 e o MBL-YFV-02, revelaram-se de especial interesse por neutralizarem bem o vírus e seguiram para a fase de teste em animais. Administrados isoladamente e em dose única a hamsters três dias após a infecção com o vírus da febre amarela, os anticorpos amenizaram a gravidade da doença e permitiram que os animais vivessem pelos 21 dias em que foram acompanhados. Os roedores do grupo de controle começaram a morrer a partir do sexto dia após o contato com o vírus. Na Universidade de Saúde e Ciência do Oregon, Estados Unidos, o biólogo Benjamin Burwitz repetiu os experimentos com macacos rhesus, nos quais a infecção costuma ser mais agressiva e matar a partir do terceiro dia, e obteve resultados semelhantes.
“Pela capacidade de neutralização do vírus que demonstraram, esses anticorpos estão prontos para ir para os testes clínicos”, afirma Kallás, que atualmente dirige o Instituto Butantan. “Em uma próxima fase, talvez seja interessante usar os dois anticorpos combinados, porque cada um deles reconhece uma região diferente do envelope do vírus”, propõe Bonaldo, da Fiocruz.
Antes do início dos testes em seres humanos, porém, será preciso superar um gargalo comum no desenvolvimento de medicamentos e vacina no Brasil: produzir os anticorpos seguindo as boas práticas de manufatura, exigidas pelas agências sanitárias para os compostos a serem usados por seres humanos. “Hoje, produzir no exterior um lote-piloto desses anticorpos para os testes clínicos custa no mínimo US$ 5 milhões”, relata o infectologista da USP.
“Caso se mostrem eficientes em ensaios com seres humanos, esses anticorpos podem representar um grande avanço na terapia da febre amarela”, comenta o médico e virologista Pedro Vasconcelos, do Instituto Evandro Chagas (IEC) e Universidade do Estado do Pará (Uepa), em Belém, no Pará, que não participou da pesquisa. Provocada por um vírus da família Flaviviridae, a mesma dos causadores de dengue e da zika, a febre amarela atinge a cada ano cerca de 200 mil pessoas no mundo e se manifesta em duas fases. A primeira, chamada de infecciosa, dura três ou quatro dias e causa febre alta, calafrios, cansaço, dor de cabeça, dor muscular, náuseas e vômitos. Na fase seguinte, a viscerotrópica, o vírus se aloja em órgãos como rins, fígado, coração e pulmão e causa danos que podem ser fatais.
Acompanhando 84 pacientes do surto de 2016-2019, a infectologista Vivian Avelino-Silva e o biomédico Mateus Thomazella, do grupo de Kallás, verificaram que cada vez que a quantidade de vírus (carga viral) no organismo se multiplica por 10 aumenta em 84% o risco de morrer, segundo estudo publicado em novembro de 2022 no Journal of Infectious Diseases. Em um trabalho anterior, publicado na Lancet Infectious Diseases, a equipe da USP havia observado que, além da carga viral, o aumento da quantidade de células de defesa para combater o vírus e sinais de danos ao fígado também indicam maior risco de óbito. “Dispor de anticorpos monoclonais para evitar a evolução da fase infecciosa para a viscerotrópica pode levar ao aumento de sobrevida dos indivíduos infectados e à redução da letalidade da doença”, afirma Vasconcelos. Os pesquisadores imaginam que esses anticorpos também possam servir para combater os eventos adversos raros da vacina.
Íntegra do texto publicado em versão reduzida na edição impressa,
Projeto
Investigação da neutrofilia em pacientes com Febre Amarela aguda (nº 19/13713-1); Modalidade Bolsas no Brasil – Doutorado; Pesquisador responsável Esper George Kallás (USP); Beneficiário Mateus Vailant Thomazella; Investimento R$ 148.324,57.
Artigos científicos
RICCIARDI, M. J. et al. Therapeutic neutralizing monoclonal antibody administration protects against lethal yellow fever virus infection. Science Translational Medicine. 29 mar. 2023.
HASLWANTER, D. et al. Genotype-specific features reduce the susceptibility of South American yellow fever virus strains to vaccine-induced antibodies. Cell Host Microbe. 9 fev. 2022.