Ainda que o Brasil tenha produzido nomes e marcos importantes da arquitetura do século XX, conhecidos mundialmente – Oscar Niemeyer e Brasília à frente –, há toda uma produção voltada para a habitação social ainda pouco conhecida e mais ou menos à margem da história oficial. Não que essa produção seja pouco visível ou numericamente insignificante. Está presente em cidades de todo o Brasil, e sua história constitui uma narrativa com rupturas, mas também fortes traços de continuidade, chegando até as políticas públicas atuais, além de ter criado um valioso repertório de experiências técnicas e formais na arquitetura e no urbanismo.
A intenção de iluminar e inventariar a história da habitação social no Brasil, que completou 100 anos em 2012, está na origem do recém-lançado Os pioneiros da habitação social, livro em três volumes de Nabil Bonduki, arquiteto, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP) e vereador em São Paulo pelo PT. O “miolo” da obra, que está no volume 2, é dedicado ao período que vai de 1930 a 1964, ou seja, da primeira posse do presidente Getúlio Vargas ao golpe militar. “Tivemos aí um ciclo da habitação social vinculado aos princípios do urbanismo moderno”, diz Bonduki.
Se os 100 anos da habitação social começaram com um projeto do governo federal em Marechal Hermes, no Rio de Janeiro, que, enfrentando muita oposição, conseguiu completar 165 casas, a era Vargas criou uma nova cultura e uma outra abordagem. “Estabelece-se a ideia da função social da habitação; o Estado assume uma feição de enfrentamento das questões urbanas”, diz Bonduki. “E o modernismo passou a ser a linguagem desse novo tempo.”
Avanços e retrocessos
No todo, Os pioneiros da habitação social trata simultaneamente dos fundamentos e práticas da política habitacional brasileira ao longo de um século e dos avanços e retrocessos arquitetônicos no mesmo período. A obra, publicada em conjunto pela Editora Unesp e pelas Edições Sesc SP, tem um total de 1.208 páginas ilustradas com fotos e gráficos. O volume 1, Cem anos de política pública no Brasil, apresenta e comenta a história da habitação pública no país, abordando em detalhes, na segunda parte, a produção dos institutos de previdência, responsáveis pela moradia pública na era Vargas. O volume 2, Inventário da produção pública no Brasil entre 1930 e 1964, coassinado pela arquiteta e urbanista Ana Paula Koury, traz o levantamento e a documentação dos 322 projetos (em 24 unidades federativas) do período, incluindo os redesenhos de cada um em escalas comparáveis. O volume 3, Onze propostas de morar para o Brasil moderno, estuda em profundidade 11 desses projetos, com modelos tridimensionais dos desenhos originais e ensaios do fotógrafo Bob Wolfenson.
As raízes desse trabalho se encontram no mestrado e no doutorado de Bonduki, apresentados nos anos 1990 na FAU e apoiados pela FAPESP, que resultariam no livro As origens da habitação social no Brasil (editora Estação Liberdade, 1998, agora na sexta edição), sobre a transformação das cidades brasileiras na era Vargas. No processo de pesquisa, Bonduki identificou uma produção arquitetônica importante no período, que raramente havia sido estudada. Nasceu daí o interesse em ampliar a historiografia sobre o assunto, tendo como foco “pensar a arquitetura moderna brasileira, sobretudo a dos anos 1940 e 1950 do século XX, e como se relacionava com a habitação social”.
O trabalho de pesquisa se estendeu por 17 anos (1997-2013) na USP, inicialmente na Escola de Engenharia de São Carlos e depois na FAU, e teve a participação de cerca de 40 pesquisadores, muitos dos quais depois levaram adiante estudos próprios a partir de temas despertados durante o processo. A etapa-chave da pesquisa foi o levantamento de campo completo da produção da habitação social entre 1930 e 1964 – o segundo dos três volumes do livro, que foi o primeiro a ficar pronto. As duas grandes fases da pesquisa receberam apoio da FAPESP e a segunda, desenvolvida após o levantamento, foi selecionada em edital público promovido pela Petrobras na área de patrimônio e documentação.
A atividade de pesquisa se articulou com a da equipe do professor Carlos Ferreira Martins, diretor do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da USP São Carlos (e autor da orelha do volume 2), que questionava a abordagem histórica tradicional da arquitetura modernista brasileira por ignorar alguns temas e nomes. Tanto para Martins quanto para Bonduki, há na trajetória da arquitetura “mais tradicional”, voltada para a habitação em massa, uma contribuição histórica tão importante quanto a dos nomes consagrados como Niemeyer, Lúcio Costa, Rino Levi e Lina Bo Bardi.
