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Justiça

Automação no Direito

Um novo tipo de startup, as legaltechs, desenvolve sistemas tecnológicos para a área jurídica

Bruno Algarve

O Brasil tem mais de 1 milhão de advogados formados. Em média, para cada grupo de 100 mil habitantes, 12.519 ingressaram com uma ação judicial ao longo de 2017. No começo de 2018 o país tinha 80,1 milhões de processos em tramitação, de acordo com a última edição do Justiça em Números 2018 – Ano Base 2017, estudo do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que reúne as estatísticas mais atualizadas sobre o setor. Esses números mostram o potencial de mercado existente para um novo grupo de startups que vem se desenvolvendo no país com maior intensidade há pelo menos dois anos e meio: as legaltechs ou lawtechs, empresas focadas no desenvolvimento e uso de tecnologias aplicadas ao direito (ver quadro). O neologismo vem da junção das palavras direito e tecnologia em inglês. No Brasil, não se faz distinção entre os termos, enquanto no exterior se costuma referir a legaltech como startups que atendem a todo o mercado e lawtechs as que desenvolvem soluções tendo como público final os advogados.

Ainda não há estimativas oficiais sobre quantas existem hoje no país. A Associação Brasileira de Lawtechs & Legaltechs (AB2L) nasceu de um pequeno núcleo de empreendedores reunidos em um grupo de WhatsApp e evoluiu em 2016 para uma entidade formal, inicialmente com cerca de 40 associados. Sediada no Rio de Janeiro, hoje tem 180 empresas em seus quadros, incluindo na early stage, ou seja, ainda na fase de validação da tecnologia. “Acredito que em cinco anos surgirá um unicórnio nesse segmento”, diz Bruno Feigelson, presidente da AB2L e da startup Sem Processo, do Rio de Janeiro. Unicórnio é o nome que se dá às startups que alcançam o valor igual ou superior a US$ 1 bilhão antes mesmo de abrir seu capital em bolsas de valores.

“Trata-se de um fenômeno internacional. Em cinco anos, os Estados Unidos alavancaram US$ 1 bilhão de investimento de venture capital em empresas de tecnologia focadas no mercado jurídico”, prossegue Feigelson. Um indicador desse movimento é o trabalho realizado no Center for Legal Informatics (CodeX), da Universidade Stanford. Um grupo do CodeX desenvolveu o Techindex, que mapeou 1.048 legaltechs no território norte-americano. Outra iniciativa internacional nesse campo está no Reino Unido. Levantamento da Legal Geek, que reúne mais de 4 mil membros integrantes do ecossistema das startups legaltechs, identificou 64 delas em 2017. Todas foram fundadas há, no máximo, sete anos.

O Grupo de Ensino em Pesquisa e Inovação (Gepi), braço da Fundação Getulio Vargas  em São Paulo (FGV Direito SP), está concluindo um estudo sobre o uso dessas novas tecnologias por escritórios de advocacia no Brasil. Os resultados devem ser publicados no fim deste ano. A introdução das tecnologias digitais no direito não são novidade, embora elas se aplicassem apenas a processos internos, especialmente para a administração dos escritórios. “Agora o jogo mudou: muitas das tecnologias estão atacando a atividade-fim. Por exemplo, os bancos de dados são automatizados já pensando em como isso pode fazer o advogado prestar melhores serviços. Temos tecnologias como gestão de processo e peticionamento eletrônico que ajudam a organizar melhor as ações dentro de um tribunal”, destaca Alexandre Pacheco da Silva, professor da FGV Direito SP e um dos coordenadores do Gepi. “Temos ainda campos na área jurídica que são de fronteira, como leitura de decisões judiciais por meio de algoritmos que categorizam e exportam os dados dos processos, e aqueles que constroem o perfil decisório de um juiz específico”, informa. “São soluções tecnológicas mais sofisticadas.”

Os profissionais do direito deveriam temer essas mudanças? “Funções de caráter burocrático, repetitivas, serão diretamente afetadas, enquanto outras atividades continuarão a ser executadas pelos profissionais, como o relacionamento interpessoal com  o cliente”, aponta Silva. “Dificilmente um cliente ficará satisfeito em se comunicar com o escritório que contratou apenas usando uma plataforma digital.” Para ele, o mercado e as universidades precisarão repensar o tipo de formação que será dada aos futuros advogados. “Não terá emprego quem não estiver capacitado para esse novo cenário”, afirma.

