“Depois daquele trabalho para a [revista] Realidade [publicado em 1971], eu voltei para a Amazônia anualmente nos anos que se seguiram até 1975 e depois de novo em 1978. No final daquele ano, era programado sair um livro resultante dessas viagens. Na verdade, o livro surgiu de convicções sobre a natureza da fotografia e sobre a experiência na região, numa tentativa de conciliar ideias desses dois universos. A Amazônia era o tema, mas o objetivo era mostrar que uma foto não é uma representação fiel do assunto. O livro foi construído para traduzir essa tese, de que aquilo que a fotografia mostra é uma impressão da realidade, apenas minha impressão. […] O livro nunca foi entendido. Também, simplesmente, ele foi banido, na época áurea da censura.”
O depoimento acima foi concedido pelo fotógrafo norte-americano George Love (1937‑1995) ao fotógrafo e curador paulista Zé De Boni para o livro Verde lente: Fotógrafos brasileiros e a natureza (Empresa das Artes, 1994). Love, que viveu no Brasil entre as décadas de 1960 e 1980, referia-se à Amazônia (Praxis, 1978), obra que assina com a fotógrafa Claudia Andujar e foi censurada pela ditadura militar (1964‑1985), como relata o historiador Vitor Marcelino da Silva na tese de doutorado “A construção coletiva de Amazônia: Fotografia e política no livro de Claudia Andujar e George Love”, defendida em 2022 no Programa de Pós-graduação Interunidades em Estética e História da Arte da Universidade de São Paulo (USP).
“O texto do poeta Thiago de Mello [1926‑2022], que trazia um tom de denúncia em relação à destruição da floresta, e as imagens das queimadas feitas por Love incomodaram os militares”, afirma Silva, cuja pesquisa sobre o livro ganhou o primeiro lugar na categoria Letras, Linguística e Artes da 12ª Edição do Prêmio Tese Destaque USP, entregue no final do ano passado. “E o tema da devastação da floresta foi cortado pelos censores.”
Com 162 páginas, Amazônia traz na primeira parte imagens aéreas feitas por Love, uma de suas marcas registradas, nos estados do Amazonas e Pará e nos então territórios de Roraima e Amapá. O outro bloco abriga uma sequência de fotos da etnia Yanomami, realizadas por Andujar. De acordo com Silva, o livro foi construído coletivamente e não deve ser visto como “um produto autoral no sentido tradicional do termo”, visto que envolve diferentes agentes. Além dos nomes de Love e Andujar, o historiador destaca o trabalho do editor Regastein Rocha (1935‑2021), proprietário da Praxis e responsável pela execução do projeto.
A editora e gráfica, criada em 1977 e encerrada um ano depois, prestava serviços de publicidade, produção de impressos e brindes para a Sharp do Brasil. Aberta cinco anos antes, a empresa que atuava nos ramos de eletrodomésticos e informática era sediada em São Paulo e possuía fábricas na Zona Franca de Manaus. Seu proprietário, o empresário gaúcho Matias Machline (1933‑1994), tinha ligações com o regime militar, como aponta a tese, sendo próximo dos generais Ernesto Geisel (1907‑1996) e João Baptista Figueiredo (1918‑1999), os dois últimos presidentes da ditadura. “Entre outros negócios, Machline era sócio minoritário da Praxis”, acrescenta Silva. “Ele e Regastein se conheciam desde os anos 1960.”
Em 1978, a Praxis lançou quatro livros de fotografia: Xingu, de Maureen Bisilliat, Fotografias, de Otto Stupakoff (1935‑2009), Yanomami: Frente ao eterno, de Andujar, e o já citado Amazônia. “O interesse de Regastein pela Amazônia ganhou corpo quando ele passou a viajar com frequência para a Zona Franca de Manaus na década de 1970, a serviço da Sharp do Brasil”, informa Silva. De acordo com o pesquisador, a empresa abrigava militares em seu quadro de funcionários, que viam o editor com desconfiança. “Regastein mantinha contatos com figuras proeminentes da resistência à ditadura, como o antropólogo Darcy Ribeiro [1922‑1997]. Além disso, passou a convidar ex-presos políticos e exilados para trabalhar em campanhas publicitárias e publicações da editora”, prossegue o historiador.
Como registra a pesquisa, um desses militares iniciou estágio na Praxis a pretexto de aprender técnicas de impressão para serem aplicadas no Exército. “Mais tarde, Regastein descobriu que o estagiário estava espionando a produção de três livros: um deles organizado por Darcy Ribeiro sobre grupos indígenas brasileiros, outro sobre a presença da Igreja católica no Brasil, organizado pelo cardeal Agnelo Rossi [1913‑1995], crítico à ditadura, e, por fim, Amazônia”, informa Silva.
