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Ecologia

As engrenagens da floresta

A perda de mais de 60% da vegetação nativa de uma região leva a alterações profundas em seu funcionamento

O desmatamento cria bordas por onde efeitos como calor e pouca umidade penetram

Jos Barlow/Universidade de Lancaster

Quando uma floresta cede lugar a um descampado ou a usos humanos, perde-se muito mais do que a área desmatada. Os chamados efeitos de borda, determinados em grande parte por mudanças em insolação e umidade, penetram entre 200 e 400 metros mata adentro alterando a composição de espécies animais e vegetais, assim como seu funcionamento ecológico. Um estudo liderado pelos ecólogos Marion Pfeifer, da Universidade de Newcastle, e Robert Ewers, do Imperial College de Londres, ambos no Reino Unido, publicado em novembro na revista Nature, indica que 85% das espécies são afetadas pelo efeito de borda. “A floresta torna-se outra”, destaca a bióloga brasileira Cristina Banks-Leite, professora do Imperial College de Londres e coautora do estudo. “Ainda não sabemos dizer até que ponto a comunidade pode se adaptar ao novo funcionamento da floresta.” Para entender essa dinâmica em mutação, pesquisadores esmiuçam o que afeta o funcionamento ecológico das florestas e como elas contribuem para as atividades humanas, por exemplo fornecendo polinizadores para as lavouras – os chamados serviços ecossistêmicos.

Uma dificuldade de se medir os efeitos de borda é que o desmatamento com frequência não segue linhas regulares, formando ilhas geométricas de floresta. “O trabalho da Nature traz um avanço importante no desenvolvimento da técnica que permite medir o efeito em manchas irregulares”, diz Cristina. O diferencial vem da coautoria da matemática francesa Véronique Lefebvre, do Imperial College, que desenvolveu as variáveis I (influência de borda) e S (sensibilidade à borda) para avaliar de maneira quantitativa a configuração da paisagem (como gradientes de cobertura pelas copas das árvores) e como as espécies animais respondem e transitam nesse ambiente. “O método incorpora dois aspectos que não tinham sido levados em conta em análises quantitativas: o contraste entre hábitats e bordas múltiplas além da mais próxima”, explica Marion.

A análise de 1.673 vertebrados em 22 florestas nas Américas, na África, Austrália e Ásia indicou que metade das espécies sofre com o desmatamento (e corre riscos de extinção) e a outra metade se expande – plantas e animais invasores que se dão bem em ambientes alterados. Alguém dirá que fica tudo elas por elas, mas o problema é que esses generalistas não necessariamente contribuem para o funcionamento da floresta.

Nem todos os animais têm a mesma sensibilidade aos efeitos de borda. Anfíbios, por exemplo, correm risco de ressecamento fora do miolo da floresta, principalmente se forem pequenos. Já as cobras e lagartos, com seu corpo alongado, podem ferver ao sol se forem grandes. Entre mamíferos, os morcegos parecem conseguir sobrevoar trechos menos favoráveis, enquanto os terrestres de grande porte se veem limitados ao espaço necessário para obter recursos.

Essa limitação transcende a própria sobrevivência dos animais, aponta um artigo liderado por pesquisadores do Centro de Pesquisa em Biodiversidade e Clima Senckenberg, na Alemanha, publicado em janeiro na Science. Com a contribuição de colaboradores de vários países, inclusive o Brasil, o estudo avaliou 57 espécies de mamíferos e verificou que nas áreas mais alteradas por atividades humanas a movimentação dos animais cai para metade ou um terço do habitual, principalmente devido a mudanças no comportamento dos indivíduos. Além de prejudicar a aquisição de alimentos e outros recursos pelos animais, essa alteração também afeta o ciclo de nutrientes do ecossistema e a dispersão de sementes, entre outras coisas.