Órgãos como o Superior Tribunal de Justiça (STJ), Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Conselho Nacional de Justiça (CNJ), entre outros, já automatizaram as petições. Os contratos passam por esse mesmo processo. “É difícil expressar em número as vantagens da automação, porque cada empresa tem ganhos diferentes”, diz Silva. Na pesquisa que ele coordena, no entanto, há depoimentos de profissionais que conseguiram reduzir de duas horas e meia para cerca de 20 minutos o tempo que demorariam para preencher determinados tipos de contrato.

Universidades terão de repensar o tipo de formação que será dada ao advogado, diz Alexandre Silva, da FGV Direito SP

Segundo o pesquisador, o estudo da FGV a ser publicado mostra que a grande maioria das empresas que usa soluções das legaltechs está nas regiões Sul e Sudeste do Brasil. Uma das exceções citadas por ele é o escritório Urbano Vitalino, com filiais em todo o país, incluindo o Nordeste, que comprou um robô para automação de documentos. A AB2L também reflete essa concentração geográfica. Entre as 180 associadas, incluindo as que estão no early stage, 57 estão em São Paulo e 13 no Rio de Janeiro. Também existem associadas legaltech nos três estados do Sul, Minas Gerais, Espírito Santo, Goiás, Distrito Federal, Pernambuco, Amazonas e Amapá.

Sem recursos públicos
Há algo que marca essa geração de startups no Brasil: a independência de recursos públicos. Exemplo disso é a Tikal Tech, de São Paulo, que nasceu em 2014 fruto de investimentos feitos pelo advogado Antônio Maia, de São Paulo. A empresa comemora o fato de ter em torno de 200 mil advogados que já usaram ou ainda usam seus produtos. “Também temos mais de 300 mil clientes intermitentes, pessoas físicas, que tiveram algum contato com nossos serviços”, revela Derek Oedenkoven, CEO da empresa.

Utilizando robôs rastreadores, cuja função é simular a navegação na internet para monitorar, consultar, capturar e armazenar informações de processos jurídicos, e aprendizado de máquina para que os robôs leiam, classifiquem e identifiquem as informações de interesse, a Tikal Tech criou o LegalNote. O sistema rastreia na internet e identifica todos os processos do advogado-usuário que sofreram alguma movimentação, usando, para isso, o número de registro profissional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).

Bruno AlgarveO LegalNote começou também a registrar usuários que não eram advogados, como pessoas que moveram processos trabalhistas ou aqueles envolvendo defesa do consumidor, além de empresas de pequeno porte. Surgiu então um novo serviço, o SeuProcesso. Por ele, a pessoa não só acompanha a ação judicial que está movendo como tem a tradução da linguagem jurídica para uma forma didática. A empresa criou, ainda, um robô para automação jurídica no país, o Eli, e oferece um aplicativo pelo qual os advogados podem encontrar e contratar colegas em todo território nacional, o Diligeiro.

Criada há um ano e meio, em São Paulo, a Deep Legal também é resultado de investimento privado, feito pelas advogadas Vanessa Louzada e Rosely Cruz, pela publicitária Isabela Ventura e pelos engenheiros Raul Azevedo e Ricardo Rezende. O sistema oferece três soluções. Pelo Monitor, o usuário conseguirá ver em tempo real sua performance jurídica por meio de diversos indicadores: volumetrias diversas como entrada, julgamentos, encerramento, acordo, onde estão e quais seus estágios na tramitação. Por meio do Compare, o interessado consegue comparar a atuação jurídica de seu escritório ou empresa e de seus concorrentes. Já a solução Predict levanta informações estatísticas sobre as chances de perder ou ganhar os processos que o usuário tem em sua carteira, melhorando as estimativas de resultados. Com isso, os advogados podem ter melhores estratégias, como procurar fazer um acordo ou alterar sua tese de defesa. A equipe que possui expertise na área jurídica valida as tecnologias que desenvolve por meio do escritório Neolaw, utilizando 20 de seus clientes para rodar, de forma experimental e sem custo, os produtos criados. A ferramenta estará disponível para escritórios da área e departamento jurídico de empresas a partir de novembro.

Já a Linte obteve US$ 100 mil de aporte de uma aceleradora de San Francisco, nos Estados Unidos, para criar o software que leva o nome da empresa. Sua função é combinar automação de documentos com workflow (fluxo de trabalho). “Sabemos que depois da atividade A temos a atividade B. O software do workflow ajuda a organizar nosso trabalho em etapas e a automatizá-las”, explica Gabriel Senra, sócio-fundador da Linte, que está no Cubo, espaço de empreendedorismo do Itaú Unibanco e do fundo de investimento Redpoint eventures, em São Paulo.