Em 1978, os militares invadiram a Praxis e apreenderam todo o maquinário e material. Os dois primeiros livros, cuja produção se encontrava em estágio inicial, nunca saíram. Já Amazônia acabou sendo publicado, mas sem as fotos de Love das queimadas e também o ensaio escrito por Thiago de Mello, que havia sido exilado pelo regime em 1968. O editor foi interrogado e distribuiu a tiragem de cerca de 3 mil exemplares de forma discreta: o livro foi vendido em duas livrarias de São Paulo e em outra do Rio de Janeiro. Além disso, algumas cópias seguiram para o exterior. “A ideia inicial era ambiciosa. Regastein planejava fazer um lançamento internacional do livro, mas esse projeto não se concretizou”, conta o historiador, que durante a pesquisa entrevistou o editor e a mulher, Frances Rocha, professora aposentada do Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC‑SP).
Além do episódio de censura, na tese é possível acompanhar os passos de Love pela fotografia. Nascido na cidade de Charlotte, na Carolina do Norte (EUA), ele se graduou em artes, no final da década de 1950, no Morehouse College. Localizada em Atlanta, na Geórgia, a instituição é voltada para estudantes negros e teve alunos como o ativista Martin Luther King Jr. (1929‑1968) e o cineasta Spike Lee. No início dos anos 1960, Love se radicou em Nova York e integrou a Associação dos Heliógrafos, iniciativa criada em 1963 pelo fotógrafo Walter Chappell (1925‑2000), com a meta de discutir a experimentação fotográfica. Ali, organizou exposições e ocupou o cargo de vice-diretor da galeria inaugurada pelo grupo. “George chegou ao Brasil em 1966 para encontrar Claudia Andujar, fotógrafa de origem húngara-suíça que morava em São Paulo desde 1955”, conta Douglas Canjani, professor do Departamento de Comunicação da PUC-SP e autor de pesquisa sobre o fotógrafo, resultado de estágio pós-doutoral na mesma instituição, concluído em 2020. “Claudia costumava ir com frequência para Nova York e chegou a participar da Associação dos Heliógrafos. Foi assim que se conheceram.”
Os dois viveram como casal até 1974. No final dos anos 1960, ambos começaram a colaborar com a revista Realidade (1966‑1976), da editora Abril, publicação que fez história no jornalismo brasileiro, sobretudo em seus dois primeiros anos, pautados por reportagens de temática ousada, que tiveram grande repercussão. “A revista oferecia liberdade de criação aos fotógrafos, que deram grandes contribuições ao fotojornalismo brasileiro, produzindo imagens em que o caráter documental se mesclava ao experimentalismo. Isso resultou em uma visualidade extremamente inovadora no contexto da imprensa da época”, observa Helouise Costa, docente e curadora do Museu de Arte Contemporânea (MAC‑USP), que orientou a tese de Silva.
“Realidade rompeu com uma forma mais descritiva no uso da fotografia, comum aos veículos de comunicação de então, o que permitiu trabalhos mais ensaísticos de seus fotógrafos e fotógrafas”, concorda Marcelo Eduardo Leite, do Instituto Interdisciplinar de Sociedade, Cultura e Artes da Universidade Federal do Cariri (UFCA), no Ceará. No caso específico de Love, havia uma abertura para que colocasse em prática suas experiências anteriores no campo das artes visuais com a vanguarda nova-iorquina, a exemplo “do uso das cores, dos recursos de velocidade do obturador, dos enquadramentos e contrastes”, acrescenta Leite, autor do artigo “O fotojornalismo experimental de George Love na revista Realidade” (2023).
Love e Andujar integraram a equipe de 40 profissionais que produziram para Realidade um especial sobre a Amazônia. A edição, publicada em outubro de 1971, é composta, dentre outras imagens, por fotos aéreas feitas por Love e registros dos primeiros contatos de Andujar com os Yanomami. “Foi um trabalho que influenciou George a voltar várias vezes à região nos anos seguintes e que se desdobraria mais tarde na publicação do livro Amazônia em 1978”, diz Canjani, que visitou em 2014, com apoio da FAPESP, o arquivo do fotógrafo depositado na biblioteca J. Murrey Atkins, da Universidade da Carolina do Norte. Entre outras questões, o pesquisador analisou em seu estudo a relação de Love com a paisagem. “Ao fotografar, George parece estar menos interessado em retratar a paisagem sob um prisma topográfico, devotado à descrição exata do território e seus acidentes, e mais curioso sobre os fenômenos de luz e a ação recíproca dos elementos da paisagem uns sobre os outros (luz, água, vapor, céu, terra, vegetação etc.)”, escreve.
