Pesquisadores comprovaram que a exploração racional de determinadas espécies pode viabilizar o desenvolvimento sustentável dos remanescentes do Cerrado paulista, de tal modo que os proprietários de terras, ao preservar os 20% de área exigidos por lei, ainda possam ter lucro com a parte intocada. O argumento para a preservação desse ambiente surgiu no projeto temático que estudou os mecanismos das reservas naturais de carboidratos (açúcares), coordenado pelo biólogo Marcos Silveira Buckeridge, do Instituto de Botânica da Secretaria do Meio Ambiente.
No encontro de pesquisadores do programa Biota-FAPESP, realizado em dezembro no Parque Estadual Intervales, do Vale do Ribeira, Buckeridge expôs os resultados de seus estudos bioquímicos e fisiológicos, que abrangeram 62 espécies nativas do Cerrado e da Mata Atlântica, mais seis espécies exóticas. Demonstrou várias aplicações de carboidratos abundantes em vegetais desses ambientes, desde um espessante de alimentos e um substituto de produto importado usado em exames renais até um composto que confere maior resistência mecânica ao papel.
Goma brasileira
Entre os vegetais cuja importância cresce com o projeto está o falso-barbatimão (Dimorphandra mollis), uma das leguminosas de maior ocorrência no Cerrado de São Paulo e do Centro-Oeste, encontrada ainda na Caatinga nordestina. Conhecida também como faveira, farinha ou canafístula, tem de 8 a 14 metros de altura e de sua casca e das vagens se extrai a rutina, composto em forma de pó amarelo-esverdeado, sem sabor. A rutina é normalmente utilizada na curtição do couro, mas acredita-se que em humanos aumente a força dos vasos capilares e a absorção de vitamina C.
Buckeridge mostrou que as sementes de falso-barbatimão – atualmente descartadas – são ricas em polissacarídeos (longas cadeias de açúcares) quimicamente idênticos à goma-guar. Essa goma é usada industrialmente como espessante de iogurtes e sorvetes,cápsulas de medicamentos, lubrificante de brocas para prospecção de petróleo e até invólucro de bananas de dinamite. Quase toda importada – cada quilograma custa de US$ 18 a US$ 28 -, é geralmente extraída de sementes de espécies exóticas (não-nativas do Brasil) como Cyamopsis tetragonolobus, leguminosa arbustiva da Índia e do Paquistão. A goma-guar, cujas propriedades são conhecidas desde a década de 1930, também reduz a absorção de gorduras e facilita a absorção intestinal de carboidratos.
Das espécies estudadas, o falso-barbatimão é a que mais contém o polissacarídeo galactomanano, que corresponde a cerca de metade do peso seco da semente e pode substituir a goma-guar. “O rendimento em galactomanano das sementes de Dimorphandra mollis está entre os maiores já encontrados na Natureza”, diz o pesquisador. Trabalhando com dois grupos de sementes, um da Caatinga de Parnaíba (Piauí) e outro do Cerrado paulista (Mogi-Guaçu), o grupo estudou a germinação e desenvolveu um método de extração a seco dos polissacarídeos que se acumulam nas paredes celulares da semente. Por moagem e peneiramento, obteve-se um pó com 83,2% de galactomanano, grau de pureza similar ao dos produtos comerciais. Testes com coelhos indicaram que se trata de um composto atóxico que pode, efetivamente, ser usado como alimento. Há indícios de interesse por essas sementes na Europa e no Japão.
O falso-barbatimão adapta-se bem a terrenos secos e pobres ou áreas degradadas. Falta verificar as condições ideais de produção no campo e a quantidade que pode ser retirada no Cerrado sem impacto ambiental. Para Buckeridge, a exploração racional da goma brasileira pode estimular a preservação do ecossistema, o que, comercialmente, cria um diferencial ambientalista favorável.
Função renal
Outra planta do Cerrado, a Vernonia herbacea, fornece um polissacarídeo do grupo dos frutanos que tem comportamento idêntico ao da inulina. Essa substância industrializada serve para medir a chamada filtração glomerular, que revela o estado da função renal de pacientes. Estudos que pesquisadores do Instituto de Botânica fizeram com camundongos em 1996, em colaboração com a Universidade de São Paulo, haviam demonstrado que a Vernonia é uma alternativa viável à inulina para usos clínicos e acadêmicos.
A equipe de Buckeridge está complementando esses estudos. “Temos experimentos em campo e em laboratório, com a finalidade de compreender o papel de nutrientes específicos no crescimento e no desenvolvimento da planta”, diz ele. “Depois de entender esses pontos, pode-se pensar em como otimizar a produtividade.” Quanto ao aproveitamento da planta, há indícios animadores. “A produtividade da Vernonia é alta, comparável à de espécies já melhoradas de plantas cultivadas na Europa para a fabricação de inulina”, afirma a bióloga Maria Angela Machado de Carvalho.
Os pesquisadores compararam o desenvolvimento e os teores de frutanos em plantas que cresceram sob níveis diferentes de adubação nitrogenada. A conclusão é que o nitrogênio pode beneficiar o acúmulo de inulina: plantas adubadas exibiam aos 12 meses teores bastante próximos aos de outras, com dois anos de idade, cultivadas em condições semelhantes.
Já os xiloglucanos, presentes em todos os vegetais, têm uso potencial na indústria do papel, para aumentar sua resistência mecânica: testes feitos pela indústria de celulose Aracruz a pedido de Buckeridge mostraram um aumento de 40% na resistência ao rasgo. Os xiloglucanos são carboidratos altamente concentrados na semente. Um exemplo é a semente do jatobá-do-cerrado (Hymenaea stigonocarpa), que no jargão da informática seria zipada (compactada), tal a quantidade de carboidratos que contém: cerca de 40% do peso seco.
