O processo de globalização obrigou as indústrias brasileiras a participar de forma mais ativa do mercado mundial. Elas perceberam que, se não adotassem outros padrões de desenvolvimento industrial, não seriam competitivas no novo panorama econômico. Assim, as indústrias brasileiras, especialmente as de São Paulo, estão sendo obrigadas a desenvolver novos padrões. Ao mesmo tempo, está começando a aparecer no Brasil com cada vez mais freqüência um ente antes estranho, as empresas multinacionais. Ainda não entendemos muito bem esse ator, apesar de sua presença cada vez maior no palco. É importante lembrar que essas empresas são de fora, mas precisam nacionalizar-se para operar eficientemente no Brasil. Ou seja, elas já passaram da fase de empresa nacional de um país, operando fora de suas fronteiras, para a de empresa internacional. Com seu crescimento assustador, elas agora precisam desenvolver bases locais, em vários países.
O Brasil tem chances enormes de ser base de várias multinacionais. Essas empresas, especialmente as dos setores mais dinâmicos da economia, são investidoras em pesquisa e desenvolvimento, fortemente investidoras. E isso para o Brasil pode ser muito bom. Se a única participação dessas empresas no Brasil for montar, fabricar e usar a mão-de-obra disponível no mercado brasileiro, o país estará perdendo um papel importante da multinacional, a de fomentadora e indutora da pesquisa e desenvolvimento. Fundamentalmente, é preciso criar mecanismos para que as multinacionais tragam seus centros de pesquisa para o Brasil.
Esses centros de pesquisa, além dos benefícios das próprias pesquisas, absorvem mão-de-obra qualificada. Passou o tempo em que existia a visão de que as multinacionais faziam pesquisas centralmente e usavam os mercados nas pontas. Isso talvez fosse verdade na década de 70. Hoje, não é mais. Não é mais possível fazer pesquisas centralmente. As multinacionais hoje distribuem suas pesquisas por todo o mundo. Resta saber quantas delas virão para o Brasil.
As coisas no mundo ocorrem muitas vezes com mais simplicidade do que se imagina. Vi muitos casos em que se conseguiram coisas porque um presidente, um governador, um deputado foi ao local devido e pediu. Vi os primeiros-ministros da Malásia e da Índia no Silicon Valley pedindo às empresas de informática que se instalassem em seus países. Isso não é nada fora do normal. Funciona facilmente um esquema em que um lugar planeja construir um centro de pesquisa e um de seus dirigentes vai negociar diretamente a participação de uma empresa nesse centro. É como no futebol. Quem pede a bola, tem preferência para recebê-la.
Um problema é que isso exige atenção para o desenvolvimento a longo prazo. O pano de fundo é maior do que a simples indução para a instalação de um centro de pesquisa. Por exemplo, é preciso atentar como esse centro se espalhará pelo resto da cadeia, como a cadeia de fornecedores poderá aproveitar esse centro para expandir suas operações. O centro, além disso, pode ficar amarrado a pesquisas feitas em outros países, não às que são realizadas no Brasil. É preciso haver uma política. Não basta jogar o instrumento na mesa. Sozinho, ele não será suficiente.
Chegou a hora, também, de a indústria brasileira mudar seu perfil de competitividade. Já não são mais suficientes os mecanismos macroeconômicos. A indústria se pautou durante muito tempo pelas políticas governamentais de câmbio defasado, o que tolhia a sua competitividade, e a de juros altos, que impedia essa competitividade. A indústria brasileira tem um rol de 200 argumentos para mostrar por que não é competitiva. Mas, na verdade, esses argumentos estão desaparecendo com o passar do tempo. O câmbio mudou, os juros baixaram. A indústria começou a notar que estamos entrando num momento em que o argumento mais importante para a competitividade vai deixar de ser a macroeconomia para ser a origem de tudo, a tecnologia.
Sem tecnologia, não é possível ser competitivo, pelo menos nos setores dinâmicos da economia. A importância da tecnologia já começou a ser percebida pelas indústrias. No ano passado, a Fiesp preparou um documento chamado “Um projeto para o Brasil, Desenvolvimento Sustentável com Responsabilidade Social” . O documento apresenta um projeto para o desenvolvimento industrial de São Paulo, com repercussões para toda a indústria nacional. O viés tecnológico está evidente nos seus termos.