No Brasil foram incluídas várias espécies monitoradas no Pantanal, uma das regiões com o menor índice de alteração antrópica entre as avaliadas, explica a bióloga Nina Attias, que contribuiu com dados obtidos durante o doutorado na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul junto à Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) Pantanal, sobre a movimentação de tatus. “Os tatus e os demais mamíferos monitorados no Pantanal servem como base de comparação para avaliar como os animais se movem em zonas com variados níveis de alteração antrópica.” Em uma escala mais local no Pantanal, áreas com níveis diferentes de preservação alteram a forma como os animais usam o espaço, segundo ela, atualmente pesquisadora do Instituto de Conservação de Animais Silvestres, em Campo Grande.

José Carlos Morante-Filho/UESC O pintadinho Drymophyla squammata: especialista em capturar insetos no sub-bosqueJosé Carlos Morante-Filho/UESC

O problema, de acordo com Cristina Banks-Leite, é que não é possível prever a sensibilidade de uma espécie com base em suas características. Seu estudante de doutorado Jack Hatfield examinou dados de dois estudos feitos na Mata Atlântica paulista. Em um deles Cristina capturou em redes, entre 2001 e 2007, aves em 65 áreas de estudo. No outro, o biólogo Pedro Develey, atualmente diretor-executivo da organização não governamental BirdLife/SAVE Brasil, observou e documentou aves em 32 localidades entre 2000 e 2003. Em conjunto eles incluem 196 espécies de aves, que Hatfield classificou conforme 25 características morfológicas e comportamentais. Em seguida ele elaborou um ranking de sensibilidade ao desmatamento para cada um dos estudos e buscou quais variáveis tinham maior influência, como foi descrito em artigo publicado em janeiro na revista Ecological Applications. “O ranking é o mesmo para os dois conjuntos de dados, indicando que o modo de coleta de dados não tem efeito”, diz Cristina.

Mas na hora de analisar, estatisticamente, quais variáveis afetam esse ranking, o resultado é quase aleatório. Os melhores indicadores foram o número de hábitats frequentados pelas espécies, a capacidade de usar ambientes abertos e o comportamento de rastrear as trilhas de formigas-de-correição, comendo os insetos deslocados pelo numeroso exército miniaturizado. Mas nenhuma dessas características possibilita uma previsão consistente e congruente de como as aves se comportarão diante das alterações na floresta. “Dentro de uma mesma espécie há indivíduos mais ou menos sensíveis”, lembra Cristina. Ela considera que a plasticidade de cada espécie na adaptação aos ambientes, que permite que os animais assumam funções distintas conforme a situação, pode ser mais preditiva. “A mesma função pode ser desempenhada por organismos muito diferentes: uma ave desaparece e vem uma aranha, por exemplo.” Para entender esses processos, no entanto, é necessário reunir conhecimento sobre organismos diferentes, algo raro.

Entrevista: Deborah Faria

 
     

É o que vem fazendo o grupo da bióloga Deborah Faria, também coautora do estudo da Nature e coordenadora do Laboratório de Ecologia Aplicada à Conservação da Universidade Estadual de Santa Cruz (Uesc) em Ilhéus, na Bahia. Por meio de análises na escala da paisagem ao longo de cinco anos de projeto em áreas de floresta remanescentes em fazendas, ela e seus colaboradores têm caracterizado como o desmatamento gera uma mudança na Mata Atlântica nessa região do sul baiano. “Mostramos que o desmatamento leva à degradação da estrutura física, a alterações nos padrões de composição e à abundância de espécies e dos processos ecológicos da floresta remanescente.”

Fragmentos inseridos em paisagens com menos floresta, por exemplo, produzem menos frutos em comparação a áreas mais florestadas, de acordo com artigo publicado em 2017 na revista Biotropica. O trabalho fez parte do doutorado da bióloga Michaele Pessoa, que, sob orientação da bióloga Eliana Cazetta, ao longo de um ano coletou e mediu os frutos produzidos em 100 parcelas de 100 metros quadrados cada – um total de 1 hectare estudado. A perda de floresta afetou a variedade e a abundância de frutos com polpa, em grande parte porque as árvores de sombra, especializadas em viver no interior de florestas, mostraram-se sensíveis às modificações no ambiente. Nas áreas que retinham menos de 30% da vegetação original, quase 60% das árvores eram típicas de zonas ensolaradas, o que representa no mínimo o dobro do que é típico na floresta.