Em laboratório
Se a exploração de uma planta implicar devastação, pode-se adotar o caminho da produção em laboratório para obter as substâncias desejadas. Por exemplo, a Viguiera discolor – herbácea da família das compostas, como a camomila e a margarida – também é uma alternativa à produção de inulina, mas se desenvolve lentamente: a parte aérea (caule e folhas) cresce entre a primavera e o final do outono e depois entra em dormência.
Então, um objetivo do grupo é chegar à biossíntese de frutanos pela cultura de tecidos vegetais. Para isso, além dos momentos de maior produção de frutanos, também se observa a distribuição dos açúcares na planta. “A distribuição das reservas entre as diferentes partes do órgão subterrâneo é bastante complexa, mas o acúmulo ocorre essencialmente nas raízes tuberosas”, comenta Buckeridge.
Estratégia de inverno
O armazenamento de açúcares em sementes ou estruturas subterrâneas é uma estratégia bem-sucedida de adaptação, que garante a sobrevivência no inverno seco do Cerrado. A produção é acionada sob condições ambientais adversas ou estressantes, como a escassez de água, numa indicação de que essas substâncias podem estar ligadas ao controle hídrico celular. Um dos experimentos comparou os carboidratos solúveis de uma gramínea nativa e abundante no Cerrado, a Echinolaena inflexa, e de uma espécie invasora, a Melinis minutiflora. Concluiu-se que essas espécies adotam estratégias diferentes para sobreviver e ocupar ambientes sujeitos à restrição de água.
Nas duas, os níveis de açúcares aumentaram no inverno (período seco), mas a nativa continha dez vezes mais um grupo de compostos, os açúcares álcoois, que ajudam a planta a viver com pouca água. São evidências de que, mais que resultados, o trabalho mostra novos caminhos, na medida em que os pesquisadores conhecem os momentos de maior ou menor produção de polissacarídeos encontrados nas folhas, no caule, nas sementes ou nas raízes. “As reservas de carboidratos dos vegetais do Cerrado podem ser manejadas de forma sustentável, com aplicações nas indústrias farmacêutica e alimentícia e na área tecnológica”, afirma Buckeridge, coordenador do projeto temático a ser concluído em março de 2003. Desde 1998, o trabalho resultou na publicação de 27 artigos científicos e em 19 teses de mestrado e doutorado, apresentadas ou em andamento.
Três grupos de açúcares essenciais
A equipe de Buckeridge estudou três grupos de carboidratos, ampla classe de compostos que inclui os polissacarídeos e representa cerca de 90% da estrutura da parede celular vegetal: frutanos, galactomananos e xiloglucanos. Os dois últimos são carboidratos de parede celular, que se concentram nas sementes e, entre outras funções, controlam a velocidade de absorção de água.
Frutanos também participam da absorção de água, mas são especialmente relevantes para o desenvolvimento de espécies com reprodução vegetativa, como as da família das compostas. Nesse tipo de reprodução, a planta elimina a parte aérea durante um período de dormência que, no Cerrado, corresponde à época de seca. A parte subterrânea – na qual justamente se concentram os frutanos – sobrevive e dela brotarão novos órgãos aéreos.
“Como os frutanos não são metabolizados pelo organismo humano, podem ser usados sem risco pelas indústrias alimentícia e farmacêutica”, diz Maria Ângela, que estudou o metabolismo desses polissacarídeos em espécies nativas do Cerrado. Um dos tipos de frutanos, os de cadeia curta, com poucas moléculas de frutose acopladas, tem sabor doce. Identificados pela sigla FOS (de fruto-oligossacarídeos), entram na composição de produtos para diabéticos e para regimes de emagrecimento, ou são usados como aditivos em alimentos. Outro tipo, de cadeia longa, com mais moléculas de frutose acopladas, não é doce: as moléculas se encaixam de tal forma que não sobra nenhuma frutose avulsa para garantir sabor. Seu uso potencial é na indústria farmacêutica.
Segundo Buckeridge, os galactomananos – já usados pelos egípcios na mumificação – têm um potencial de uso bem mais amplo, como agora se demonstra com a perspectiva de substituição da goma-guar importada, já que ambos têm a mesma estrutura química.O conhecimento das estruturas de reserva de carboidratos também remete a ajustes na dieta do dia-a-dia. Atualmente, devido ao intenso consumo de produtos industrializados, a alimentação tornou-se escassa em fibras, compostas basicamente de carboidratos, mas desprezadas por conterem poucas calorias – embora se reitere sua importância para o bom funcionamento do sistema gastrointestinal e a prevenção de doenças.
Diante disso, a equipe de Buckeridge tem publicado artigos considerando a possibilidade de se modificar a composição de fibras em plantas muito consumidas ou de introduzir certas fibras em alimentos de uso consagrado. Ele exemplifica: “Por que não, por exemplo, um feijão com mais fibras? Seus tecidos já têm os genes necessários, que precisariam apenas ser ativados ou desbloqueados”.
O Projeto
Conservação e Utilização Sustentável da Biodiversidade Vegetal do Cerrado e Mata Atlântica: os Carboidratos de Reserva e seu Papel no Estabelecimento e Manutenção das Plantas em seu Ambiente Natural (nº 98/05124-8); Modalidade Projeto temático; Coordenador
Marcos Silveira Buckeridge – Instituto de Botânica da Secretaria de Estado do Meio Ambiente; Investimento R$ 309.845 e US$ 378.726