No Brasil, Love colaborou como fotojornalista com outras publicações como Novidades Fotoptica (1953‑1987), uma das mais importantes sobre fotografia no país, e Bondinho (1970‑1972), revista de uma rede de supermercados, cuja redação reunia jornalistas que haviam passado pela Realidade. “Na década de 1970, ele participou também de várias iniciativas no Masp [Museu de Arte de São Paulo], em sua maioria em parceria com Claudia Andujar, como a criação de um departamento de fotografia e a implantação de um laboratório fotográfico, além de ter realizado exposições e cursos”, diz Costa, do MAC‑USP. No início da década de 1980, Love foi contratado pela Eletropaulo para organizar a coleção de documentos fotográficos da cidade de São Paulo. Do projeto encabeçado pelo arquiteto Benedito Lima de Toledo (1934‑2019), da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, saíram dois livros em 1982, pela editora Raízes, nova empreitada de Regastein Rocha. Um deles é São Paulo: Registros, com fotos antigas do acervo da empresa, feitas na virada do século XIX para o XX. Já São Paulo: Anotações traz imagens realizadas por Love entre 1966 e 1982.
Mais tarde, em 1988, o fotógrafo se estabeleceu no estado de Nova York. Aos 50 anos, vivia uma fase de “busca e instabilidade”, além de enfrentar uma escoliose, como relata Canjani. “A decisão de voltar aos Estados Unidos teve impacto negativo na trajetória profissional de George. Ele começou a se isolar do meio cultural paulistano, onde tinha sido largamente aceito e, sem desfrutar mais de um círculo social amplo nos Estados Unidos, após tantos anos de permanência no Brasil, enfrentou um período de solidão e ostracismo”, prossegue o pesquisador. Em 1995, Love visitou o Brasil e, durante uma cirurgia ortopédica, faleceu em São Paulo aos 58 anos.
Love não presenciou a redescoberta de Amazônia na década de 2010, na esteira da valorização do gênero fotolivro no país e no mundo. Um dos fatores que impulsionaram a divulgação da obra foi sua inclusão em Fotolivros latino-americanos (2011), publicação coordenada pelo curador espanhol Horácio Fernández, com versões em inglês, espanhol, francês e português – no Brasil saiu pela editora Cosac Naify. Dividido em nove capítulos temáticos, o título apresenta 150 fotolivros por meio de imagens e pequenos textos. Amazônia figura no bloco Os esquecidos. “Acredito que um dos motivos que fizeram o livro receber destaque foi o fato de Claudia Andujar estar se estabelecendo naquele momento como uma das principais artistas contemporâneas, mas ele tem muitos atributos, como a temática que permanece atual e a qualidade da impressão”, diz Silva. Para Canjani, o livro se destaca pela força das imagens e a audácia da paginação. “As fotos ocupam quase toda a página e se desdobram página a página, praticamente sem pausas. É um livro com narrativa inovadora, dotada de um forte sentido de estranhamento”, afirma.
Hoje, de acordo com Silva, Amazônia chega a custar até R$ 10 mil em sebos brasileiros. Há exemplares do livro, por exemplo, nas bibliotecas do Metropolitan Museum of Art e do Museu de Arte Moderna (MoMA), ambos em Nova York. Outra forma de conhecer o trabalho do fotógrafo é a retrospectiva George Love: Além do tempo, com curadoria de Zé De Boni, aberta em março no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM‑SP). A mostra, que fica em cartaz até 12 de maio, reúne mais de 500 fotografias, além de documentos, cartas e vídeos. É a primeira grande exposição sobre Love desde sua morte em 1995.
Projeto
O fotojornalista George Love e a paisagem brasileira na revista Realidade (nº 14/05256-6); Modalidade Bolsa no Exterior – Pesquisa; Pesquisador responsável Douglas Canjani de Araujo (PUC-SP); Investimento R$ 8.943,96
Artigo científico
LEITE, M. E. O fotojornalismo experimental de George Love na revista Realidade. Revista Temática. v. 19, nº 11. 2023.
Capítulo de livro
CANJANI, D. “Imagem e território: A Amazônia nas fotos de George Love.” In: SAKI, M. (org.). Comunicação em foco: Conexões e fragmentações. São Paulo: Métis Produção Editorial, 2021.