Léo Ramos Chaves A floresta abriga abelhas nativas, que também podem polinizar plantações próximasLéo Ramos Chaves

Nesse contexto, as áreas desmatadas também têm menos aves que se alimentam de frutos e de insetos, conforme mostra o trabalho do biólogo José Carlos Morante-Filho, atualmente professor da Uesc, publicado em 2015 na PLOS ONE, como parte do doutorado orientado por Deborah. “A quantidade e a diversidade de aves não diminuem, mas as espécies são outras”, diz Deborah. As aves florestais se tornam abruptamente mais raras e menos diversas do ponto de vista funcional quando resta menos da metade da vegetação original em uma determinada área, medida em um raio de 2 quilômetros ao redor do centro de cada uma das áreas amostrais. Com um papel de destaque no transporte de sementes, a mudança na composição da fauna de aves faz parte de uma transformação no funcionamento dessas florestas.

Também é abrupto o empobrecimento das árvores em matas desbastadas, conforme artigo da bióloga Maíra Benchimol, professora da Uesc, publicado em 2017 na revista Biological Conservation. O grupo analisou as comunidades de árvores adultas e jovens e mostrou que é necessário ao menos 35% de floresta para garantir a diversidade das jovens. “Quando olhamos para uma árvore adulta, vemos o passado: 90 anos atrás, talvez, quando ela se estabeleceu”, alerta Deborah. Ela explica que os adultos não estão se repondo nas áreas degradadas, dando origem a uma floresta composta por árvores de madeira menos densa, que armazena menos carbono. A pesquisadora avalia que algumas espécies, como o jequitibá-da-bahia, já não têm indivíduos suficientes para promover uma recuperação. “Só sobraram adultos, é quase um fóssil vivo.”

José Carlos Morante-Filho /UESC Polinizador: beija-flor Thalurania glaucopis vive apenas na florestaJosé Carlos Morante-Filho /UESC

O limiar a partir do qual os estudos indicam que a composição de aves e árvores muda de maneira significativa chama a atenção especialmente porque a área de preservação prevista por lei para terras privadas pelo novo Código Florestal, revisto em 2012, é de apenas 20%. “O desmatamento de mais de 60% leva a uma alteração no regime das florestas, agora degradadas e secundarizadas, causando a perda ou redução na capacidade dessas florestas em prover serviços ecossistêmicos”, alerta Deborah. Ela está trabalhando em uma síntese do projeto, com as conclusões a que chegou em termos de efeitos ecológicos do desmatamento. “Algum dia teremos um conjunto de dados de longo prazo para a Mata Atlântica como o PDBFF para a Amazônia”, ambiciona, referindo-se ao Projeto Dinâmica Biológica de Fragmentos Florestais, um experimento que já dura 38 anos na Amazônia central, 80 quilômetros ao norte de Manaus.

Hoje fica claro que as mudanças ecológicas observadas na floresta fragmentada pelo experimento amazônico são consequência de interações entre efeitos locais, como desmatamento e caça, e mudanças em outras escalas – até global, de acordo com um balanço publicado este mês na revista Biological Reviews. É o caso de uma aceleração na produtividade das plantas como resposta ao aumento de gás carbônico (CO2) na atmosfera. “O CO2 pode fertilizar as plantas aumentando seu crescimento, mas dá às árvores dominantes e às lianas [cipós] a oportunidade de sufocar algumas das espécies vegetais únicas da Amazônia”, explica o biólogo norte-americano William Laurance, da Universidade James Cook, na Austrália.

Ele conta que nos anos 1980 foi uma surpresa verificar a rapidez do impacto dos efeitos de borda. Mas não foram apenas perdas: há espécies ganhadoras e perdedoras. “Os fragmentos são hiperdinâmicos e muitos processos, como alterações populacionais de espécies e ciclos de nutrientes, são acelerados.” Em termos do funcionamento ecológico, o experimento indica que a dispersão das sementes maiores é reduzida nos fragmentos pelo desaparecimento dos animais de grande porte. Somada à tendência de queimadas cada vez maior na região e à pressão de caça na região amazônica, a perda de floresta tem efeitos devastadores.