Vou abrir um parênteses. Um estudo feito em São Paulo, que não chegou a ser muito divulgado, mostra que em todos os países desenvolvidos o governo ajuda diretamente as empresas no desenvolvimento tecnológico. É preciso qualificar essa ajuda. Não é um financiamento. É uma ajuda à empresa para que ela desenvolva tecnologia e seja capaz de competir pela liderança no mercado internacional. A Organização Mundial do Comércio (OMC) não permite que os governos ajudem as empresas nas etapas posteriores do processo industrial, inclusive para exportar ou fazer marketing. Mas não proíbe a ajuda ao desenvolvimento tecnológico, inclusive porque os países mais adiantados fazem isso naturalmente.
Ou seja, não se pode apoiar ou financiar na ponta, na venda, como mostra o exemplo da Embraer. Mas pode-se financiar na base. No Brasil, porém, há, aparentemente, impedimentos para isso. As leis brasileiras procuram evitar, de maneira bem incisiva, que o governo apóie diretamente as empresas privadas, mesmo no estímulo aos trabalhos de pesquisa e desenvolvimento no setor industrial. Ou seja, o Brasil sofre nos acordos internacionais, não ocupa o espaço deixado aberto pela OMC e, ainda, adota regras internas que dificultam essa ocupação.
Há outros problemas. Os Estados do Norte e do Nordeste estão mais bem preparados do que São Paulo na disputa política dentro do Congresso Nacional. Esses Estados formaram lobbies que estão empenhados em criar leis que favoreçam diretamente aquelas regiões, visando a diminuir as diferenças regionais. Há mecanismos partidários e também os suprapartidários. Por exemplo, na defesa dos interesses da Zona Franca de Manaus durante a discussão da Lei de Informática, os argumentos usados por um deputado do PFL do Amazonas são iguais aos utilizados por um deputado do PT do mesmo Estado.
Essa ação no Congresso já está influenciando os Programas de pesquisa e desenvolvimento. No fundo do petróleo, fica estabelecido que 40% das verbas irão, necessariamente, para o Nordeste. O mesmo está determinado para os próximos fundos, que, em última análise, vão ser os principais mecanismos de fomento federal à ciência e tecnologia. Embora todos queiramos avançarna diminuição das diferenças regionais, não podemos cobrir a cabeça e descobrir os pés. Ou seja, precisamos, na verdade, aumentar os recursos para Pesquisa e Desenvolvimento em todas as regiões. E precisamos do apoio da bancada paulista para o apoio às nossas iniciativas locais.
É importante, também, definir prioridades. É impossível ser o melhor em tudo. O processo de definir prioridades é complicado. A Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) propõe, por exemplo, que elas sejam as áreas em que a balança de pagamentos é deficitária. Outra prioridade importante pode ser a do desenvolvimento tecnológico ligado à geração de empregos. Existem várias idéias, mas não podemos misturar tudo num saco. Não se trata de um caso onde o nivelamento produz resultados. O Brasil deve começar com um número pequeno de prioridades e concentrar os seus focos nessas prioridades. Temos vários planos e várias idéias, mas poucos resultados. Um dos motivos pelos quais os resultados são pequenos é que o país atira ao mesmo tempo em diversas direções.
Um mecanismo já usado é o financiamento universidade-empresa. Idealmente, esse financiamento seria uma maneira de compensar o risco e os juros altos. A parte da universidade entra a fundo perdido, a da empresa é um financiamento. Aparentemente, essa combinação pode dar resultado. Mas, normalmente, eles são limitados, pois a equação está errada. A universidade não entende de tecnologia industrial. Havia, no passado, um modelo de substituição de importações, inicialmente defendido pela Comissão Econômica para a América Latina (Cepal), no qual a universidade criava a tecnologia e a transferia para a indústria. Esta punha o produto na rua e todos ficavam felizes.
No mundo globalizado, isso não funciona mais. A verdade é que a universidade não entende de tecnologia, não entende de mercado e os produtos que faz não são competitivos. A universidade, fundamentalmente, é uma geradora de conhecimentos e de pessoal qualificado. Esse é seu grande papel. Tecnologia se faz na empresa. Esses financiamentos só funcionarão se for possível mudar a equação. Ou seja, se a empresa procurar a universidade, receber o financiamento e liderar o processo. Os resultados, aí, serão muito melhores. O papel principal deve caber à empresa, e a universidade ser coadjuvante, não o contrário.