Mesmo um arquiteto costumeiramente incluído nesse grupo, Affonso Eduardo Reidy, era pouco conhecido por sua atuação na habitação social, apesar de ser autor de projetos de grande importância histórica e estética como os serpenteantes conjuntos da Gávea e de Pedregulho, no Rio, ambos inaugurados no início dos anos 1950. Reidy era casado com a engenheira e teórica Carmen Portinho, outro nome cardeal da história da habitação social brasileira. Carmen foi diretora do Departamento de Habitação Popular, vinculado à prefeitura do Distrito Federal (Rio de Janeiro), um dos poucos órgãos regionais que realizaram uma produção relevante no período do Estado Novo, e posteriormente, no segundo governo Vargas (1952-1954), atuou como membro do Conselho Central da Fundação da Casa Popular.
Desaparecido da historiografia
Um dos arquitetos “desaparecidos da historiografia dominante”, segundo Bonduki, é Carlos Frederico Ferreira, que dedicou toda a vida profissional ao Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Industriários (Iapi), o órgão público que mais se destacou na produção habitacional do período Vargas, do qual foi chefe do Setor de Arquitetura e Desenho e posteriormente da Divisão de Engenharia. “Consegui conversar com ele em 1994, seis meses antes de sua morte”, diz Bonduki. “Ninguém sabia onde ele estava até que o localizei na serra de Nova Friburgo, no Rio.”
Nessa conversa, Ferreira resumiu a preocupação central do Iapi em “colocar as unidades habitacionais ao alcance da grande maioria dos associados de salário modesto, isto é, estabelecendo o preço mínimo sem sacrificar, todavia, as condições indispensáveis de higiene e conforto”. Essa preocupação avançada estava em consonância com os princípios estabelecidos pelo suíço Le Corbusier, em 1933, no Congresso Internacional de Arquitetura Moderna, entre eles, nas palavras de Bonduki, a ideia de que habitação “não era só unidade habitacional”, mas também espaços públicos como praças e escolas. No entanto, segundo o pesquisador da FAU, esse conceito encontrava obstáculos imensos no Brasil, a começar pela indústria de construção. “As questões que tinham de ser enfrentadas eram básicas, como a falta de normas para a produção de um simples tijolo, cuja diversidade de tamanhos, de acordo com a origem, dificultava a realização de obras de grande dimensão”, escreve Bonduki.
Outro nome importante dessa época é o do arquiteto Rubens Porto, assessor do Conselho Nacional do Trabalho, que estabeleceu diretrizes gerais para os institutos de previdência e recomendações para a construção dos conjuntos residenciais. Porto, em 1938, reuniu em livro uma série de soluções para esses edifícios, que implicavam a racionalização dos processos, eliminando toda decoração supérflua, entrega da casa mobiliada e uma tipologia de blocos multifamiliares de quatro pavimentos, com pilotis e apartamentos dúplex. Na prática, mesmo eventualmente não seguindo esses preceitos, boa parte da produção dos institutos apresentava noções claras de inserção urbana e uso racional e industrial dos materiais.
“É difícil apontar a existência de uma política habitacional no período, mas houve ações simultâneas que foram coincidindo e se casando”, diz Bonduki. “O cenário era composto por uma dispersão de órgãos, vários institutos com características e equipes próprias tentando garantir atualização e custos mais baixos.” Formou-se uma “tecnoburocracia competente” e departamentos de engenharia capazes de formular soluções para os desafios da criação de habitações populares de custo reduzido e boa qualidade. Numa época em que não havia empresas de construção como as de hoje, e as escolas para arquitetos eram novidade, esses departamentos funcionavam, segundo Bonduki, como “grandes escritórios de arquitetura” e “laboratórios práticos”.
População de baixa renda
De acordo com o estudo de Bonduki, os notáveis avanços da arquitetura e do urbanismo e a criação de um legado inspirador não significaram conquistas correspondentes no acesso da população de baixa renda à moradia. No contexto da transição de uma sociedade predominantemente agrário-exportadora para uma era urbano-industrial e capitalista, em que o governo se atribuía a função de proteção ao trabalhador, as iniciativas privadas no campo da habitação foram desestimuladas pela Lei do Inquilinato, de 1942, que congelou os aluguéis. De início, o efeito foi positivo para a população, porque diminuiu consideravelmente o peso do gasto com moradia para os assalariados.