Larissa Rocha-Santos / UESC Angelim-de-morcego (Andira anthelmia) também subsiste em pastosLarissa Rocha-Santos / UESC

Onde há interesses humanos envolvidos, os processos ecológicos se tornam serviços ecossistêmicos. “Eu entendo esses serviços ecossistêmicos como um efeito de borda invertido, ou seja, o efeito da mata sobre as áreas de uso humano”, explica o ecólogo Jean Paul Metzger, do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP). Seu grupo tem investigado os benefícios da floresta para plantações de café na região fronteiriça entre São Paulo e Minas Gerais – conhecida como Mogiana e Sul de Minas, de onde sai um quarto da produção nacional. Eles encontraram efeitos positivos dessa relação, como o resultante da ação de aves e morcegos. Ao consumirem pragas, esses animais levam a uma menor perda de folhas nos cafeeiros e a uma maior quantidade de frutos, conforme artigo publicado em 2017 na revista Landscape Ecology. A presença de abelhas, essenciais como polinizadoras, também é afetada pela estrutura da paisagem. Um estudo publicado em 2016 na revista Agriculture, Ecosystems and Environment detectou uma melhoria de 28% na produtividade das plantas de café na presença de 22 espécies de abelhas – tanto nativas quanto a africanizada. Os dados são suficientes para recomendar que as plantações não estejam a mais de 300 metros de alguma borda florestal, distância que abarca a capacidade de voo desses insetos. Metzger alerta que o efeito de borda invertido nem sempre é positivo para o ser humano e pode, em alguns casos, atuar na disseminação de doenças como dengue e febre amarela.

Os habitantes originais das florestas são os maiores interessados na manutenção de seu funcionamento, mas estão longe de ser os únicos. Entender esses processos exige imensos conjuntos de dados reunidos e analisados por equipes de múltiplas especialidades, um objetivo em construção.

Projeto
Projeto interface: relações entre estrutura da paisagem, processos ecológicos, biodiversidade e serviços ecossistêmicos (nº 13/23457-6); Modalidade Projeto Temático; Programa Biota; Pesquisador responsável Jean Paul Walter Metzger (USP); Investimento R$ 1.957.416,76.

Artigos científicos
PFEIFER, M. et al. Creation of forest edges has a global impact on forest vertebrates. Nature. v. 551, p. 187-91. 9 nov. 2017.
HATFIELD, J. et al. Trait-based indicators of bird species sensitivity to habitat loss are effective within but not across data sets. Ecological Applications. v. 28, n. 1, p. 28-34. jan. 2018.
TUCKER, M. A. et al. Moving in the Anthropocene: Global reductions in terrestrial mammalian movements. Science. v. 359, n. 6374, p. 466-69. 26 jan. 2018.
PESSOA, M. S. et al. Fruit biomass availability along a forest cover gradient. Biotropica. v. 49, n. 1, p. 45-55. jan. 2017.
MORANTE-FILHO, J. C. et al. Birds in anthropogenic landscapes: The responses of ecological groups to forest loss in the Brazilian Atlantic Forest. PLOS ONE. v. 10, n. 6, e0128923. 17 jun. 2015.
BENCHIMOL, M. et al. Translating plant community responses to habitat loss into conservation practices: Forest cover matters. Biological conservation. v. 209, p. 499-507. mai. 2017.
LAURANCE, W. F. et al. An Amazonian rainforest and its fragments as a laboratory of global change. Biological Reviews. v. 93, n. 1, p. 223-47. fev. 2018.
LIBRÁN-EMBID, F. et al. Effects of bird and bat exclusion on coffee pest control at multiple spatial scales. Landscape Ecology. v. 32, n. 9, p. 1907-20. jul. 2017.
SATURNI, F. T. et al. Landscape structure influences bee community and coffee pollination at different spatial scales. Agriculture, Ecosystems and Environment. v. 235, p. 1-12. nov. 2016.

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