Tenho estudado alguns modelos novos de relacionamento entre universidade e empresa. Um dos mais interessantes surgiu no Canadá, em 1993. Trata-se de uma cooperativa chamada Canarie, da qual participam universidades e associações empresariais. É como se, em São Paulo, se unissem as universidades públicas e a Fiesp. É essa organização que recebe o dinheiro e distribui os recursos. Ou seja, o dinheiro é distribuído pelo consenso de quem vai usá-lo efetivamente. É um modelo que poderia funcionar no Brasil, mas teríamos de mudar a nossa cultura, especialmente a do setor público, que hoje controla as verbas de PeD. A FAPESP é um ótimo exemplo desse modelo. Ela é controlada pela comunidade científica, com mínima interferência do governo. E funciona muito bem. O que estou propondo é criar uma organização, formada pela academia e pela indústria, que, similarmente à FAPESP, gerencie e defina o fomento aos projetos de desenvolvimento de tecnologia industrial. O governo continuaria fomentando os projetos de interesse social, mas não mais os de interesse industrial.
Outro grande tema fundamental é o uso da encomenda pioneira como forma de estimular o desenvolvimento tecnológico. Por exemplo, a Fundação Zerbini tem competência para desenvolver um novo aparelho. O poder público adiantaria recursos para que a fundação criasse o aparelho, compraria as unidades piloto e facilitaria o desenvolvimento do produto. A indústria aeronáutica brasileira foi montada por meio de um processo semelhante. O Estado não faz, na verdade, uma compra de unidades de um aparelho (que ainda não existe). Mas se compromete a comprar as unidades piloto.
O capital de risco está aparecendo devagar no Brasil. Está entrando no país porque hoje há sobra de capitais no mundo. Assim, ao lado dos fundos criados por brasileiros, há também dinheiro que vem de fora. O Brasil ainda não se organizou para melhor aproveitar esses capitais. Os brasileiros ainda não entenderam como funciona o capital de risco. Muitas vezes, acham que é uma maneira de resolver os problemas de financiamento das empresas. Não é bem assim. O capital de risco procura investimentos rentáveis e que possam, em prazo curto, ser transferidos para outros agentes do mercado de capitais. Ele é temporário. Se o investimento não oferecer liquidez, o capital de risco não entra. A liquidez é, talvez, o fator que mais limita a existência de capital de risco para as empresas nascentes de alta tecnologia.
Há um descompasso, também, no acesso ao mercado de capitais. Se perguntarmos aos empreendedores, estes dirão que não existe capital de risco; mas, se perguntarmos aos investidores, estes dirão que não existem boas empresas. Parece que ambos têm razão. Está faltando um elemento na equação. É o seed capital, o capital semente, que é capaz de financiar as idéias e levá-las a ser apresentadas, como empresa, ao capital de risco. Oseed capital é o dinheiro que a pessoa pede à tia, pede a um amigo e junta para apostar na sua idéia. É o capital inicial, o capital da família. O capital de risco não é isso, ele é a etapa seguinte. Tanto a FAPESP como a Finep têm programas públicos que se assemelham ao seed capital, mas é muito pouco. Precisamos envolver o setor privado, o mais interessado na criação dessas empresas. Há muito a fazer, mas o maior gargalo está no desenvolvimento da inovação pela indústria. Sem ela, o processo de transferência de conhecimento fica bloqueado e o Brasil continuará dependente, especialmente na alta tecnologia.
Flávio Grynszpan era professor da Coordenação de Projetos de Pós-Graduação em Engenharia (Coppe) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) quando, em 1988, pediu demissão para trabalhar na iniciativa privada. Teve muito sucesso. Chegou a presidente da Motorola no Brasil e a vice-presidente de estratégia da mesma empresa para a América Latina. Dos seus tempos da Motorola, lembra uma norma da empresa: nenhum de seus laboratórios de pesquisa e desenvolvimento pode ter mais de 500 doutores. Isso leva a uma distribuição que coloca à disposição da fabricante de celulares e outros equipamentos eletrônicos talentos dos mais diversos países, dos Estados Unidos à China. Grynszpan trabalha hoje como consultor e é diretor titular adjunto do Departamento de Tecnologia (Detec) da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), grupo que realiza importantes trabalhos, entre outros, nos campos da inovação tecnológica, transferência de tecnologia, design e metrologia. Grynszpan foi ainda representante da comunidade empresarial no conselho deliberativo do Conselho Nacional de Pesquisas (CNPq). Enquanto esteve na Motorola, promoveu diversos trabalhos de associação entre empresa e universidades.
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