Mas essa situação, combinada com um movimento intenso de urbanização do país (8 milhões de moradores de cidades em 1930 e 32 milhões em 1960), acabou gerando um déficit de habitações, um inchaço das periferias, carência de serviços públicos e uma onda de ações de despejos. Em suma, uma grave crise de habitação. No fim do período, os institutos de previdência nem sequer chegaram perto de suprir as necessidades de moradia da população, totalizando apenas 175 mil unidades construídas. “A saída para a população de baixa renda foi a autoconstrução nas periferias, criando o modelo das grandes cidades que hoje conhecemos”, diz Bonduki.
Contrariando a ideia de que Brasília, inaugurada em 1960, foi um projeto revolucionário, Bonduki a considera “ponto de chegada” das experiências ocorridas entre os anos 1930 e 1950, com suas superquadras assemelhadas aos conjuntos projetados nos anos 1940. Além de um importante papel dos institutos de previdência na edificação das áreas residenciais.
Novos programas
Do ponto de vista político, a inauguração da nova capital se dá em pleno refluxo da vitalidade alcançada no Estado Novo pela atividade arquitetônica e urbanista. Já no fim do período, foi proposta a unificação dos institutos de previdência num único órgão e a transferência de parte de seus fundos a uma instituição que seria destinada especificamente ao atendimento universal das necessidades de moradia da população, a Fundação da Casa Popular (FCP). As direções dos próprios institutos, além de outros setores da sociedade, se opuseram à mudança, que lhes tiraria recursos e privilégios. Com isso, a FCP já nasceu esvaziada e, segundo Bonduki, “seu fracasso atrasou em 20 anos a formulação de uma política habitacional consistente”.
A retomada aconteceria com o início do regime militar de 1964, quando os fundos de pensão são abolidos com a criação do Instituto Nacional de Previdência Social (INPS, hoje substituído pelo INSS) e do Banco Nacional da Habitação (BNH), voltado para a produção e financiamento de imóveis. Era um banco de segunda linha, ou seja, atuava diretamente com outros bancos, não com o público, e durou até 1986, quando foi incorporado à Caixa Econômica Federal. No entanto, a inação dos tempos de FCP, somada ao desmonte de estruturas promovido pelo golpe de 1964, tirou do cenário as forças empenhadas numa política de habitação social consequente e que atendesse de fato às necessidades da população. As unidades habitacionais eram agora vendidas ao futuro morador e, se houve ênfase e êxito na produção em massa (4,2 milhões de residências), descuidou-se extremamente da qualidade dos projetos. Ao final da vida do BNH, já no período de redemocratização, a sigla era conhecida como sinônimo de edificações feias e mal-acabadas.
A partir dos anos 1990, importantes experiências no âmbito municipal prenunciaram uma série de avanços na construção de políticas urbanas e habitacionais, muitas delas por iniciativa popular. Foi o período de instituição do Estatuto da Cidade, do Ministério das Cidades e do Fundo Nacional da Habitação. Esse arcabouço formou um quadro auspicioso, fortalecido por condições demográficas favoráveis, como o encerramento do ciclo de migração campo-cidade e a diminuição do ritmo de crescimento populacional.
Questões políticas, no entanto, levaram, em 2009, à criação do programa federal Minha Casa, Minha Vida, que Bonduki vê com muitas restrições. Ele ressalta a existência, hoje, de “um sistema de financiamento e subsídios com fontes próprias, muito robusto e saudável”. Mas afirma que “se procurou associar a criação de empregos e o crescimento econômico com a agenda da habitação sem agir nas questões fundiária e urbana, gerando resultados contraditórios”. Bonduki prevê como resultado o agravamento de problemas de mobilidade, segurança e meio ambiente. Para ele, é urgente substituir o foco quantitativo pelo qualitativo, como fizeram os “pioneiros” – e para isso, hoje, é necessário que o poder público encare seriamente o problema fundiário.
Projeto
Os pioneiros da habitação social no Brasil (nº 2012/50030-0); Modalidade Auxílio Publicação; Pesquisador responsável Nabil Bonduki (FAU-USP); Investimento R$ 40.000,00 (FAPESP).