Entrevista: Bruno Feigelson
     

Investimentos próprios
Alguns desenvolvedores interessados nesse mercado se aventuraram com recursos próprios, como a startup carioca Sem Processo. Fundada em janeiro de 2016, sua plataforma facilita acordos extrajudiciais ao conectar advogados de pessoas comuns ao departamento jurídico de empresas que são ou podem ser alvo de uma ação. O objetivo é ganhar tempo e economizar dinheiro ao promover o acordo entre as partes e evitar que o caso vá para a Justiça – ou permitir que as partes façam a negociação e encerrem um processo em andamento.

Em menos de um ano, a plataforma já registrava casos de mais de 500 empresas diferentes. “Começamos a desenvolver um módulo que chamamos de contencioso, operados pelas empresas, departamentos jurídicos ou escritórios. Algumas empresas têm 30 ou 40 escritórios que trabalham para elas e todos usam a Sem Processo”, conta Bruno Feigelson, um dos fundadores.

Outra startup que optou por esse caminho foi a paulistana Legaltech. Fundada em 2009 por José Antônio Milagre, atua na gestão de reputação on-line, focada no monitoramento de dados pessoais e da imagem das pessoas, empresas e instituições na internet. “Em 2015, começamos a pensar em desenvolver robôs para automatizar a busca por dados pessoais, ofensas, notícias e perfis falsos e violações a direitos autorais nas redes sociais”, lembra Milagre. Com isso, a Legaltech pôde também automatizar o processo de guarda de prova, por meio do qual ela armazena os dados de quem postou a foto ou texto ofensivo ou criou um perfil falso.

“Nossa ferramenta monitora em média 600 mil itens em redes sociais por mês, públicas ou privadas”, conta. Sua tecnologia utiliza inteligência artificial, web semântica – na qual a máquina interpreta a informação – e aprendizado de máquina. Todos esses recursos são utilizados para identificar uma postagem em foto e vídeo, classificar se há ofensas ou não e avaliar se tem repercussão jurídica. Caso a busca na internet registre prova com valor forense, entra em ação outro produto, o Minha Imagem, que formula o pedido de remoção, interagindo com os formulários de redes sociais ou elaborando a peça jurídica.

O escritório Opice Blum, de São Paulo, optou por criar sua própria operação em legaltech em 2013, na qual atuam sete de seus aproximadamente 100 funcionários. A equipe desenvolveu, por exemplo, um sistema para monitorar notícias falsas em cenários eleitorais. “Podemos detectar se um post em rede social é uma fake news, se está tendo acessos e curtidas em número maior do que outros posts e se deve ser objeto de ação especial e imediata, sugerindo medidas aos clientes”, explica o fundador e sócio do escritório, Renato Opice Blum.

“Mas o trabalho vai além disso: algoritmos e modelos matemáticos também auxiliam os advogados a demonstrarem em juízo, por exemplo, ações coordenadas entre mídias ou perfis para realização de ilícitos.” O escritório tem uma atuação forte na detecção de produtos falsificados de lojas virtuais, entre outras ações que envolvem inteligência artificial e smart contracts – qualquer contrato possível de ser executado ou de se fazer cumprir por si só, formalizando negociações que prescindem de intermediários.

As startups focadas em direito usam recursos próprios para desenvolver ferramentas para o setor

Outra ferramenta do escritório analisa as decisões nas comarcas, verificando em quais seus advogados têm menos sucesso. A coleta e cruzamento de dados permitem, por exemplo, que se saiba se existem mais profissionais ativos em determinadas comarcas captando processos contra seus clientes, se há menos chance de conciliação para evitar as ações judiciais, se existe maior risco de ter um julgamento em que clientes podem perder e as possibilidades de mudar a sentença judicial ao interpor um recurso.

Acelerando startups
A Thomson Reuters – multinacional que atua em vários setores, incluindo o jurídico – promoveu em julho o programa Accelerator Day for Lawtechs em Campinas, no interior de São Paulo. Das 20 empresas que se inscreveram, nove foram selecionadas. Todas já têm experiência no mercado e clientes, e sua missão foi apresentar projetos com sugestões tecnológicas para agregar mais valor ao Legal One, software jurídico desenvolvido e comercializado pela consultoria.

“É mais fácil emplacar uma solução em um mercado complexo como o Brasil e levá-la para outro mercado”, ressalta Ralff Tozatti, diretor de marketing da multinacional no Brasil e um dos idealizadores do Acceletaror Day. As empresas selecionadas recebem mentoria, orientações quanto ao marketing e desenvolvimento de mercado, participam de eventos e estão sendo certificadas pela Thomson Reuters. Deverão concluir, até outubro deste ano, o desenvolvimento de suas tecnologias, usando a própria Thomson Reuters como “laboratório”.

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