Nos cinco primeiros dias de setembro, choveu 300 milímetros (mm) na região central do Rio Grande do Sul, quase o dobro do previsto para o mês. A pluviosidade extrema foi acompanhada de granizo e rajadas de vento de até 100 quilômetros por hora e deixou um rastro de destruição em cerca de 90 municípios gaúchos. Aproximadamente 4.700 pessoas tiveram suas casas completamente destruídas e 20.500 foram desalojadas. Mais de 50 pessoas foram mortas e 900 foram feridas em deslizamentos de terra ou enxurradas causadas pelo transbordamento de rios, como o Taquari, cerca de 120 quilômetros a noroeste de Porto Alegre. O evento foi o maior desastre natural da história do estado.
A tragédia foi ocasionada por um ciclone extratropical, nome dado a tempestades com vento, geralmente mais fracas, mas similares a furacões, que ocorrem em faixas do globo situadas entre 30 e 60 graus de latitude, fora da zona tropical. Um ciclone desse tipo se forma quando, no jargão da meteorologia, surge um sistema frontal: há o encontro de duas massas de ar com diferentes densidades e temperaturas, uma fria e outra quente.
Esse tipo de fenômeno meteorológico é relativamente comum no Sul do país e pode produzir desde chuvas fracas até tormentas devastadoras, como a ocorrida em setembro no Rio Grande do Sul. Ciclones extratropicais severos são conhecidos dos gaúchos: em junho deste ano, mais de 40 cidades ao norte do estado já tinham sido afetadas por outra ocorrência dessa categoria.
A intensificação dos ciclones extratropicais formados no continente pode ser influenciada pela diferença de temperatura entre a superfície terrestre e a dos oceanos, especialmente durante o inverno. Nessa estação, o continente fica mais frio que os oceanos, que baixam de temperatura de forma mais devagar porque retêm mais calor.
“Além disso, o ar sobre o continente sul-americano está mais seco do que sobre o Atlântico. Ao se se deslocar em direção ao oceano, o ar seco e frio do continente absorve calor e umidade da água do mar. A diferença de temperatura do ar com a água do mar e a baixa umidade relativa do ar facilitam ainda mais a evaporação do Atlântico, levando mais umidade e calor para a atmosfera”, conta Manoel Alonso Gan, meteorologista do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Nas regiões mais altas da atmosfera, o vapor muda para a fase líquida. Assim como a evaporação da água rouba calor de quem está com uma blusa molhada, a liquefação do vapor gera calor, o que dá mais energia para o ciclone.
Não há estudos conclusivos sobre se os ciclones extratropicais estão se tornando mais frequentes ou intensos. Embora não haja consenso, alguns trabalhos indicam que, com o aquecimento global, eles tenderiam a se tornar menos numerosos, mas haveria uma elevação no número de eventos mais vigorosos. “Análises numéricas globais mostram que, ao longo dos anos, estamos tendo uma redução na quantidade de ciclones. No entanto, há aumento na quantidade dos mais intensos”, explica Gan. Na América do Sul, os ciclones extratropicais normalmente se formam no trecho do litoral entre o sul da Argentina e o Rio de Janeiro.
“Por serem um centro de baixa pressão, ou seja, com menos ar do que as suas redondezas, os ciclones estão intimamente ligados à instabilidade atmosférica”, comenta o meteorologista André Nunes, da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). “Para tentar entrar em equilíbrio, o sistema atmosférico faz o ar convergir para o centro de baixa pressão.”
No hemisfério Sul, os ciclones giram no sentido horário, enquanto no Norte é no anti-horário. Essa particularidade se deve ao efeito Coriolis, que empurra para o oeste os ventos quentes que sopram no sentido trópico-polo e para leste os que sopram no sentido oposto.
Sistemas de baixa pressão surgem com frequência sobre os continentes, mas não são necessariamente ciclones extratropicais. Estes aparecem geralmente sobre os oceanos, onde a evaporação de água é bem maior. “O encontro entre a corrente marítima do Brasil, quente, e a das Malvinas, fria na altura do Rio Grande do Sul, favorece a formação mais frequente de ciclones no Sul do país”, diz Nunes.
Os ciclones extratropicais têm uma parte quente no seu setor leste – a de entrada da massa de ar com temperatura mais elevada – e uma fria no setor oeste, que é a região influenciada pelo ar frio ou de origem polar. “Chamamos a borda da massa de ar frio de frente fria e a da massa de ar tropical de frente quente”, comenta Nunes. Frequentemente noticiadas nos meios de comunicação, as frentes frias vindas do Sul, que usualmente trazem chuvas e frescor, fazem parte de ciclones.
Na maioria das vezes, chega ao continente apenas a borda do ciclone, não o centro, que geralmente se situa sobre os oceanos. Mas, a depender do volume da massa de ar quente em um ciclone ou na região pré-frontal de uma frente fria, pode haver tempestades e instabilidade mesmo nas margens da formação, e não apenas no coração do fenômeno. Quanto mais ar quente e úmido, mais condições de ocorrerem tempestades.
A geografia da América do Sul favorece a ocorrência de ciclones extratropicais. “Os ventos alísios, ao bater na Cordilheira dos Andes, deslocam-se para o sul e facilitam a formação de ciclones”, explica Nunes. Úmidos e quentes, esses ventos sopram de leste para oeste na região equatorial.
Furacão ou tufão
Diferentemente dos extratropicais, os ciclones tropicais, que se formam nas áreas oceânicas mais próximas do Equador, desenvolvem-se a partir do aquecimento da superfície. Eles costumam ser de menor extensão e mais intensos. Os que se originam no Atlântico, nos arredores da América Central e América do Norte, são denominados furacões; os da Ásia são chamados de tufões e os sobre o Índico simplesmente de ciclones tropicais.
“Eles são sempre eventos severos, mas normalmente se dissipam ao entrar no continente porque cessa a alimentação de umidade que vinha do oceano”, comenta Nunes. Já a intensidade dos ciclones extratropicais, como os que ocorrem no Sul do país, é muito variável. O problema é que os mais severos parecem ter aumentado de frequência.
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